terça-feira, 22 de julho de 2008

A Esteticização da Vida Moderna


«Não existem livros morais ou imorais. Os livros são mal ou bem escritos. É tudo.»

O Retrato de Dorian Gray é um livro fascinante, embriagante e alucinatório. Um veneno misterioso perpassa pelos aforismos amorais de Lord Henry, pela estecização da experiência implementada por Dorian Gray e pela cadência musical das palavras reunidas por Óscar Wilde.

Dorian Gray é um jovem, belo e inútil, um Adónis de virtudes e inocência que aceita posar para o pintor Basil Hallward, sem perceber o poder sublime da sua beleza. A consciência desse poder e a semente do vício brotam nele no dia em que conhece Lord Henry e contempla o seu próprio retrato finalizado. Qual jovem Narciso ou Fausto, Dorian Gray formula então o desejo de que a sua imagem jovem e bela se perpetue no seu rosto e que a degradação e a velhice atinjam apenas o seu retrato.

Cumprido misteriosamente o seu desejo, Dorian Gray empenha-se numa vida de prazeres mundanos e vícios, cujo marca perturbadora ele vai observando no seu retrato, cedendo a todas as tentações, de modo a minar todos os códigos do monstruoso, do imoral e do ilegal, sob o altar do seu valor estético. «A consciência e a cobardia são uma e a mesma coisa. A consciência é apenas a marca comercial da firma». Dorian Gray procura saborear ao extremo o sabor de todas as tentações e pecados, com o objectivo de escapar ao sofrimento – avaliando cada acto pelo valor estético da sua sensação – em busca de uma juventude e alegria sem limites. Tudo se pode converter num prazer delicioso, até mesmo a acção mais abjecta, desde que repetida suficientes vezes – esta é a regra do vício que comanda as demandas de Dorian e o transforma em espectador da sua vida como se de uma obra de arte se tratasse.

«A vida não se rege pela vontade ou pelas intenções. A vida é uma questão de nervos, de fibras, de células lentamente edificadas onde se oculta o pensamento e a paixão tem os seus sonhos. Podes julgar-te seguro e achares-te forte. Mas a tonalidade circunstancial de uma sala, ou um céu matinal, ou determinado perfume que em tempos apreciaste e traz consigo subtis memórias, um verso de poema esquecido com que de novo te deparas, a cadência de uma peça musical que deixaste tocar… digo-te, Dorian, que é dessas coisas que depende a vida.»

Ao desafiar todas as leis da afectividade em nome de uma salvação da alma pelos sentidos, Dorian Gray acaba por perder a sua alma, sob o choque perpétuo das experiências intensas, restando-lhe apenas a sua imagem degradada para contemplação: um espectador de si próprio reduzido ao mistério do visível, que ousa ultrapassar num acto de fúria contra o seu duplo e que lhe arrebata a vida. As grandes paixões devem vergar-nos ou partir. Ou nos matam ou acabam por fenecer. As mágoas e os amores superficiais perduram enquanto os grandes amores e dores são eliminados pela sua própria plenitude, como se houvesse no homem um mecanismo de defesa, semelhante á estrutura traumática, que o protege de experiências intensas ou o arruína para toda a vida.



O fim trágico-cómico de Dorian Gray resulta da vontade que o protagonista sente em experimentar uma última sensação, o castigo – a religião e a literatura sempre afirmaram que todo o crime tem um castigo – e na impossibilidade de realização deste último desejo. O único carrasco que resta no púlpito é o olhar dos outros que atravessa o nosso reflexo no espelho e perturba o curso da aventura individual que determinámos para nós. Numa época em que tudo faliu, em que cadafalso nos podemos sacrificar senão no no altar do próprio?



«A verdadeira razão por que todos nós pensamos tão bem dos outros é que todos temos
medo de nós próprios. A base do optimismo é o puro terror.
»

domingo, 13 de julho de 2008

Em Nome da Terra



Depois do êxtase de Na Tua Face, optei por ler mais um livro de Vergílio Ferreira para ver se me curava da obsessão. Escolhi Em Nome da Terra, um conjunto de reflexões de um homem idoso, despejado num lar pela filha, que se dedica a recriar a imagem do corpo e da história da sua mulher, até que a terra o engula com o seu apelo derradeiro.

