sábado, 31 de dezembro de 2011

There is an obvious change in me!

O ano termina com mais um enigma resolvido. Sei finalmente o nome da música enigmática que tantas vezes me ofereceu o êxtase pela sua dança.



Bless this hour of meditation,


Just us and medication.


Can’t say it ex-ex-ex-ex-explicitly.


All my friends became my family!


There is an obvious change in me!


I tripped, and fell in love with you.


Honest, you do what I aim to.


We looked at each other,


And our eyes were clear.


Love your family, you do well, and so sincere.


I tripped, and fell in love with you.


Dance in the light, honest you do.


We looked at each other,


And our eyes were clear


Love your family, you do well, and so sincere.


I tripped!


Entangled in Vertigo, here we go,


And now you know…


how I’ve felt all along.


Decadence and Charity coming on strong.


I told myself I’d never write a love song.


We’ve known each other our whole lives


Under circumstance and sacrifice.


Now we’re together un-ex-expectedly.


All my friends became my family!


There is an obvious change in me!





E venha de lá um feliz 2012!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

2011 e os meus livros






Pela primeira vez, deu-me vontade de olhar para o passado e pensar o ano que está quase a terminar. Conjugando os pensamentos que anotei no meu diário, os acontecimentos que recordo e as leituras que registei no blog, chego à conclusão de que tudo o que aprendi pelo coração já o tinha previamente escrito algures. Como um conto que escrevi há mais de dois anos e que só hoje posso realmente entender. Porque o que me doeu este ano foi o cérebro e o seu pensamento atrasado; só se pode compreender de facto com as entranhas.




2011 foi um ano tramado: um ano de crise interna.



Um ano que começou mal. Janeiro na Mouraria bafienta e o conto profético Trinta Anos de Ingeborg Bachmann. A sensação de ter caído numa armadilha. As noites desassossegadas, duvidando de tudo, até da própria dor. Suspeitando que nada me ludibria tanto como essa moinha persistente. Sempre a pensar mais à frente ou mais atrás, incapaz de decidir o que é a felicidade porque tudo pesa e eu estou nua e gelada, ocupada por uma raiva que grita: "Despida de desejo venho até vós!" E no momento seguinte, uma vontade de esquecer tudo, ser humilde, pedir perdão e socorro e ganhar a ternura. Ou estalar os dedos, apenas, dizer estou boa e ficar boa. Sentir o vazio em mim e perceber que a minha fome é afinal maior que o amor, de uma teimosia que não está de acordo com a minha inteligência. Nem escrever consigo, apenas cair. “A destruição está em marcha. Poderei vir a falar em felicidade, se este ano não me matar.”




Mudo de casa. Cais de Sodré. Longas jornadas na cama, endurecendo o coração com a beleza das palavras de Djuna Barnes e fumando compulsivamente. Percebo que começo a conhecer-me com alguma segurança. Ganho alguma tranquilidade e admito a companhia de alguns. O inverno teima em persistir. Em Herberto Hélder, encontro uma companhia para a minha indignação e torno a sentir-me forte, bela e brava. E aí vou eu pela floresta vermelha afora, ignorando neves, e dizendo com alguma alegria principiante: “que se foda!”. Está tudo bem, o mundo está certo na sua desadequação.



A Primavera traz-me O Apogeu de Miss Jean Brodie e a promessa de um amor bruto como o primeiro. Perco o apetite, decido confiar e sentir, sentir muito. Com o peito cheio, descarto os tiques, as frases de pacotilha e os espólios de guerra e recebo uma doçura desconhecida e deliciosa. Mudo mais uma vez de casa. Desta vez, optimista. Passo as noites a namorar com o Augie March e a acreditar que podemos ser fáceis, dados e aceitar o que vier. “Primeiro tem de se testar aquilo de humano com que se consegue conviver. E se o mais elevado estiver naquela taberna vazia e abafada, com as moscas, o rádio quente a zumbir entre jogadas e a cerveja de Sox Park, o que poderá fazer-se senão aceitar a mistura e dizer que a imperfeição é sempre a condição do que encontramos? Do mesmo modo, os meus olhos arranhados verão sempre a grande beleza arranhada. E deuses podem aparecer em qualquer lugar”.




O verão desfaz a ilusão. Vou-me abaixo. Sinto-me encurralada, o peito socado. Leio Pan de Knut Hamsun e consagro-me ao mistério da caça e do caçador. Os dias soalheiros são esculpidos por um estoicismo de pedra e cal, dias bonitos em que não fornico, e as noites bombardeadas por anjos e demónios. Nas Histórias de Amor de Robert Walser, descubro-me Circe e percebo então que fui mal aconselhada na minha lucidez. Mas ainda tenho um coração que ri, enquanto se esvai em sangue pelas pedras esquentadas da calçada lisboeta. It’s all right, ma…



A Aprendizagem começa a solidificar-se no Outono, quando regresso perdida da caça com o nome de Lóri. Os sonhos amputados por solidariedade, por ver que todos saíam tão derrotados pelo mundo. E termina com o diagnóstico de Raskólnikov, que é afinal o meu: orgulho ferido. Mas isso, eu apenas percebo uns dias após o Natal, depois de reler Coração, Solitário Caçador. Ou melhor: vejo. Por uns instantes, perco o medo de levar o pensamento demasiado longe, penso, e de súbito, vejo-me. Vejo-me dividida em duas forças contrárias, uma força guerreira, afirmativa e optimista que quer ser feliz e fazer muitas coisas e outra que teima na inércia e na descrença, fazendo trincheira de uns quantos desgostos, ofendida por o mundo não ser tal e qual o seu desejo. Que eu me boicotava a mim própria já sabia, mas nunca o tinha visto com olhos de ver. O que andou aqui dentro a espernear este ano todo foi a minha parte adolescente – está, portanto, resolvido o enigma de apenas me apetecerem romances de formação.

O ano termina bem. Não tenho nada de grave, apenas dores de parto. O que vou fazer daqui em diante é outra guerra, pois não posso simplesmente açoitar a menina mimada que está magoada: é ela quem sonha mais alto e escreve com maior delírio e força. “Esta é realmente a minha embaraçosa chegada à maturidade. Não serve para espectáculo nem dá como exemplo ou símbolo. Tenho de inventar a minha vida verdadeira.” Nenhum osso partido.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

There is no cure for curiosity.

“Listen”, he said. “The trouble with you is that you don’t have any real kindness. Not but one woman I’ve ever known had this real kindness I’m talking about.”
“Well, I’ve known you to do things no man in this world would be proud of. I’ve known you to -”
“Or maybe it’s curiosity I mean. You don’t ever see or notice anything important that goes on. You never watch and think and try to figure anything out. Maybe that’s the biggest difference between you and me, after all.”
(…)
“The enjoyment of a spectacle is something you have never known”, he said.
Her voice was tired. “That fellow downstairs is a spectacle, all right, and a circus too. But I’m through putting up with him.”
“Hell, the man don’t mean anything to me. But you don’t know what it is to store up a whole lot of details and then come upon something real.”


