domingo, 13 de setembro de 2015

Bruno Schulz


“Não sei de onde chegam à nossa infância certas imagens que vão ter uma significação decisiva para nós. Desempenham o papel dos fios postos nas soluções químicas, e à sua volta cristaliza-se o que é nosso sentido do mundo. Para mim, a imagens destas também pertence o filho levado pelo pai no espaço de uma noite enorme, e que conversa com a escuridão. O pai aperta-o contra si, rodeia-o com os braços, defende-o do elemento que fala, fala sem parar, mas para a criança os braços dele são transparentes, é atingida pela noite, e através das carícias do pai ouve sem tréguas a terrível persuasão. Responde à pergunta da noite esgotada e fatalista, tragicamente permissível, por inteiro devotada ao elemento sem fim de que não pode fugir.
Segundo me parece há temas que desde sempre nos estão destinados, que logo à entrada da vida nos esperam (…).
Essas imagens têm grande força, criam o capital sólido da alma que bem cedo nos é fornecido com pressentimentos e sensações de que só temos uma vaga consciência. Penso que o resto da vida é passado a interpretar estas intuições, a dominar todo um conteúdo seu que devemos conquistar, a filtrá-las ao longo de toda uma dimensão intelectual que podemos atingir. Estas imagens precoces indicam aos artistas os limites da sua criatividade; criatividade que mais não será do que o resultado de dados já existentes. Não descobrem nada de novo, só ensinam a compreender de vez e melhor o segredo que lhes foi oferecido. Aliás, a arte nunca chega a encontrar o sentido oculto de um tal segredo. Que vai permanecer obscuro. O nó à volta da alma não é frouxo, não é dos que cedem quando se puxa a ponta da corda. Pelo contrário, é cada vez mais apertado. E então manipulamos esse nó, acompanhamos as suas voltas, procuramos-lhe o fim, e com essas manipulações é que a arte nasce.
(…)
Qual é o sentido desta desilusão universal perante a realidade, não saberei dizê-lo. Só afirmo que não seria suportável se não soubesse, numa outra dimensão qualquer, indemnizar. De certo modo sentimos uma satisfação profunda quando a trama da realidade abranda, sentimo-nos interessados por essa bancarrota.
Falou-se da tendência destruidora do meu livro. Sob o ponto de vista de certos valores estabelecidos talvez seja verdade. A arte opera, porém, no sentido da profundidade anterior à moralidade; no ponto em que o seu valor só está in statu nascendi.
Como resposta espontânea da vida, a arte distribui tarefas à ética, e não o contrário. Se a arte só devesse confirmar o que já foi noutro lado estabelecido, seria inútil. Tem o papel de sonda mergulhada no inominável. O artista é um aparelho que grava percursos em profundidade, no ponto em que se opera a formação do valor.
(…)
A que género pertence As Lojas de Canela? Como classificá-lo? (…) Trata-se de uma autobiografia ou, melhor, de uma genealogia do espírito; genealogia kat’exochen porque descreve o nascimento da alma e segue-a até às profundezas onde ela se perde em devaneios mitológicos. Sempre senti que as raízes de um indivíduo, desde que seguidas até longe, se perdem numa qualquer floresta virgem e mítica. É esse o fundo definitivo para além do qual não podemos prosseguir.
(…)
De certo modo estas «histórias» são reais, representam a minha maneira de viver, o meu particular destino. E a dominante de tal destino é uma solidão profunda, um distanciamento das coisas da vida de todos os dias.
A solidão é o reagente que leva a realidade ao ponto de fermentação, à decantação das formas e das cores.”


Bruno Schulz

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