A descrição da vida no lar é extremamente bem conseguida: um conjunto de seres aposentados de ser gente, à espera da morte enquanto vão ruminando as contas finais com a vida. Foi exactamente o que senti quando entrei pela primeira vez num lar há uns anos atrás para visitar uma vizinha minha com cara, cabelos e mãos de bruxa que alegrou a minha infância com a sua extrema bondade, doces e alguns bibelots, e que o meu coração sentiu sempre como uma avó autêntica. Era uma senhora muito magra e independente até que os filhos a decidiram colocar num lar, após a morte do marido, de modo a poderem apoderar-se com alguma antecipação dos bens da velhota, sem terem que esperar que o destino acertasse as contas com ela.

«Os filhos são uma invenção da nossa fraqueza, o modo mais barato de se ser eterno. Um modo proletário de ser Deus (…). Porque um filho, pois, é um ser sagrado. Mas o sagrado está também neles por acréscimo e quando se tira o acréscimo o que lá fica é quase sempre um estupor» (p. 39).

Após alguns meses, decidi visitá-la porque lhe tinha prometido que, mesmo vivendo em Lisboa, nunca me esqueceria de a visitar sempre que fosse ao Algarve. Ela não sabia que era e será sempre uma das figuras mais encantadoras dos meus tempos de criança tímida. Foi uma das visões mais deprimentes da minha vida: ao entrar na sala de estar, contemplei rapidamente um conjunto de velhos sentados em torno de uma televisão cujo som ensurdecedor não os despertava da espera obstinada da morte. Nos seus olhos a marca cinzenta do abandono e da desistência. Todos juntos mas irremediavelmente só sem paciência nem alento para atentar na desistência alheia.
Com algum esforço, lá reconheci a minha adorada vizinha com cara de bruxinha, com os cabelos brancos, outrora compridos até aos joelhos que usava sempre atados e cobertos por um lenço, curtos e soltos junto ao pescoço. Estava muito bonita, parecia agora uma boneca aristrocrata alva numa quietude partilhada com os anjos. Completamente alheada de tudo o que acontecia em torno de si, olhava-me sem reconhecer e falava com a minha mãe num delírio comovente que, ela julgava ter lugar à 30 anos atrás, quando existia apenas o meu irmão mais velho e ela ainda vivia ao nosso lado, útil, independente e bondosa. Terminada a hora do lanche que consistia num frugal pão com manteiga e copo de leite, despedimo-nos e decidi que nunca mais lá voltaria, para não ver os seus olhos cinzentos líquidos de ruína e recordações a sós com algumas contas ainda por liquidar.

«Gostava de me sentir livre de tudo, a gente carrega imensas coisas às costas, mesmo sem darmos conta, mesmo sem sabermos. As coisas do nosso uso, as pessoas das nossas relações, os hábitos da nossa monotonia, as ideias do nosso sustento mental. Tudo isso ocupa um espaço enorme do nosso ser (…). O homem investe-se nas coisas e no resto porque é carga a mais para si. Deus fez-nos cheios de buracos na alma e o nosso dever é tapá-los a todos para navegar (…). Prepararmo-nos para a morte é irmos morrendo tudo até ficarmos só cheios de nós» (p. 39).

Era qualquer coisa como isto que ouvi o José Saramago dizer recentemente na apresentação do novo romance do Mia Couto: vivemos com a ilusão de que sabemos o que a morte é, mas quando nos deparamos com essa experiência, percebemos que se trata de um mistério que nos ultrapassa. Dizia o Saramago que quando o pai morreu percebeu que não sabia que ele tinha sido, mas que o melhor que podemos fazer com as pessoas velhas é deixá-las em paz pois elas têm tanto a resolver consigo antes de poderem partir.

Temo que o mesmo me aconteça com o meu pai. Gostava de saber a sua história, as suas vitórias e as suas derrotas e falhas, as recordações mais queridas e aventuras mais despropositadas da sua infância e juventude, mas a sua complicada história com a minha mãe, onde eu vim a nascer enquadrada, tornou impossível este diálogo, porque conflituante com a outra versão dominante, fazendo da nossa história de amor entre pai e filha, uma ausência de ternuras ditas em voz alta. Porque estas, as palavras de ternura e partilha, nunca assentaram bem nos campos de batalha.

Mas será que alguma vez os filhos compreendem ou suspeitam do ser gente dos pais? E os pais será que conseguem adivinhar a verdadeira natureza dos filhos? Seremos alguma vez capazes de retirar o acréscimo de sagrado e mágoas que acumulamos ao longo de uma vida?

A morte é talvez o único striptease magistral e eu gostava de o fazer aos 99 anos.