domingo, 20 de janeiro de 2013

a vida é sempre menos que a vida (?)



Niels Lyhne chegou indicado por Rilke, primeiro na versão francesa e depois na versão portuguesa pela Cosac & Naify. Parente de Emma Bovary, Fréderic Moreau e Oblómov, trata de um problema bicudo: será a vida plena e una, tão arduamente sonhada, apenas uma quimera literária púbere? A vida terá inevitavelmente que soçobrar perante a vidinha, salvando-se apenas os mais calculistas?

Como acontece com todas as perguntas genuínas, a resposta chega com atraso. Há uns tempos atrás, pus-me a matutar seriamente no problema da vida. Tão seriamente, que por vezes sentia que o cérebro se enovelava na mais crua certeza da morte violenta. Durante esse tempo, procurei com verdadeiro afinco encontrar uma pessoa, uma apenas que fosse ou estivesse, genuinamente feliz. Em cada alma, encontrei apenas uma falha, quando não uma farsa. Lembrei-me então desse velho Diógenes que procurava um homem pelas ruas, em pleno meio-dia, com uma lanterna acesa. O fracasso desta demanda tornava a situação mais aflitiva, pois se até estava na disposição de aceitar a minha derrota, a possibilidade de sairmos todos derrotados afligia-me como uma sede sem água à vista.

Niels Lyhne vem comprovar que aquilo que há muitos anos tomei como uma questão íntima é afinal um problema moderno e um problema essencialmente literário, que afecta a todos mesmo os que escapam às leituras. Niels Lyhne passa a vida a poetar a vida em vez de a viver. Petrificada pela letra, a vida é algo que nunca chega. O processo começa nos suspeitos do costume – Platão e Aristóteles – e atinge a sua hipérbole na contemporaneidade: privadas das suas forças vitais, a vida acaba congelada pela retórica, entregue à melancolia de uma temporalidade que não se consegue transcender sem se negar. Até aqui nada de novo. Aliás, o livro todo não traz qualquer novidade para quem já leu essa epopeia da bulimia temporal que é A Educação Sentimental do Flaubert.

Mas a edição brasileira traz um belíssimo ensaio de Claudio Magris como introdução, intitulado «As Moedas da Vida». Nada melhor que um escritor para explicar uma questão literária: “Entre o eu e a vida abriu-se um hiato, que faz daquela não mais a sua vida, mas um território onde ele não consegue penetrar e se inserir, um lugar estranho que não lhe pertence e ao qual não sente pertencer, uma contínua fuga de algo que nunca possui e que portanto não é seu, mas do qual sente nostalgia como se o tivesse perdido”. Entre essência e existência abriu-se uma cesura intransponível que vota a primeira à abstração inacessível e a segunda a uma opaca insignificância. O conflito entre vida e representação converte o tempo da existência nas moedas da vida, “trocados miúdos que não podem ser usados para mais nada”. “A vida alienada é a que foi privada de fins que realmente a justifiquem e a tornem auto-suficiente na dedicação a uma meta superior; no lugar de um fim último, instalou-se uma miríade de objectivos momentâneos e parciais, que se sucedem uns aos outros sem repouso, como na cadeia de montagens de uma imensa produção, sacrificando e queimando cada momento ao seguinte, para alcançar um objectivo meramente prático e despido de valores, que portanto não ilumina – nem retrospectivamente, na memória, nem prospectivamente, na expectativa – o caminho que é preciso percorrer para alcançá-lo.

Que cada um medite nisto, com a urgência com que o problema o encontrar. A maioria optará por não pensar, mas nem por isso deixará de o sentir na própria pele. Outra parte, optará pelo esteticismo e pelo deleite no impasse – deus vos livre do esteta e da sua melancolia artificiosa, antes uma trave no olho! Poucos irão pelo caminho marginal de Stirner, cantando a vida e tomando-a, se necessário, à força. Eu já tenho a minha resposta mas não a partilho. Trata-se de uma questão humanista, pelo que cada qual terá de se por a caminho, sozinho e desorientado.

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