Carson McCullers, The Heart is a Lonely Hunter

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Homenagem a Robert Walser








UMA HISTÓRIA DE AMOR INFELIZ





Era uma vez um homem e uma mulher e traziam ambos os corações apodrecidos pelo medo quando se encontraram.



No caso do homem, o medo mirrara-lhe o coração já pequenino, fazendo-o sentir-se como uma lebre correndo num circuito asfixiado. Como artimanha, o homem fingia ser muito grande, convencendo todos de que era bonito, inteligente e terno.


No caso da mulher, o medo dilatara-lhe o coração, fazendo-a sentir-se como uma mónada esquecida na infinitude voraz. Como artimanha, a mulher fingia ser muito pequena, a todos convencendo ser menos bonita, inteligente e terna do que realmente era.


Deram-se ilusões de paixão. A mulher julgou que envolta nos braços pesados de um homem grande jamais se sentiria sozinha; acordava, no entanto, de manhã, amachucada a um canto, ainda mais minúscula que na noite anterior. O homem pensou que o amor de uma mulher pequena seria económico e portátil, reconfortando-o em toda a parte; deitava-se, no entanto, todas as noites com os músculos extenuados, como se carregasse um fardo pesado.


Mas quando se encontravam na cama, terra onde todos os duelos são justos e leais, despiam o medo e então o grande homem encolhia dentro do corpo alagado da pequena mulher, que se abria e o tragava.

Constataram, ao fim de alguns desencontros, que a insistente dissimetria os impedia de se inventarem nos olhos do outro. Separaram-se – e foi tudo (ou nada).

Sister, sister what did they do to you

the heart is a lonely hunter (i)

"But you haven't never loved God nor even nair person. You hard and tough as cowhide. But just the same I knows you. This afternoon you going to roam all over the place without never being satisfied. You going to traipse all around like you haves to find something lost. You going to work yourself up with excitement. Your heart going to beat hard enough to kill you because you don't love and don't have peace. And then some day you going to bust loose and be ruined. Won't nothing help you then."

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

sábado, 17 de dezembro de 2011

O poema ensina a voar








Na cabeça:
um par de asas atrofiadas
chamuscadas

pela pretensão

de tudo poder compreender
pela dor.

É preciso cair.

Nas mãos:

o susto de estar viva
numa terra vermelha
e hostil.
A volúpia
da vertigem
nas têmporas.
É preciso aprender

o orgulho ferido

e a humilhação.

Cair: é preciso.

Mutar o medo
que arranha
a pele parda e anémica
em carícia

e cair em si.

E,
então,
gritar com fúria certa:
“eis-me aqui, cansada,

pronta para começar a caminhar”.

Só o poeta pode trepar,
Feridas,
Rasgões
e estilhaços acima,
Até ao milagre das andorinhas retornadas.
E tudo compreender pela alegria.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A Arte da Queda




O poema ensina a cair


sobre os vários solos


desde perder o chão repentino sob os pés


como se perde os sentidos numa


queda de amor, ao encontro


do cabo onde a terra abate e


a fecunda ausência excede


até à queda vinda


da lenta volúpia de cair,


quando a face atinge o solo


numa curva delgada subtil


uma vénia a ninguém de especial


ou especialmente a nós uma homenagem


póstuma.




Luísa Neto Jorge

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Crime e Castigo




Tendo aproveitado a noite de feriado para resguardar a minha solidão no sofá, aproveito para fazer duas confissões ridículas. Os blogs e todas as personas cibernéticas servem afinal para isso, para nos confessarmos, são sucedâneos light da confissão cristã. Seguimos, talvez mais necessitados do que nunca, de nos confessarmos. Mas a maioria aproveita o novo espaço para continuar com a mesma farsa. E assim se ampliam egos pela internet fora, ad infinitum, para acariciar o desespero de andarmos todos tão desavindos. Resta apenas um narcisismo triste, comovente, que não dá nem para começar uma revolta menor.




Por isso tenho duas confissões tristes a fazer. E têm ambas a ver com o lendário livro de Dostoiévski, Crime e Castigo, que me aqueceu os ossos durante o último mês. Confesso que nunca tinha lido o livro antes. Foram várias as tentativas ao longo dos anos, mas a ansiedade derrotava-me sempre. E queria muito lê-lo, não só porque é um dos grandes livros do cânone ocidental, mas porque foi neste autor russo que, por um golpe do acaso aos treze anos, eu me decidi e escolhi a minha personalidade. Porque existem idades em que podemos apostar e escolher arbitrariamente que personagem queremos ser nesta farsa e os livros funcionam simultaneamente como drogas e como tábua de salvação. E assim naufraguei na identidade de jogadora, ganhei o riso astuto da adrenalina da vitória, embora saiba que a condição de vencedor é das mais matreiras e que nunca se roça tão de perto a ruína como quando somos levados por marés agradáveis. Mas... eis que me afasto da infâmia que pretendia e caio também eu no elogio narcísico de mim mesma: coitadinha de mim, tenho mostrado grande capacidade de sofrimento mas olhem que continuo de pé, orgulhosa na minha decadência... nada disso, peço perdão humildemente: rejeito o orgulho porque a sua ferida pode ser letal, mas já lá iremos.



A verdade é que tinha medo deste livro. Um medo visceral. O tom obsessivo dos primeiros capítulos deixava-me sem ar, um mal-estar que passava das letras para a pele. Tinha pesadelos desconcertantes e dormia como quem é sovada. E porquê? Porque o meu maior medo é matar. Confesso: tenho medo de matar. Mais uma fobia típica dos absurdamente racionais, certo, mas a questão vai mais longe. Tenho medo de ter medo de matar e de me começar a desafiar. Como fiz sempre com tudo o que me assustava: ir até lá espicaçar o monstro para me descobrir melhor, no risco e na excitação de me perder. Uma questão íntima, portanto.

A segunda confissão é que me apaixonei por Rodion Romanovitch Raskólnikov, um verdadeiro disparate emocional que só a Madame Bovary ousaria igualar. Afinal não existem regras mas o amor está mesmo colado à ponta do medo. Confesso que sempre preferi as personagens femininas porque são sempre as mais arriscadas e imprevisíveis e que, para além do Augie March e Antoine Roquentin, assim de supetão não me ocorrem mais personagens masculinas que tenha verdadeiramente admirado (tenho má memória, também é um facto); e se o primeiro admirei pela inteligência grata com que aceitava todas as vicissitudes, com o segundo partilhei de uma verdadeira intimidade existencial. Mas com o Ródia, a coisa foi diferente: une affaire d’amour. Uma questão de solidariedade, portanto.



Ródia: impossível não amar a tua irritabilidade, a tua compaixão, a tua revolta, a obsessão mental de quem se atira ao mundo com a indelicadeza de quem mal começou a viver, a vontade de ousar um passo original, a angústia que se segue porque não se aguenta tal enormidade e custa tanto desenvencilhar-se dos sentimentos alheios que se tomam por próprios e queridos, alternada com uma súbita indiferença e desprezo. A perspicácia que te corta na leitura certeira dos estratagemas dos outros, o nojo que pede que os desmascares, e um delírio subterraneamente conflituante que te diz para alinhar, que a partir do interior do jogo é mais fácil devorá-los, seguido do medo de te tornares semelhante e nada adiantar. Enfim, meu amor, angustias-te mais do que os demais, tanto sofrimento e afinal sofres apenas de orgulho ferido. Com legitimidade, é certo. Mas a vida ainda agora começou. E tu e eu ainda temos uma porta a que bater, enquanto o milagre e a punição se atrasam.



