domingo, 29 de outubro de 2017

o magma da alma



Desde que fui aos Açores que ando apaixonada por vulcões. Ao mesmo tempo, nasceu em mim uma ideia de mente vulcânica que ainda não consigo elaborar muito bem, pois ainda não chegou o tempo da sua errupção. Pus-me, no entanto, a caminho e ando a ler com muita curiosidade e atenção Carl Gustav Jung. E entretanto, encontrei esta aproximação nas cartas da Etty Hillesum, outro amor meu:

– As depressões, quando não são da natureza da pessoa, são pausas criadas pelo inconsciente na consciência sobrecarregada, e devem por isso, voltar a desaparecer a partir do inconsciente; assim, é necessário deixar extinguir essas mesmas pausas de um modo passivo –

Nesse tempo, a palavra «enfraquecer» foi para mim uma fórmula libertadora.

Os filhos do meio dia



Tornei a ler O ESTRANGEIRO pela terceira vez. A primeira vez que o li teria uns 16 anos, voltei a lê-lo nos meus vinte e, eis que agora, na década dos trinta, me surpreendo a mim mesma empatizando com Mersault a um nível inédito. Vejo-o como um homem ingénuo mas perspicaz ao ponto de entender que «todo o mundo tem as suas razões», um homem de uma sensibilidade extrema que se anestesia e procura afastar-se do mundo, permanecendo numa espécie de sensualidade bestial (“Dormi quase todo o tempo”, “Lavei também as mãos”, “Pensei que passara mais um domingo, que a mãe fora a enterrar, que ia regressar ao meu trabalho, e que, no fim de contas, continuava tudo na mesma”, «lavei as mãos”).

Nesta leitura, Mersault pareceu-me um homem que tenta sobreviver e ser funcional, sufocando sonhos e ligações. (“E, pelo estranho barulho que me chegava através da parede, compreendi que estava a chorar. Não sei porquê, pensei na minha mãe. Mas no dia seguinte, precisava de me levantar cedo. Não tinha fome e deitei-me sem jantar”; “O céu estava verde e eu sentia-me contente. Mas, apesar disso, fui directamente para casa, pois queria cozer umas batatas”; “Pensando bem não era infeliz. Quando era estudante, alimentara ambições desse género. Mas quando abandonei os estudos, compreendi muito depressa que essas coisas não tinham verdadeira importância”). Uma existência ancorada no básico, na rotina, sem grandes euforias nem arrebatamentos – talvez para evitar o abismo e as suas depressões. A sensibilidade extrema da personagem denuncia-se muito raramente, em breves passagens poéticas como esta: “No coração desta casa cheia de sonos, o queixume subiu lentamente, como uma flor nascida do silêncio.

Mas não é na poesia que o conflito de Mersault se resolve. Optando pelo conformismo e pela via racional, todo o substrato emocional da personagem não encontra outra opção para além da inscrição na carne como sintoma. E daí advém tanta necessidade de lavar as mãos repetidamente – como quem procura afastar-se de qualquer contaminação mais passional –, de dormir tanto, de apreciar o sol no corpo, tal como um bovino ruminando apenas sensações, a salvo de pensamentos mais pantanosos. Não admira, portanto, que toda a descrição do assassínio do árabe se faça também ao nível do corpo e das suas sensações Eis o homem que queria fugir da noite e das suas profundidades encandeado pelo sol do meio dia. “Era o mesmo sol do dia em que a minha mãe fora a enterrar e, como então, doía-me a testa, sobretudo a testa, e todas as suas veias batiam ao mesmo tempo debaixo da pele.


A segunda parte da narrativa mostra o outro lado da moeda, o lado verdadeiramente absurdo. A mesma sociedade que obriga ao cultivo da insensibilidade, condena violentamente os «criminosos» que cria. “Gostaria de lhe poder explicar cordialmente, quase com afeição, que nunca me arrependera verdadeiramente de nada. Estava sempre dominado pelo que ia acontecer, por hoje ou por amanhã.” Graças à sua ingenuidade, Mersault quebra a regra do jogo, aferrando-se à verdade e não vergando à simulação dos ditos bons sentimentos. “Tão perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido liberta e pronta a tudo reviver. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar sobre ela. Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me, pela primeira vez, à terna indiferença do Mundo. Por o sentir tão parecido comigo, tão fraternal, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução, e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio.”

