quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Crime e Castigo




Tendo aproveitado a noite de feriado para resguardar a minha solidão no sofá, aproveito para fazer duas confissões ridículas. Os blogs e todas as personas cibernéticas servem afinal para isso, para nos confessarmos, são sucedâneos light da confissão cristã. Seguimos, talvez mais necessitados do que nunca, de nos confessarmos. Mas a maioria aproveita o novo espaço para continuar com a mesma farsa. E assim se ampliam egos pela internet fora, ad infinitum, para acariciar o desespero de andarmos todos tão desavindos. Resta apenas um narcisismo triste, comovente, que não dá nem para começar uma revolta menor.




Por isso tenho duas confissões tristes a fazer. E têm ambas a ver com o lendário livro de Dostoiévski, Crime e Castigo, que me aqueceu os ossos durante o último mês. Confesso que nunca tinha lido o livro antes. Foram várias as tentativas ao longo dos anos, mas a ansiedade derrotava-me sempre. E queria muito lê-lo, não só porque é um dos grandes livros do cânone ocidental, mas porque foi neste autor russo que, por um golpe do acaso aos treze anos, eu me decidi e escolhi a minha personalidade. Porque existem idades em que podemos apostar e escolher arbitrariamente que personagem queremos ser nesta farsa e os livros funcionam simultaneamente como drogas e como tábua de salvação. E assim naufraguei na identidade de jogadora, ganhei o riso astuto da adrenalina da vitória, embora saiba que a condição de vencedor é das mais matreiras e que nunca se roça tão de perto a ruína como quando somos levados por marés agradáveis. Mas... eis que me afasto da infâmia que pretendia e caio também eu no elogio narcísico de mim mesma: coitadinha de mim, tenho mostrado grande capacidade de sofrimento mas olhem que continuo de pé, orgulhosa na minha decadência... nada disso, peço perdão humildemente: rejeito o orgulho porque a sua ferida pode ser letal, mas já lá iremos.



A verdade é que tinha medo deste livro. Um medo visceral. O tom obsessivo dos primeiros capítulos deixava-me sem ar, um mal-estar que passava das letras para a pele. Tinha pesadelos desconcertantes e dormia como quem é sovada. E porquê? Porque o meu maior medo é matar. Confesso: tenho medo de matar. Mais uma fobia típica dos absurdamente racionais, certo, mas a questão vai mais longe. Tenho medo de ter medo de matar e de me começar a desafiar. Como fiz sempre com tudo o que me assustava: ir até lá espicaçar o monstro para me descobrir melhor, no risco e na excitação de me perder. Uma questão íntima, portanto.

A segunda confissão é que me apaixonei por Rodion Romanovitch Raskólnikov, um verdadeiro disparate emocional que só a Madame Bovary ousaria igualar. Afinal não existem regras mas o amor está mesmo colado à ponta do medo. Confesso que sempre preferi as personagens femininas porque são sempre as mais arriscadas e imprevisíveis e que, para além do Augie March e Antoine Roquentin, assim de supetão não me ocorrem mais personagens masculinas que tenha verdadeiramente admirado (tenho má memória, também é um facto); e se o primeiro admirei pela inteligência grata com que aceitava todas as vicissitudes, com o segundo partilhei de uma verdadeira intimidade existencial. Mas com o Ródia, a coisa foi diferente: une affaire d’amour. Uma questão de solidariedade, portanto.



Ródia: impossível não amar a tua irritabilidade, a tua compaixão, a tua revolta, a obsessão mental de quem se atira ao mundo com a indelicadeza de quem mal começou a viver, a vontade de ousar um passo original, a angústia que se segue porque não se aguenta tal enormidade e custa tanto desenvencilhar-se dos sentimentos alheios que se tomam por próprios e queridos, alternada com uma súbita indiferença e desprezo. A perspicácia que te corta na leitura certeira dos estratagemas dos outros, o nojo que pede que os desmascares, e um delírio subterraneamente conflituante que te diz para alinhar, que a partir do interior do jogo é mais fácil devorá-los, seguido do medo de te tornares semelhante e nada adiantar. Enfim, meu amor, angustias-te mais do que os demais, tanto sofrimento e afinal sofres apenas de orgulho ferido. Com legitimidade, é certo. Mas a vida ainda agora começou. E tu e eu ainda temos uma porta a que bater, enquanto o milagre e a punição se atrasam.



“O coto de vela havia muito que estava a querer extinguir-se no castiçal torto, iluminando palidamente, neste quarto miserável, o assassino e a prostituta, estranhamente reunidos para lerem o livro eterno.
(…)
- Agora só te tenho a ti – acrescentou Raskólnikov. – Vamos juntos… Eu vim a ti. Somos ambos malditos, então vamos juntos!
- Vamos aonde? – perguntou cheia de medo e, involuntariamente, deu um passo para trás.
- Como posso saber? Só sei, tenho a certeza, que iremos pelo mesmo caminho, e mais nada. Até ao mesmo destino!
Sónia olhava e não percebia nada. Apenas sabia que ele estava muito infeliz, infinitamente infeliz.
- Ninguém, deles, compreenderá nada se lhes falares – continuou Raskólnikov -, e eu compreendi. Preciso de ti, por isso aqui estou.”

1 comentário:

Anónimo disse...

Li este livro há alguns anos. Se não moldou o meu carácter, ajustou-o.

Um crime nunca é perfeito se houver uma moral por trás.

Ivan M.