“O coto de vela havia muito que estava a querer extinguir-se no castiçal torto, iluminando palidamente, neste quarto miserável, o assassino e a prostituta, estranhamente reunidos para lerem o livro eterno.
(…)
- Agora só te tenho a ti – acrescentou Raskólnikov. – Vamos juntos… Eu vim a ti. Somos ambos malditos, então vamos juntos!
- Vamos aonde? – perguntou cheia de medo e, involuntariamente, deu um passo para trás.
- Como posso saber? Só sei, tenho a certeza, que iremos pelo mesmo caminho, e mais nada. Até ao mesmo destino!
Sónia olhava e não percebia nada. Apenas sabia que ele estava muito infeliz, infinitamente infeliz.
- Ninguém, deles, compreenderá nada se lhes falares – continuou Raskólnikov -, e eu compreendi. Preciso de ti, por isso aqui estou.”

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Este natal quero um museu de arte imaginário!



O espírito




Nada a fazer, amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;


E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.


Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:


Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.




Natália Correia

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Estranha forma de vida



Foi por vontade de Deus

Que eu vivo nesta ansiedade.

Que todos os ais são meus,

Que é toda minha a saudade.

Foi por vontade de Deus.

Que estranha forma de vida

Tem este meu coração:

Vive de forma perdida;

Quem lhe daria o condão?

Que estranha forma de vida.

Coração independente,

Coração que não comando:

Vive perdido entre a gente,

Teimosamente sangrando,

Coração independente.

Eu não te acompanho mais:

Pára, deixa de bater.

Se não sabes onde vais,

Porque teimas em correr,

Eu não te acompanho mais.


Amália Rodrigues

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O grande amor



"O poeta se faz vidente por um longo, imenso, e racional desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura, ele procura a si mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para guardar apenas a quintessência. Inefável tortura na qual tem necessidade de toda fé, de toda força sobre-humana, onde ele se torna, entre todos, o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito – e o Supremo Sábio! – Pois ele chegou ao Desconhecido."


Rimbaud, carta a Paul Demeny, 15 de Maio de 1871

"À pergunta habitual: ''Por que é que escreve ?'', a resposta do poeta será sempre a mais curta: ''Para viver melhor.''

Saint-John Perse

sábado, 19 de novembro de 2011

Time is a river


Time is like a river
made up of the events which happen,
and its current is strong.
No sooner does anything appear
than it is swept away
and another comes in its place,
and will be swept away too.

Marcus Aurelius

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

"daqui ninguém sai sem cadastro."


NOTAS PARA O DIÁRIO

deus tem que ser substituído rapidamente por poemas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis, vivos e limpos.

a dor de todas as ruas vazias.

sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abismo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo.

a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário — o paraíso sabe-se que chega a lisboa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no cimo do mastro, e mandar arrear o velame.
é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem cadastro.

a dor de todas as ruas vazias.

sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o filme acabou. não nos conheceremos nunca.

a dor de todas as ruas vazias.

os poemas adormeceram no desassossego da idade. fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas... e nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida — e a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.

a dor de todas as ruas vazias.


Al Berto, in "horto de incêndio" assírio & alvim, 2000

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Que nenhum filho da puta se me atravesse no caminho!

SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN

(...)
Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui pra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.
O espírito que dá a vida neste momento sou EU!

Que nenhum filho da puta se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo,
É comigo, com Deus, com o sentido – eu da palavra Infinito...
Prá frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso...
Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,
De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,
De ser cadela de todos os cães e eles não bastam,
(...)


Álvaro de Campos

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Merci, chérie!










Atravessaram o atlântico e chegaram hoje numa caixinha amorosa e com palavras carinhosas. O carteiro notou o meu sorriso infantil e expectante. Irei sempre delirar com livros que chegam por correio, mesmo que sejam encomendados da amazon, do price minister ou da wook, porque me recordam o frenesim em que ficava nos dias da infância, quando os livros chegavam também por correio, vindos de longe, para alegrar os dias chuvosos.

domingo, 13 de novembro de 2011

DOBRADA À MODA DO PORTO


Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo ...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).
Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

Álvaro de Campos

sábado, 12 de novembro de 2011

Profanações íntimas





De quando em quando sou visitada por uma frase misteriosa que me ocupa. De onde surge, não sei nem me importa muito. A questão é sempre o que fazer dela, que espaço lhe dar ou criar para que ela possa habitar o real e libertar-me da sua dicção interior.

A mais recente é: Viajando no tempo, a dor sedimenta-se, faz-se pele ressequida e o papel já não a corta. A história onde se aninhará não sou ainda capaz de a escrever: falta-me tempo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Cenas de caça: Bacantes



«[…] “Vamos, ponde-vos em toda a volta e agarrai no tronco, ó Ménades, para apanharmos a fera trepadora, a fim de que ele não vá revelar as danças secretas do deus”. Milhares de mãos se deitaram ao abeto e o arrancaram da terra. Sentado nas alturas, das alturas é atirado e, no meio de milhares de gritos, cai ao chão Penteu. Bem compreendera que a desgraça estava perto.
A primeira a começar o ritual do morticínio é a mãe, que cai sobre ele. Penteu atira com a mitra que tinha sobre o cabelo, para que, reconhecendo-o, o não imolasse a desventurada Agave. Toca-lhe na face e diz: “Sou eu, ó mãe, o teu filho Penteu, a quem deste à luz no palácio de Equíon. Compadece-te de mim, ó mãe, não sacrifiques o teu filho por causa dos meus desvarios”.
Com a boca a espumar e revolvendo os olhos em todas as direcções, sem saber pensar direito, e dominada por Baco, não a persuadiu o filho. Agarra-lhe o antebraço esquerdo, apoia o pé no flanco do desventurado e desarticula-lhe o ombro, não pela sua própria força, mas pela destreza que o deus infundira em suas mãos.
Do outro lado actuava Ino, dilacerando as carnes. Antónoe e o bando todo das Bacantes assenhoravam-se dele. Por todos os lados se erguia um clamor: ele gemia com o alento que lhe restava, elas soltavam gritos de triunfo. Levava uma o braço, outra um pé ainda calçado. Desnudavam-se as costelas dilaceradas pelas unhas. Todas as mãos estavam ensaguentadas das carnes de Penteu atiradas como quem joga à bola.»