Subway Hot Books


Todos os dias ando de metro. São poucas as pessoas que vejo a ler mas sempre que encontro uma, tento descobrir, qual alcoviteira, que livro a entretém. A maioria fica-se exactamente por essa leitura de entretenimento que pouco me interessa. Mas esta segunda-feira, um rapaz envolto num capuz lia, com um ar muito concentrado e interessado, ZEN AND THE BIRDS OF APPETITE. Levei a ocorrência como uma recomendação insinuada à minha pessoa.

Pan-teísmo



“Ambos os panoramas me pertenciam, achava eu, e esta impressão de dupla posse dava-me uma sensação embriagante de universalidade, como se, para onde quer que olhasse, me fosse dado ver uma faceta de mim mesmo – uma ilusão malsã, vim depois a descobrir, já que mais tarde me fez crer que só valia a pena visitar um país ou uma cidade se lá adquirisse uma casa ou se escrevesse um livro acerca desse lugar. Como todas as fantasias napoleónicas, era também um sentimento de solidão. Se tudo me pertencia, então eu próprio não pertencia a nenhum recanto especial do mundo. As pessoas que avistava do cume do meu monte, a lavrarem os seus campos, a cuidarem das suas lojas e oficinas, a namoriscarem enquanto gozavam as suas férias à beira-mar, habitavam um mundo diferente do meu. Elas estavam todas juntas, eu estava completamente só. Elas faziam parte de uma irmandade, eu era um estranho. Elas falavam umas com as outras num idioma que todas entendiam, acerca de temas que a todas interessavam. Eu falava numa língua que era só minha e alimentava pensamentos que as encheriam de tédio (…).

Três grandes castanheiros cresciam num recanto, e eu costumava deitar-me ali, oculto na erva alta e húmida entre eles, no silêncio denso e de aroma adocicado das tardes estivais de Oxford. Rãs saltavam em volta de mim, distraindo-me; gafanhotos moviam-se nas ervas, a um palmo dos meus olhos; os sinos de Oxford dobravam, lânguidos, marcando a hora certa; quando ouvia alguém a chamar-me –«Morris! Morris! És tu a lançar! – sabia que, fosse lá quem fosse, não se ia dar ao trabalho de procurar muito. Marvell achava que o Jardim do Éden era certamente melhor quando Adão ali deambulou sozinho, e toda a minha vida senti em certos lugares, tanto em zonas rurais como em cidades, uma aura que me parece verdadeiramente sexual, mais pura mas não menos excitante do que a sexualidade do corpo. A origem desta emoção perversa mas oportuna parece-me residir naquelas tardes perfumadas de críquete, já tão distantes.

      Numes sedentos da mortal beleza
Verde arvoredo tomam como presa,
E Pã quis Siringe com amor fatal,
Não como ninfa, como caniçal.”

Flaubert: "De política, só entendo uma coisa: a revolta."

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Livros alegres para pessoas tristes



Pontualmente, atravesso desertos de leitura. São momentos altamente angustiantes, esses em que me falta um livro. Pois que tenho sempre de estar a ler e quando nenhum livro me conquista, quando nada adere, sinto-me desnorteada, perdida, esvaziada de qualquer paixão pela vida – circulo então pelas estantes, como uma fera magra de savana e caça, passando os dedos pelas lombadas, inventando sortilégios e sorteios que me possam revelar a minha próxima leitura. E quando tudo falha, não me resta senão aninhar-me na minha solidão e regressar aos contos de Tchékhov.


