domingo, 8 de novembro de 2015

«É a angústia, sabe? Esta fodida angústia que arrasta isto tudo…»


«Ao abrir a porta da gerência, envidraçada com vidro japonês, Erdosain quis retroceder; compreendeu que estava perdido, mas já era tarde demais.» Assim começa Os Sete Loucos de Roberto Arlt, um autor que me vinha recomendado pelo Cortázar, desde a minha última viagem pelas livrarias madrilenas.

Não é uma leitura divertida, muito pelo contrário. Apesar da verve quase folhetinesca, a narrativa jamais abandona a sua curva descendente, transbordando de angústia por todos os escaninhos: «A esta atmosfera de sonho e inquietude que o fazia atravessar os dias como um sonâmbulo, Erdosain chamara “a zona da angústia”.»

Os acontecimentos complicavam-se… e ele, entretanto, quem era no meio daquelas engrenagens que o iam cercando, adiantando-se cada vez mais na sua vida, submergindo-o num lodaçal que o exasperava? Além disso, havia aquilo… a incapacidade de pensar, de pensar através de um raciocínio de linhas nítidas, como são as jogadas de xadrez e uma incoerência mental que o enfastiava contra todos.
(…)
Tinha agora a sensação de que a sua alma se tinha apartado para sempre de todo o afecto terrestre. E a sua angústia era a de um homem que traz na sua consciência uma jaula sinistra onde, entre espinhas de peixe, bocejam, tingidos de sangue, elásticos tigres, afilando o olho para preparar o grande salto.

O livro está pejado de boutades geniais - como por exemplo, «Aquilo a que chamamos loucura é a falta de hábito do pensamento dos outros» -, impossível citar todas. Mas o magma essencial localiza-se nas muitas vidas humilhadas e ofendidas na sua aspiração mais vital. Todas as personagens falam de como esta vida não é o que devia ser e de como podia e devia ser muito mais: «Porque razão a felicidade humana ocupa tão pouco espaço?»

- Deve ser triste.
- Sim, é muito triste ver os outros felizes e ver que não compreendem que alguém será um desgraçado toda a vida. Lembro-me de, à hora da sesta, entrar no meu quarto e, em vez de tratar da roupa, pensar: Serei criada toda a vida? Já não me cansava o trabalho, mas sim os meus pensamentos. Nunca reparou como são obstinados, os pensamentos tristes?
(…)
- Você teria coragem de se matar?
- Não é o que você diz. Já não há coragem nem cobardia. Vem do fundo de mim a sensação de que o suicídio é como ir arrancar um dente. Quando penso assim, tudo em mim descansa. É certo que eu tinha pensado noutras viagens e noutras paragens, noutra vida. Há algo em mim que deseja tudo o que é bonito e delicado. Muitas vezes pensei que sim… suponhamos esses quinze mil pesos que vou levantar amanhã… podia ir para as Filipinas… para o Equador… para recomeçar a minha vida, casar-me com uma donzela milionária e delicada… estaríamos deitados à hora da sesta em espreguiçadeiras debaixo de coqueiros, e os negros oferecer-nos-iam laranjas descascadas. E eu olharia tristemente para o mar… Sabe, esta certeza que diz que para onde quer que vá olharei tristemente para o mar… esta certeza de que nunca mais serei feliz… no início enlouqueceu-me… e agora resignei-me…

«Já não há coragem nem cobardia.» Apenas uma angústia estranhamente familiar. No final, nem crime nem castigo. Nenhuma redenção, apenas simulacros. Ontem fui assistir a uma «homenagem» ao Vítor Silva Tavares, que dizia que uma obra de arte para ser obra de arte tem de ter sobretudo inferno. Pois aqui, sobeja.

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