Eurípedes, As Bacantes, v. 1105-1140

Cenas de caça: Diana




“ora, é em nós que fulgura o astro luminoso, é na treva das nossas memórias, na grande noite constelada que trazemos no nosso seio, mas da qual fugimos, refugiando-nos na ilusão do dia a dia. Aí confiamo-nos à nossa língua viva. Mas por vezes, entre duas palavras de uso quotidiano, deslizam algumas sílabas das línguas mortas: palavras-espectro que possuem a transparência da chama em pleno meio-dia, da lua no azul do céu; mas desde que as abriguemos na penumbra do nosso espírito, elas são de brilho intenso: que deste modo os nomes de Diana e Actéon restituam, por um instante, os seus sentidos ocultos às árvores, ao veado sedento e à água, espelho da impalpável nudez”.



Pierre Klossowski, O Banho de Diana, Lisboa: Cotovia, 1989 (p. 9-10).

sábado, 5 de novembro de 2011

decifra-me, meu amor, ou serei obrigada a devorar



Clarice Lispector reescreve a narrativa que inaugurou o Ocidente e nos permitiu, criando por sua vez uma odisseia feminina em que Ulisses é agora o homem que espera pela sua mulher. Uma mulher que amputou a sua dor e se afastou dos outros por sentir que todos saíam profundamente derrotados pelo mundo. Uma mulher perdida que regressa não da guerra mas da caça. “Ela conhecia o mundo dos que estão sofridamente à cata de prazeres e que não sabiam esperar que eles viessem sozinhos. E era tão trágico: bastava olhar numa boate, à meia-luz, os outros: era a busca do prazer que não vinha sozinho e de si mesmo. Ela só fora, com alguns dos seus homens do passado, umas duas ou três vezes e depois não quisera mais voltar. Porque nela a busca do prazer, nas vezes que tentara, lhe tinha sido água ruim: colava a boca e sentia a bica enferrujada, de onde escorriam dois ou três pingos de água amornada: era a água seca. Não, havia ela pensado, antes o sofrimento legítimo que o prazer forçado.” (p. 92). Uma mulher em travessia pela sua carne viva.


A aprendizagem da mulher começa pelo convite paciente do homem: “Esperarei nem que sejam anos que você também tenha corpo-alma para amar. Nós ainda somos moços, podemos perder algum tempo sem perder a vida inteira. Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro (…). Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que a nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o nosso pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos do que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de pagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia. Mas eu escapei disso, Lóri, escapei com a ferocidade com que se escapa da peste, Lóri, e esperarei até você estar mais pronta.” (p. 40-41).

E a mulher começa a despir-se para poder ir ao seu encontro. O outro é o nosso ponto de chegada. Mas antes é preciso tocar em si própria e no mundo, usando de toda a crueldade, aproveitando a ferida aberta para se conhecer melhor. Primeiro, com movimentos histéricos de animal libertado, enfrenta a sua dor: “então do ventre mesmo, como um estremecimento longíquo de terra que mal se soubesse ser sinal de terremoto, do útero, do coração contraído veio o tremor gigantesco duma forte dor abalada, do corpo todo o abalo – e em subtis caretas de rosto e de corpo afinal com a dificuldade de um petróleo rasgando a terra – veio afinal o grande choro seco, choro mudo sem som algum até para ela mesma, aquele que ela não tinha adivinhado, aquele que não quisera jamais e não previra – sacudida como a árvore forte que é mais profundamente abalada que a árvore frágil – afinal rebentados canos e veias” (p. 11). Descobre que a vida é esse estreitamento no peito e que tem sido apenas uma pequena parte de si.


Mas ela ainda não está a salvo: é necessário enfrentar o silêncio visceral das noites de terror para se chegar aos pensamentos sobrenaturais das madrugadas indizíveis: “tenta-se em vão ler para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarcá-lo, inventar um programa, frágil ponte que mal nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã. Como ultrapassar essa paz que nos espreita. Montanhas tão altas que o desespero tem pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça se inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor. Nenhum galo possível. Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio? Desse silêncio sem lembrança de palavras (…). E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente” (p. 30-32).


E então ela deixa de entender, porque compreender foi sempre um erro que impossibilitou a rara adivinhação. “O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma benção estranha como a de ter loucura sem ser doida. Era um desinteresse manso em relação às coisas ditas do intelecto, uma doçura de estupidez” (p. 37). E o silêncio que nunca mais se esquece aninha-se no seu colo, assombrando-lhe os gestos e reclamando que o seu coração se apresente nu e submisso perante o Nada. Mas o Nada é um abismo, que convida à vertigem e ela chega ao impasse de si mesma, assusta-se, quer recuar, telefona ao homem que a aguarda com fidelidade, confessa a sua escuridão, o mistério de não saber como estar viva e este responde: Aguente. E ela aguenta, arrisca o grande perigo – a alegria, e alcança por fim o grande susto de estar viva, a grande dor e a alegria mansa.


E, finalmente, mulher com um corpo habitado, sem culpa nem gratidão, ela vai ao encontro do seu homem, que a recebe de joelhos pois a mulher que regressa de tão longas jornadas é a mãe, desabrochada em rosa vermelho-sangue. “E de súbito o sobressalto da alegria: notava que estava abrindo as mãos e o coração mas que se podia fazer isso sem perigo! Eu não estou perdendo nada! Estou enfim me dando e o que me acontece quando eu estou me dando é que recebo, recebo (…). Não havia pois mais avareza com seu vazio-pleno que era a sua alma, e gastá-lo em nome de um homem e de uma mulher” (p. 128-129).


“ – Amor será dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se pode dar de si, disse Ulisses.
- Não sei, meu amor, mas sei que meu caminho chegou ao fim: quer dizer que cheguei à porta de um começo.
- Mulher minha, disse ele.
- Sim, disse Lóri, sou mulher tua”
(p. 138).



Querida V.,

Obrigada pelo livro e pela dedicatória cúmplice. A Mariana foi apenas um faz de conta de amor, “faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que ela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não preciava morrer de saudade (…), faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro” (p. 12).


Mas eu sempre fui mais Lóri e seguirei sendo porque também eu sou mais forte do que eu. Faltava-me este livro para me auxiliar na dor e na alegria. Dorida e misteriosa, vou continuar a ocupar-me e a alimentar-me desse corpo-a-corpo comigo mesma e com a vida, ganhando e perdendo, mas amando-me com todo o despudor de que for capaz. Porque o abrigo do homem é a mulher e o abrigo da mulher é a mulher.



Um beijo com amizade e saudades.

Eurídice


“Vai, cai, levanta-te, faz o que te aprouver. Não te consegui evitar. Nem a ti, nem à tua sombra. Nem ao teu pó, se te afundares. Fui tua. Conheci o teu reinado e não me envergonho. Não quero essa coroa. Porque é outra coisa que quero: ser mulher. Mulher até ao fim. Que sofre. Que, devendo reinar, o consegue através disto: submissão.
Mulher, repetiu de novo. Com aquela racha entre as pernas, no seu baixo-ventre. Uma falha mas daquelas, que como tu próprio me disseste, nas Sagradas Escrituras, longe de serem encaradas como privações, são chamadas tesouros.
(…)
O que ele tentava fazer era evidente. Ela já não precisava fingir não perceber. Sentiu a gaveta abrir-se, depois o movimento do braço que retirava o revólver.
(…)
O cano gelado da arma foi encostado às suas vértebras, um pouco abaixo do seio direito. Embora estivesse equipado com um silenciador, ela apercebeu-se da detonação e sentiu a bala penetrar-lhe a carne.
Era, então, isto que tu querias, pensou.
(…)
Levantou-se em silêncio e dirigiu-se à casa de banho. Examinou a ferida. Parecia limpa, bem definida, como se tivesse sido desenhada à mão. Por baixo do espelho, por entre os seus produtos de beleza, encontrou a caixa de adesivos que tinha por hábito trazer consigo. Colocou um sobre a ferida e acalmou-se imediatamente. Pelo menos, não iria morrer como uma prostituta de motel.
Inacreditável, repetiu para si própria ao voltar para a cama. Ele continuava a dormir como se nada fosse, e ela, como mil anos antes, estendia-se a seu lado.

