domingo, 29 de junho de 2008

A Verdade de Cada Face


Há muito tempo que um romance não me enchia tanto: depois de ler Na Tua Face de Vergílio Ferreira dei por mim a voltar ao início do livro, como se apenas me apetecesse ler e reler aquela história até deixar de me sentir tão saciada e poder voltar às minhas deambulações de leitora compulsiva. Já tinha lido Aparição quando tinha 15 anos, mas na altura o autor não me tocou tanto, talvez porque não estivesse numa altura de contemplação. Provavelmente, o existencialismo é uma coisa que vem com a idade, só a partir de certa altura encontramos uma certa velocidade lenta para observar, entender e sobretudo aceitar que as coisas são como são, sem as podermos encaixar rigidamente em categorias demasiado estreitas, como o bem e o mal, o belo e o feio, o amor e o ódio. Afinal, somos humanos, demasiado humanos, embora uns o sejam mais que outros.

«O feio. O horrível. Onde é que estão? Porque são uma invenção nossa, a Natureza está-se perfeitamente nas tintas. Ou é imensamente generosa como Deus e na generosidade cabe tudo. Ou é estúpida como o que simplesmente existe e não tem estética nenhuma ou estupidez a acompanhar. A estética do que existe é só existir. Tanto cabe nela a Helena do Menelau como a caca dela, quando é a hora de a aliviar, a ver se penso melhor. A ver se arranjo uma razão para empacotar com uma fita e um laço a razão que não tenho» (p. 29).

O livro fala da memória, de uma capacidade de olhar e recordar a nossa história quando já temos idade para poder ter uma. Uma idade em que todos os contrários da equação da vida se parecem anular, para virem no fim a equivaler a zero.

«Tanta coisa ainda quente na lembrança. Podia agora chamá-las e elas vinham, animais familiares. Talvez venha a chamá-las. Mas não agora. E é sempre preciso despertá-las da sonolência, chamá-las talvez aos berros como às crianças malcriadas e desobedientes. Ou deixar que me apanhem distraído e me saltem à frente como ladrões. Mas tu, não. Tu vens por ti sem te chamar procurar – quem é que te chama? Há quarenta anos, que é já tempo para tudo ser mortal. E sempre nesse rápido instante em que disse o teu nome e ficaste imóvel, a entender» (p.7/).

«São frases assim dispersas, vêm vindo atrás de nós como um cão. E o passado é isso, um instantâneo de imagens, frases avulsas. Devem talvez formar uma constelação, não a sabemos» (p.15).

Isto faz-me pensar que a nossa história é como uma grande casa, com vários compartimentos, uns mais escuros e com odor a humidade, que nos recusamos a visitar, mas que insistem em nos assaltar de vez em quando, perturbando a claridade das divisões onde gostamos de nos demorar, pelo conforto que proporcionam à nossa identidade. Provavelmente, só quando chegamos a uma idade avançada (se tivermos essa sorte), podemos dar-nos ao luxo de ficar a sós connosco e visitar todas as facetas e ramificações do nosso percurso sem razão, tentando decifrar nele o nosso mistério. E reviver certos episódios que sufocámos à pressa, numa idade anterior, em que certas coisas não eram permitidas por causa do inferno da voz dos outros no nosso interior.

Fez-me também pensar em ti e que devíamos ficar juntos para sempre, até nos engolirmos, para que pudéssemos depois partir e separar-nos. Entretanto, tranco-te num quarto onde o dia nunca acaba e permitirei a uma parte de mim visitar-te sempre que lhe aprouver e abandonar-te sempre que lhe apetecer. Talvez imagine outros encontros nossos e tudo não passará de imaginação, até que tudo se esgote. Ou não.

Em certos momentos, serei doce e terna, noutros insistirei em torturar-te, talvez te fale até de outros quartos da minha mente, apenas para te espetar facas na barriga e me deleitar com a tua dor, prisioneira do meu sonhar. Outras vezes, irei apenas ver o que fazes na minha ausência. Se te surpreender a jantar ou a cear, sentirei de imediato uma dor fulminante e aguda na cabeça – como podes sobreviver sem o meu alimento, como podes expulsar-me por outras fomes, como consegues preencher um espaço que devia ficar vazio para sempre?

Talvez um dia escreva a nossa história – a única possibilidade de sobrevivermos num espaço contíguo ao real, porque a minha memória é ainda fraca – a propósito, reservei-te um quarto arejado, com luz e janelas, para que possas escapar a qualquer momento, antes que eu agarre o essencial de nós. Prometes? Leva então contigo toda a contaminação e ternura e deixa o palco vazio e abandonado.

1 comentário:

Anónimo disse...

Para mim este foi o melhor post até agora. Revela um pouco do enorme talento que tens. Não o deixes fugir....!!! Estarei sempre aqui para assistir e aplaudir.
Mil bjks de quem te admira muito.