sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Novo objecto de desejo: Maura Lopes Cançado


Estou de novo aqui, e isto é — Por que não dizer? Dói. Será por isto que venho?

Estou no Hospício, deus. E hospício é este branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos; trémulo, exangue — e sempre outro.


Hospício são as flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro — como o que não se pode ainda compreender. São mãos longas levando-nos para não sei onde — paradas bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensurá­veis: Hospício é não se sabe o quê, porque Hospício é deus.

Acho-me na Seção Tiüemont Fontes, Hospital Gustavo Riedel, Centro Psiquiátrico Nacional, Engenho de Dentro, Rio. Vim sozinha. O que me trouxe foi a necessidade de fugir para algum lugar, aparentemente fora do mundo. (Ou de —————— Era tão grave. Proteção? Mas aqui, onde não me parecem querer bem e sofri tanto?) ("Não me querer bem" talvez seja mi­nha maneira única de ser amada.) Havia lá fora grande incompreensão. Sobretudo pareceu-me estar sozinha. Isto faria rir a muitas pessoas: eu trabalhava no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, onde me cercavam de grande atenção e muito carinho. Reynaldo Jardim é o diretor e me queria bem deveras. Ó, o zelo de todos. O zelo de Reynaldo. Naturalmente, penso, por eu haver antes estado aqui, saindo para trabalhar lá. A curiosidade em torno de mim: " — Esta é Maura Lopes Cançado, a que escreveu No quadrado de Joanna? — O conto é realmente bom, mas pensar que a personagem dele é louca catatônica pas­sou a aborrecer-me (como as pessoas são estúpidas, ainda se pretendem ser gentis). Minha posição me marginalizava. As coisas simples não se ajustavam a nada em que eu pudesse tocar, sen­tir. Era a impressão.

Quanto tempo trabalhei no jornal? Reynaldo Jardim, Fer­reira Gullar, Assis Brasil, e tantos outros, meus protetores. Quase todos os bons intelectuais da nova geração. E de rir. Protetores no bom sentido, como diriam. Mas que bom sentido, se me fizerem sofrer tanto? Por que, como chegar a eles, sem desespe­ro? — E que ignoram o quanto me custa uma palavra simples, como fui sozinha desde a infância. E de amá-los — demais e inútil — passei a odiá-los: por não me compreenderem. Não saberão jamais o quanto podem fazer sofrer uma criatura tímida e necessitada como eu: porque sinto vergonha. Gullar pareceu can­sado de mim. Ainda vendo-o imoto e inacessível não consegui desprezá-lo. Minha necessidade de afirmação deixava-me agressiva, movia-me pela redação do jornal o dia todo sem sorrir. Minha timidez. Enquanto meu ser se enrijecia, voltava-me para mim mesma à espera de um milagre que me projetasse, os ou­tros me olhando atónitos (é ainda mais do que No quadrado de Joanna, é ainda mais). Nada acontecia a não ser eu, me repetindo dia a dia. Minha ignorância.

Destruí tudo agredindo Reynaldo Jardim. Foi uma briga feia. Briguei sozinha. Ele não ousaria ferir-me, pois tem sua própria maneira de demonstrar amor. Consegui escandalizar Carlos Heitor Cony, que já foi quase padre, é facilmente escandalizável. Além de julgar estar ferindo Reynaldo, ao falar coisas inverossímeis e degradantes a meu respeito. Algo em que pensar: se tem alguma afetividade por mim deve ter sofrido. Como me destruí.

Falei de mim tantas vilezas (já fiz isto com mamãe. Estou muito cansada). Telefonei antes de vir a dona Dalmatie, enfermeira minha amiga. Levou-me a doutor J., pedi-lhe que me aceitasse no hospital:

- Por favor, doutor J., não sei que fazer lá fora. Estou des­truída. Aceite-me no hospital. Briguei no jornal. Ele (surpreendente) pareceu compreender. Dona Dalmatie não estava de acordo:

- Tenho um sítio sossegado. Passe uns dias lá. Quanto ao emprego, daremos um jeito. Você tem péssima memória, hein, Maura? Não me conformo em vê-la de novo aqui.

- Tenho boa memória, sei o que me espera. Mas vim dis­posta a ficar. A senhora não pode entender. Lembra-se de que me disse outro dia que não saí daqui recuperada? Está tudo difícil.

Fomos as duas ao IP (Instituto de Psiquiatria), onde se fa­zem internações. Ela, de lá, foi para casa. Voltei sozinha para este hospital. Doutor J. já não estava mais. Mandaram-me para a Seção Cunha Lopes (não pertence a doutor J.) A guarda que me recebeu (monstro antediluviano), Cajé, me fez imediatamen­te trocar o vestido pelo uniforme do hospital. Enquanto trocava de roupa, recebia dela as intimidações:

- Não banque a sabida nem valentona. Pensa que por ser bonita vale mais do que as outras? Saiba lidar conosco (guardas), que se dará bem. Queixas ao médico não adiantam. Vocês são doentes mesmo. Compreendeu?" Claro que compreendi, Cajé. Estou aprendendo há três anos.

Depois do jantar deram-me um quarto e dormi sozinha até o dia seguinte. Estava exausta. De manhã chovia. Puseram-me no pátio junto com as outras, percebi que nenhuma funcionária se dirigia a mim. Ah, não: dona Aída se dirigiu, dando-me um empurrão, à hora do café: " — Entre na fila. Que está esperando? Quer que te demos café na boca?". Entrei na tal fila, ainda muito cansada para revidar a agressão (das outras vezes em que estive aqui esta fila não existia).

Depois do café fui para o pátio. Ou, fui mandada para o pátio. Ainda chovia muito. Parecia-me um sonho: àquelas mu­lheres encolhidas de frio, descalças, fantásticas. Eu nem sequer pensava. Via, como se nada em mim fosse mais que os olhos, recomeçando num pesadelo (voltei, meu deus, voltei). Durante o almoço veio chamar-me uma guarda:

— O Diretor quer falar-lhe". Devia ficar estupefata (por motivos óbvios), mas nem ao menos fiquei surpresa. Se ameaçassem tirar-me os olhos, não encontrariam em mim qualquer reação. E as coisas pareciam caminhar inexoráveis.


in Hospício é Deus

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