Saturday night



segunda-feira, 17 de outubro de 2011

de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.



é impressionante as vezes que tenho morrido nesta vida. tantas que já não tenho medo da dor - aprendi que é a condição dos vivos e dos alegres.


"(...) não tenha medo da desarticulação que virá. Essa desarticulção é necessária para que se veja aquilo que, se fosse articulado e harmonioso, não seria visto, seria tomado como óbvio. Na desarticulação haverá um choque entre você e a realidade, é preferível estar preparada para isso, Lóri, a verdade é que estou contando a você parte do meu caminho já percorrido. Nos piores momentos, lembre-se: quem é capaz de sofrer intensamente, também pode ser capaz de intensa alegria. Se você quer ver os peixes, Loreley, vamos."
Clarice Lispector, Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres


e fodam-se os budistas.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Ah, diz-me a verdade acerca do amor

Há quem diga que o amor é um rapazinho,
E quem diga que ele é um pássaro;
Há quem diga que faz o mundo girar,
E quem diga que é um absurdo,
E quando perguntei ao meu vizinho,
Que tinha ar de quem sabia,
A sua mulher zangou-se mesmo muito,
E disse que isso não servia para nada.

Será parecido com uns pijamas,
Ou com o presunto num hotel de abstinência?
O seu odor faz lembrar o dos lamas,
Ou tem um cheiro agradável?
É áspero ao tacto como uma sebe espinhosa
Ou é fofo como um edredão de penas?
É cortante ou muito polido nos seus bordos?
Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

Os nossos livros de história fazem-lhe referências
Em curtas notas crípticas,
É um assunto de conversa muito vulgar
Nos transatlânticos;
Descobri que o assunto era mencionado
Em relatos de suicidas,
E até o vi escrevinhado
Nas costas dos guias ferroviários.

Uiva como um cão de Alsácia esfomeado,
Ou ribomba como uma banda militar?
Poderá alguém fazer uma imitação perfeita
Com um serrote ou um Steinway de concerto?
O seu canto é estrondoso nas festas?
Ou gosta apenas de música clássica?
Interrompe-se quando queremos estar sossegados?
Ah! diz-me a verdade acerca do amor.

Espreitei a casa de verão,
E não estava lá,
Tentei o Tamisa em Maidenhead
E o ar tonificante de Brighton,
Não sei o que cantava o melro,
Ou o que a tulipa dizia;
Mas não estava na capoeira,
Nem debaixo da cama.

Fará esgares extraordinários?
Enjoa sempre num baloiço?
Passa todo o seu tempo nas corridas?
Ou a tocar violino em pedaços de cordel?
Tem ideias próprias sobre o dinheiro?
Pensa ser o patriotismo suficiente?
As suas histórias são vulgares mas divertidas?
Ah, diz-me a verdade acerca do amor.

Chega sem avisar no instante
Em que meto o dedo no nariz?
Virá bater-me à porta de manhã,
Ou pisar-me os pés no autocarro?
Virá como uma súbita mudança de tempo?
O seu acolhimento será rude ou delicado?
Virá alterar toda a minha vida?
Ah, diz-me a verdade acerca do amor.


W.H. Auden

QUANDO O CAÇADOR SE TORNA CAÇA





Caçador que sais para a floresta com a mente fortalecida pela solidão, acautela-te! Vigia sobretudo o teu orgulho e desprezo, pois será através deles que te converterás, pela perseguição, em caça! “Recorda-te: alguns dão apenas um pouco, mas esse pouco custa-lhes muito a dar; outros conseguem dar muito, mas isso não lhes custa nada, e agora qual deles terá dado mais?” (p.89).


Mais não consigo ou não posso escrever sobre este livro belo, enigmático e trágico. Como a estranha transmutação alquímica que acontece, uma vez na vida, a todos os caçadores vorazes. A beleza da caça é o desmembrar de todas as garantias de segurança, em que os papéis tradicionais do Senhor e do Escravo colapsam, desnudando todo um fundo de dependências e martírios. Que responde por vários nomes, sendo o amor uma das possibilidades.

Um dos grandes livros da minha vida: daqueles que impõem um silêncio devoto.

domingo, 4 de setembro de 2011

Meu nome é Legião, porque somos muitas: Circe é um deles.




“Aconteceu certa noite, lembro-me apenas vagamente da cena, tão breve quanto comovente, regressava eu atordoado e trôpego de uma incursão selvagem aos botequins, quando numa das ruas monótonas da grande cidade encontrei uma mulher que me convidou a acompanhá-la até casa. Não era uma mulher bonita e, no entanto, sim, era bonita.

(…)

Epílogo: Não poderia esta mulher ser Circe, que pede ao nobre grego que cruzou os mares para que fique com ela? Ele quer regressar a casa, mas ela, ela suplica-lhe que não a abandone. É uma feiticeira má que transforma aqueles para quem olha em porcos grunhidores. É verdade que ela o nega: diz que não é uma feiticeira má, que ela própria é vítima do feiticeiro mau. É bem possível. É mulher, de resto, de uma beleza comovente (…). Não é infeliz mas também não é feliz (…). Entre outras coisas, diz ela que os seus companheiros de viagem se metamorfosearam por si próprios em porcos. Que a culpa e a vergonha é deles, não dela. São porcos porque queriam ser porcos. Ela sorri, e pelo sorriso esgueira-se uma lágrima. É irónica e ao mesmo tempo de uma seriedade absoluta, frívola e ao mesmo tempo melancólica. (…) Protege-me de Circe. Se tu ficares comigo, eu não serei Circe. Ela vai-se embora se tu não te fores embora.» Assim fala ela, cobrindo-o de ternas carícias, mas ele, ele… parte. Deixa-a entregue a Circe, entregue a si própria, deixa-a entregue à crueldade que tem no peito, entregue à ignomínia de que é escrava. Conseguirá ele partir? Será assim tão empedernido?”

Robert Walser, Histórias de Amor

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Quero este livrinho de gaja




“Vim porque me pagavam” é um livro desconcertante, o seu aparato de recursos não pode deixar de causar uma certa confusão no leitor. Utiliza do humor tanto o seu efeito cómico como a sua capacidade para humilhar a nossa natureza, principalmente quando vira esta contra si própria, contra o seu corpo [“Tudo tende à efabulação no nosso país/ e é com estes elementos alegres,/ que nós procuramos,/ se não restaurar o império de África,/ ao menos celebrar os santos populares.” (p. 52) ou “O meu corpo foi sempre um campo de batalha./ Passaram tantos soldados por aqui,/ mas a revolução ficará sempre sem futuro” (p. 20)]; cultiva uma pose aparentemente tão despreocupada quanto inofensiva, mas que, como um lobo que se disfarça de cordeiro, é uma ameaça, o que é evidente no próprio título do livro ou em versos como estes: “Obrigado por procurem a eternidade da raça./ Mas a poesia, mes chers, não salva, não brilha, só caça” (p. 26) ou “Vou esvaziando os copos/ e começo a compilar beijos,/ como quem junta, à pressa, moedas caídas pelo chão:/ somos todas putas, rapaz,/ com ou sem vodka.” (pp. 51 e 52).






Crítica por David Teles Pereira no Ypsílon (19 de Agosto 2011)

sábado, 27 de agosto de 2011

«Não é por o mundo não parar de girar, que temos de ficar agoniados.»

ITALO SVEVO

Tanatografias




«Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria. Deve haver certamente outras maneiras de salvar uma pessoa, senão estou perdido.»

ALMADA NEGREIROS

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

And if it is not love then it's the bomb, the bomb...




Depois de muitos dias intensivos de estoicismo apercebi-me que continuo extremista. Depois de ter dedicado alguns anos à investigação afincada do projecto hedonista, tomando o prazer e o riso como missão, retornei a Lisboa com a minha revolução sexual concluída, as finanças arruinadas e com os nervos algo descompensados. Há este problema de fundo com a via do êxtase: toma-se o momento presente como absoluto e tudo o resto vai colapsando. Mas é preciso ter a coragem de destruir, já dizia o Stirner, e não lamento os dias esbanjados.


Decidi então experimentar o outro extremo, a atitude estóica, ocupando os dias a ler, a trabalhar e a cozinhar. Resultado: tornei-me uma dona-de-casa com alguns laivos intelectuais e aprendo a persistir e a contrariar a minha inquietação. A coisa corre bem. Mas chego à conclusão que a doutrina do meio-termo enunciada por Aristóteles é a mais acertada. Desde que me conheço que desprezo a palavra “moderação” mas a minha aprendizagem revela-me que é preciso ir por aí para viver bem, ou viver menos mal. Ao clamor tchekhoviano “É preciso trabalhar!”, é preciso adicionar “É preciso conhaque!” Em nome da saúde mental, é preciso ter horários para servir o dever narcóticos e horários para desatinar e descompensar: é tudo, com efeito, uma questão de dosagem.


E por isso ontem, segui leve pela noite adentro: dançar, dançar para cansar o corpo e aliviar a cabeça que pensa sempre demais do que deve. Voltei a reencontrar a beleza nocturna nos corpos que se agitam como quem empenha todo o vigor das últimas forças. São corpos que apostam o sono em nome de uma alegria que os invade na claridade pela sua ausência, mas que não desistem de acreditar e procurar. Uma cambada de crentes popula os bares e uma oração diferente, uma oração da convulsão, sobe pelas raios eléctricos da noite. E ouvem-se as coisas mais bonitas porque a escuridão torna as palavras mais espontâneas: um tipo com cara de anjo despede-se às seis da manhã dizendo que vai para o seu quarto beber uma garrafa de vodka e desmembrar uma grama de cocaína; tem um ar santo, parece um daqueles monges habituados a visões beatíficas. “É a minha cena. Ando a desfrutar imenso da minha relação comigo”, diz antes de partir, mas não como quem se justifica. E ao vê-lo ir-se, sabe-se que, apesar de utilizar meios travessos (e quem não os utiliza, feitas as contas?), ali vai um tipo em paz consigo, mesmo que momentânea. E vêem-se as coisas mais despropositadas, subitamente justificadas por uma aura de sonho que envolve a visão e a torna estranhamente mais turva mas também mais curva. No Copenhaga, o cinema português dança com passos histéricos ao som do Hit the Road Jack e insinua-se em ti uma suspeita de que talvez nem tudo esteja perdido neste país ! Tens os pensamentos planos e suaves, esqueces as horas, os planos de regressar e fazes all-in com mais um Jack Daniels, saboreando o contraste do gelo nos lábios contra o calor que ameaça o peito. Porque sabes, de um modo seguro e íntimo que tudo corre bem e os vivos estão, afinal, ainda vivos e fortes.


E depois há o dia a raiar, as gaivotas girando loucas num céu que pica, o sol vigoroso das nove horas que reinicia o trabalho da criação. Mas é domingo, ainda há calma, o mundo dá uma pausa. E entras finalmente no táxi e casa é agora uma palavra querida. E aí acontecem sempre as conversas mais hilariantes e profundas, porque os deuses, depois de mortos pelo progresso das luzes e das fábricas, reencarnaram taxistas. Deus e o Diabo, a coisa é uma roleta, nunca se sabe quem te leva a casa. E o taxista pergunta se te divertiste. Dizes sim, com um sorriso fino. Ele diz que estás com um ar feliz. Respondes que estás a pensar no amor. Ele pergunta porque voltas então para casa sozinha. Não tens essa resposta, Deus e o diabo são ambos matreiros nas perguntas que te fazem. Na incerteza avanças que não sabes, que se calhar o melhor é ele fazer inversão de marcha, voltar ao ponto onde te apanhou. E então ele diz: “Não, relaxa, ouve aí essa morna angolana e vais para casa descansar”. E ele aumenta o som, e tu encostas a cabeça, cabelos ao vento fresco, olhos sonhando as avenidas e o rio, os poros todos a ouvir a voz africana mais sedosa do mundo. E sabes que tiveste a dose de beleza que te vai permitir mais dias calmos, sem sentires que esfacelas as asas contra as barras da gaiola. E que, desta vez, voltas a casa guiada por Deus.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

"Nunca disse que fosse sempre um erro entrar no país das fadas. Disse somente que era sempre perigoso" (Chesterton)

“Vistas de perto, as coisas passavam-se muito menos tranquilamente: os judeus que chegavam ao cimo da ravina, empurrados pelos askaris e pelos Orpo, uivavam de terror quando descobriam a cena, debatiam-se, os embaladores batiam-lhes com a chibata ou cabos de metal para os obrigarem a descer-se e a deitarem-se, já por terra eles continuavam a gritar e tentavam levantar-se, e as crianças agarravam-se à vida tanto como os adultos (...). Para alcançar certos feridos, era preciso andar por cima dos corpos, estes escorregavam de modo atroz, as carnes brancas e moles rolavam sob as minhas botas, os ossos quebravam-se traiçoeiramente e faziam-me tropeçar, eu atolava-me até aos tornozelos na lama e no sangue. (...), disparava quase ao acaso, sobre tudo o que via espernear, depois recompus-me e tentei prestar atenção, apesar de tudo era preciso que as pessoas sofressem o menos possível, mas de qualquer maneira não podia rematar senão os últimos, por baixo havia já outros feridos, não mortos ainda, mas que em breve o estariam. Não era eu o único cujos nervos não aguentavam, também alguns atiradores tremiam e bebiam entre uma e outra fornada. Reparei num jovem Waffen-SS, não sabia o nome dele: começava a disparar de qualquer maneira, com a metralhadora encostada à anca, ria horrivelmente e esvaziava o carregador ao acaso (...). Aproximei-me dele e sacudi-o, mas ele continuava a rir e a disparar ali diante de mim, arranquei-lhe a metralhadora e esbofeteei-o, a seguir mandei-o ir ter com os homens que reabasteciam os carregadores; Grafhorst mandou-me outro homem para o substituir e eu lancei-lhe a metralhadora gritando: “E faz-me isso como deve ser, entendido?!!” Perto de mim, outro grupo estava a ser trazido: o meu olhar cruzou-se com o de uma bela rapariga, quase nua, mas muito elegante, calma, com os olhos cheios de uma tristeza imensa. Afastei-me. Quando voltei estava ainda viva, semivirada sobre o dorso, uma bala saíra-lhe por debaixo do seio e ela arquejava, petrificada, os belos lábios tremiam-lhe e pareciam querer formar uma palavra, fitava-me com os seus grandes olhos surpresos, incrédulos, olhos de ave ferida, e esse olhar cravou-se em mim, rasgou-me o ventre e deixou escorrer dele um jorro de serradurra, eu não passava de uma simples boneca e não sentia nada, e ao mesmo tempo queria de todo o coração curvar-me e limpar-lhe a terra e o suor misturados na fronte, acariciar-lhe a face e dizer-lhe que já estava melhor, que tudo correria da melhor maneira, mas em vez disso disparei-lhe convulsivamente uma bala na cabeça, o que bem vistas as coisas vinha a dar no mesmo, para ela em todo o caso não para mim, porque a mim a ideia daquele desperdício humano insensato invadia-me uma raiva imensa, desmedida, continuava a disparar sobre ela e a cabeça rebentara-lhe como um fruto, e então o meu braço soltou-se de mim e partiu só ele pela ravina, disparando para um lado e para o outro, eu corria atrás dele, fazia-lhe sinal com o outro braço dizendo-lhe que esperasse por mim, mas ele não queria, ria-se de mim e disparava sobre os feridos sozinho, sem mim, que finalmente esgotado, parei e comecei a chorar. Agora, pensava, acabou-se, o meu braço nunca mais voltará, mas para minha grande surpresa ali estava ele de novo, no seu lugar, solidamente preso ao meu ombro, e Hafner aproximava-se de mim e dizia-me: “Está bom, Obersturmfuhrer. Eu substituo-o.” (p. 125-127).

"Aí tendes, malditos sejais, saciai-vos com este belo espectáculo!" (Platão)

Nietzsche demonstrou exemplarmente como o humano (ou melhor, a definição de humano que a nossa cultura privilegiou) se baseia num conjunto de cinco ou seis promessas que se fixam na carne através de um processo de habituação histórica edificado sobre uma mnemotécnica da dor. Com o horror passa-se o mesmo: é tudo uma questão de gradação das doses inicias e um progressivo incremento, até que o individuo reclame a sua necessidade imperiosa.

“É a primeira vez”?, perguntou delicadamente o Hauptmann. Baixei o queixo. “Há-de habituar-se”, acrescentou ele, “mas nunca completamente, talvez”. Ele próprio estava pálido, mas não tapava a boca.
(...)
Os cadáveres empilhavam-se num grande pátio empedrado, em pequenos montes desordenados, espalhado por aqui e por ali. Um imenso zumbido, obsidiante, ocupava o ar: milhares de pesadas moscas azuis esvoaçavam por cima dos corpos, dos charcos de sangue, das matérias fecais. As minhas botas pegavam-se ao empedrado do chão. Os mortos estavam já a inchar, contemplei a sua pele verde e amarelada, os rostos informes, como os de um homem espancado. O cheiro era imundo; e este cheiro, eu sabia-o, era o princípio e o fim de tudo, a própria significação da nossa existência. Este pensamento destroçava-me o coração. (...) Eu queria fechar os olhos, ou tapar com a mão os meus olhos, e ao mesmo tempo queria olhar, olhar até à saciedade e tentar compreender através do olhar aquela coisa incompreensível, ali, diante de mim, aquele vazio para o pensamento humano. Desamparado, virei-me para o oficial da Abwehr: “Você leu Platão?” Ele olhou para mim, desconcertado: “O quê?” – “Não, não é nada” (p. 41).

No segundo dia da minha odisseia literária pelo holocausto, dei comigo a chorar perante uma cena que descreve outra execução colectiva. E o que me comoveu não foram os pormenores das massas cranianas espalhadas pela terra e pelo rosto dos atiradores nem a agonia aflita de alguns moribundos, mas sim esta frase: “Olhei para os judeus: os mais próximos de mim pareciam calmos, mas pálidos” (p. 84) e a visão de uma marcha ordeira para a morte sem qualquer perturbação ou resistência, cravou-se-me no peito com vigor, murmurando suavemente quão facilmente o humano se reduz a simples carne para matadouro e a cultura, a chamada “cultura superior” retorna à matança que a fundou e refunda todos os dias, umas vezes sob formas mais sofisticadas mas nem por isso menos cruéis.

it's all so quiet, ma...


Nestes últimos tempos, tenho andado grávida. Grávida de qualquer coisa que forçou a sua vinda através de caminhos daninhos. Não sei o que vou parir mas suspeito que irei parir-me mulher dentro em breve. Não tenho medo.

Já não esbracejo com a raiva de um cão batido, já não corro a cidade com sedes acres e o meu ventre não reclama mais facas. As noites não picam mais a carne com as suas insónias. Estou calma, quase pedra. Depois da negra noite da alma e de alguns êxtases breves da carne, surgiu em mim um estoicismo involuntário, uma capacidade de modelar o tédio e a angústia com artifícios honestos.

Passo os dias sem ver pessoas e curiosamente não lhes sinto a falta. Cada uma é uma cidade bombardeada, como diria Eugénio de Andrade, e é tarefa mais fácil amá-las com uma certa distância. Vou lendo os dias. Se casarei ou não, já não me interessa; o amor não obscurece nem alumia a caligrafia singela das horas. Será talvez, apenas, um verão que asfixia na cidade abrasada. Ou eu, a parir uma solidão mais sólida que a pedra. De qualquer dos modos, está-se estranhamente bem.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

"Um anjo no Inferno voa na sua própria pequena nuvem de Paraíso" (Eckhart)







Uma odisseia não se pode levar a cabo sem um homem desabrigado no início dos inícios.


E o homem garatuja as suas memórias para descobrir se ainda é capaz de sofrer. É estóico, recto e culto, como convém, e sabe quão raramente um pensamento humano acontece. Não está à procura do caminho para regressar a casa, está desabrigado no lar burguês que construiu para si, para a mulher relativamente bela e de boa família com quem casou com alguma repugnância e a quem trata de homenagear de quando em quando, com pouco prazer mas sem repulsa excessiva, para garantir a paz no seu lar. O tear de Penélope foi substituído pelos teares mecânicos e alinhados da fábrica de rendas que dirige.


Também ele combateu e fez o que tinha a fazer, sem hesitações. Saiu dela “um homem vazio, cheio unicamente de amargura e de uma longa vergonha, como areia que range entre os dentes” (p. 19) e com o horror impresso na retina. Não pode regressar como herói. Não pode regressar. O regresso a casa pode apenas equivaler ao desejo sofocliano de não ter nascido. A guerra é perpétua e ninguém pode escolher o lado da trincheira que ocupa – isso é apenas uma fantasia consoladora dos vencedores.


Sou culpado, o leitor não, muito bem. Mas o leitor deveria apesar de tudo ser capaz de dizer para consigo que teria feito também aquilo que eu fiz. Talvez com menos zelo, mas talvez também com menos desespero, mas seja como for de uma maneira ou de outra. Penso que me é permitido concluir como um facto estabelecido pela história moderna que toda a gente, ou quase, num conjunto de circunstâncias dadas, faz o que se lhe diz que faça; e, peço desculpa, há poucas probabilidades de ser o leitor a excepção, tal como eu não a fui. Se nasceram num país ou numa época em que não só ninguém aparece para matar as vossas mulheres e os filhos dos outros, dêem graças a Deus e vão em paz. Mas mantenham sempre presente no espírito esta ideia: talvez tenham tido mais sorte do que eu, mas nem por isso são melhores do que eu. Porque no momento em que tenham a arrogância de pensar sê-lo, aí começa o perigo.” (pag. 27).



Já quase nada lhe interessa. Mantém aventuras esporádicas com belos rapazes como um cuidado de higiene. Resta-lhe apenas a literatura. Não fosse a guerra, ter-se-ia ocupado das coisas belas e calmas, fazendo ou ensinando literatura. E gostaria de ter tocado piano. “Tocar só para mim, em casa, ter-me-ia cumulado de satisfação. Bem entendido, ouço muitas vezes música, e nisso tenho um vivo prazer, mas não é a mesma coisa, é um prazer de substituição. Tal como os meus amores masculinos: a realidade, não coro ao dizê-lo, é que teria preferido decerto ser uma mulher. Não necessariamente uma mulher que vivesse e agisse neste mundo, uma esposa, uma mãe; não, uma mulher nu, deitada de costas, com as pernas abertas, esmagada sob o peso de um homem, agarrada a ele e trespassada por ele, afogada nele e tornando-se o mar sem limites em que ele mesmo se afoga, prazer sem fim, e sem princípio também. Ora não foi assim. Em vez disso, dei comigo jurista, funcionário da segurança, oficial SS, e depois director de uma fábrica de rendas. É triste, mas é como é.” (p. 29).



Uma odisseia não se pode levar a cabo sem um homem desabrigado no início dos inícios. E este homem não está abrigado no homem que é porque os abrigos do humano foram calcinados pelos fornos crematórios.



E uma odisseia não pode efectuar-se sem o amor por uma mulher distante. “Uma só, mas mais do que tudo no mundo. Ora essa, justamente, era a que me estava proibida. É bastante concebível que ao sonhar ser uma mulher, sonhando-me um corpo de mulher, eu a procurasse ainda, quisesse aproximar-me dela, quisesse ser como ela, quisesse ser ela. É inteiramente plausível, ainda que nada mude ao caso. Dos tipos com quem fui para a cama, nunca amei um só que fosse, servi-me deles, dos seus corpos, é tudo.” (p.29)

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Apetece muito uma odisseia literária

Para celebrar os últimos dias dos meus vinte e oito anos começo hoje a ler As Benevolentes de Jonathan Littell. Apetecia há muito mas só agora chegou o tempo.

domingo, 14 de agosto de 2011

Há uma gravidez do pensamento no tédio





“Para o pensador, bem como para todos os espíritos sensíveis, o aborrecimento é aquela desagradável «calmaria» da alma que precede a viagem venturosa e os ventos joviais. É preciso que eles suportem e aguardem o seu efeito. É exactamente isso que as naturezas medíocres não conseguem atingir por si! Afastar de si o aborrecimento, a qualquer preço, é coisa tão comum como trabalhar sem prazer. Talvez seja isto que distingue os Asiáticos dos Europeus – serem capazes de um repouso mais longo e mais profundo. Mesmo os seus narcóticos actuam lentamente e exigem paciência, em contraste com a rapidez repugnante do veneno europeu – o álcool”.

Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência

Sigo nietzscheana.






“E então se o prazer e o desprazer estiverem de tal modo entrosados que, quem quiser usufruir o máximo de um, seja obrigado a ter também o máximo do outro? Que quem quiser aprender a «rejubilar até aos céus» tenha também de se preparar para a «depressão até à morte». E é talvez, assim, que as coisas sejam!”

Friedrich Wilhelm Nietzsche, A Gaia Ciência

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Lê-se numa noite e deixa mazelas de graça






Também eu ceei com os doze naquela ceia
em que eles comeram e beberam o décimo terceiro.
A ceia fui eu; e o servo; e o que saiu a meio;
e o que inclinou a cabeça no Meu Peito.

E traí e fui traído.
e duvidei, impacientemente, e descartei-me;
e pus com Ele a mão no prato e posei para o retrato
(embora nada daquilo fizesse sentido).

Não subi aos céus (nem era caso para isso),
mas desci aos infernos (e pela porta de serviço):
comprei e não paguei, faltei a encontros,
cobicei os carros dos outros e as mulheres dos outros.

Agora, como num filme descolorido,
chegou o terceiro dia e nada aconteceu,
e tenho medo de não ter sido comigo,
de não ter sido comido nem ter sido Eu.

Manuel António Pina

It's all right, ma...




Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.


Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço), deixaste-me
pouco espaço para tanta existência.


Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.


Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.


Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.


Nas tuas mãos
entrego o meu espírito
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.


Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.


Manuel António Pina

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

“The whole world is three drinks behind" - Humphrey Bogart

Confesso que voei






Mas, se nestas seis décadas e meia
eu fui capaz de algum voo

– concedo, semelhante ao das galinhas,
isto é, rudimentar, desgracioso,
com muitíssimo dispêndio de energia
para pouca ascensão, breve e apenas
em desespero de causa;
em todo o caso uma forma de voo
pelo qual me sustentei no ar
em horas de menos peso –

devo agora, fechado o ciclo do voo,
como os pássaros pousar.

E isto não é como uma loja
que muda de ramo
ou que em fins de Dezembro
fecha para balanço.
Nem como executar
um mandado de detença.
Nem expiar a desordem
de, sendo pedestre, ter voado.
Nem um remate compulsivo
à sedição.

Pousar, é tudo. Regressar
ao afago das coisas da terra.
A terra cobrar por fim o que lhe devo
e eu cobrar dela o que me deve
desde a primeira hora.

Voei, está voado.
Nada de nostalgias.



A.M. Pires Cabral

Metereologia fodida



METEOROLÓGICA


Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)

A vida
é livro
e o livro
não é livre

Choro
chove
mas isto é
Verlaine

Ou:um dia
tão bonito
e eu
não fornico.


Adília Lopes