Nabokov afirmou que “Tchékhov escrevia livros tristes para pessoas alegres; quero dizer com isto que só um leitor com sentido de humor será capaz de sentir a fundo a tristeza deles.” Tenha Nabokov razão ou não, o facto é que sempre encontro conforto na leitura dos seus contos e vários meses, ou até mesmo anos, vejo volverem-me ao pensamento algumas das suas personagens ou enredos. São todos magníficos, nenhum desilude, sobretudo porque cobrem o amplo espectro de sentimentos que compõem uma vida plenamente vivida e pensada; porém, existem alguns que me são mais queridos por que me reflectiram naquela fase exacta da vida em que os li. São eles SAUDADE, lido numa fase de luto intenso pela perda de um amigo, e INIMIGOS, lido numa altura em que pensava persistentemente no egocentrismo de algumas pessoas. Neste último, embora o narrador não tome partido por nenhuma das desgraças que se abatem quer sobre o doutor Kirílov, quer sobre o nobre Abóguin, sinto que também o meu coração se tomou dessa mesma «injusta convicção, indigna do coração humano» que acomete o doutor até ao túmulo.

“A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.”


Augusto, o palhaço melancólico


“E então, certo dia, como que numa revelação luminosa apercebeu-se de que já há muito, muito tempo, não conhecia a felicidade. A descoberta deixou-o tão agitado que ardia de impaciência por chegar ao quarto onde morava. Contudo, em vez de correr para o hotel, chamou um táxi e ordenou ao motorista que o levasse aos subúrbios da cidade. Mas onde, exactamente?, quis saber o motorista. «Em qualquer lado onde haja árvores», respondeu, nervoso. «Mas despache-se, vamos – é urgente.»

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Alda Merini


Padre, se scrivere è una colpa
perché Dio mi ha dato la parola
per parlare con trepidi linguaggi
d’amore a chi mi ascolta?
Ormai vecchia di anni e senescente,
dove trovare un filo di erba buona?
Che sai dei miei conventi, della grazia
matura delle sante, delle grandi
anime folli? Che posso io trovare
tra gli osanna dell’uomo di cultura?
Altrove è il canto, altrove è la parola
e Dio non la pronuncia.

é preciso imaginar Sísifo feliz.



«Saber se é possível viver sem apelo é tudo o que me interessa. Não quero sair deste terreno. Se esta face da vida me é dada, como é que vou ajeitar-me com ela? Ora, perante esta precaução particular, a crença no absurdo equivale a substituir a qualidade das experiências pela quantidade. Se me persuado de que esta vida não tem outra face que não seja a do absurdo, se sinto que todo o seu equilíbrio depende dessa perpétua oposição entre a minha revolta consciente e a obscuridade onde ela se debate, se admito que a minha liberdade não tem sentido a não ser em relação ao seu destino limitado, então devo dizer que o que conta não é viver melhor, mas viver mais.»

«Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.
(…)
Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior, de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície.
É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra! Vejo esse homem descer outra vez, com um andar pesado mas igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora, que é como uma respiração e que regressa, com tanta certeza como a sua desgraça, essa hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que ele abandona os cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte que o seu rochedo.
Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há destino que não se transcenda pelo desprezo.
Se a descida se faz assim, em certos dias, na dor, pode também fazer-se na alegria. Esta palavra não é de mais.
(…)
Não há sol sem sombra e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e o seu esforço nunca mais cessará. Se há um destino pessoal, não há destino superior ou, pelo menos, só há um, que ele julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe-se senhor dos seus dias.
(…)

Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim, sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.»

Be my knife

UMA FACA SÓ LÂMINA
(ou: serventia das idéias fixas)

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

A.

Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.

Mas o que não está
nele está como bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.

Isso que não está
nele é como um relógio
pulsando em sua gaiola,
sem fadiga, sem ócios.

Isso que não está
nele está como a ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):

porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina,

nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca,

que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

B.

Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.

E mais surpreendente
ainda é sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.

Podes abandoná-la,
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.

Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.

E como faca que é,
fervorosa e energética,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:

a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que quanto menos dorme
quanto menos sono há,

cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e se vive a se parir
em outras, como fonte.

(Que a vida dessa faca
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja faca mesmo.)

C.

Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,

porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se em botam mais no músculo.

Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.

É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,

e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.

Então se for faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.

Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.

O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.

D.

Pois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
maré-baixa da faca.

Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.

Mas quer durma ou se apague:
ao calar tal motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor

bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esqueleto.

E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,

tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira,

bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel.

(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)

E.

Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura

(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências).

Forçoso é esse cuidado
mesmo se não é faca
a brasa que te habita
e sim relógio ou bala.

Não suportam também
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer câmaras severas.

Mas se deves sacá-los
para melhor sofrê-los,
que seja em algum páramo
ou agreste de ar aberto.

Mas nunca seja ao ar
que pássaros habitem.
Deve ser a um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.

E nunca seja à noite,
que esta tem as mãos férteis.
Aos ácidos do sol
seja, ao sol do Nordeste,

à febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento
e faz de sede a terra.

F.

Quer seja aquela bala
ou outra qualquer imagem,
seja mesmo um relógio
a ferida que guarde,

ou ainda uma faca
que só tivesse lâmina,
de todas as imagens
a mais voraz e gráfica,

ninguém do próprio corpo
poderá retirá-la,
não importa se é bala
nem se é relógio ou faca,

nem importa qual seja
a raça dessa lâmina:
faca mansa de mesa,
feroz pernambucana.

E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha.

Não pode contra ela
a inteira medicina
de facas numerais
e aritméticas pinças.

Nem ainda a polícia
com seus cirurgiões
e até nem mesmo o tempo
como os seus algodões.

E nem a mão de quem
sem o saber plantou
bala, relógio ou faca,
imagens de furor.

G.

Essa bala que um homem
leva às vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde.

O que um relógio implica
por indócil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.

E se é faca a metáfora
do que leva no músculo,
facas dentro de um homem
dão-lhe maior impulso.

O fio de uma faca
mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,

pois lhe mantendo vivas
todas as molas da alma
dá-lhes ímpeto de lâmina
e cio de arma branca,

além de ter o corpo
que a guarda crispado,
insolúvel no sono
e em tudo quanto é vago,

como naquela história
por alguém referida
de um homem que se fez
memória tão ativa

que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminina, apertada.

H.

Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca.

Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:

umas que se asfixiam
por debaixo do pó
outras despercebidas
em meio a grandes nós;

palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal.

Pois somente essa fraca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário

e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente

o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz ,
certa eletricidade,

mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.

I.

Essa lâmina adversa,
como o relógio ou a bala,
se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,

sabe acordar também
os objetos em torno
e até os próprios líquidos
podem adquirir ossos.

E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria,
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.

Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presença de vespa.

Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera

despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas.

Pois entre tantas coisas
que também já não dormem,
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,

sofrendo aquela lâmina
e seu jato tão frio,
passa, lúcido e insone,
vai fio contra fios.

*

De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
que mais condensa o homem
quanto mais o mastiga;

de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;

da imagem em que mais
me detive, a da lâmina,
porque é de todas elas
certamente a mais ávida;

pois de volta da faca
se sobe à outra imagem,
àquela de um relógio
picando sob a carne,

e dela àquela outra,
a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte a dentada

e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pôde a linguagem,

e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,

por fim à realidade,
prima, e tão violenta
que ao tentar apreendê-la toda imagem rebenta.


João Cabral de Melo Neto


La noche oscura del alma



    Canciones del alma que se goza de haber llegado al 
    alto estado de la perfección, que es la unión con Dios,
    por el camino de la negación espiritual.


  En una noche oscura,
con ansias en amores inflamada,
(¡oh dichosa ventura!)
salí sin ser notada,
estando ya mi casa sosegada.                     

  A oscuras y segura,
por la secreta escala disfrazada,
(¡oh dichosa ventura!)
a oscuras y en celada,
estando ya mi casa sosegada.                     

  En la noche dichosa,
en secreto, que nadie me veía,
ni yo miraba cosa,
sin otra luz ni guía                              
sino la que en el corazón ardía.                 

  Aquésta me guïaba
más cierta que la luz del mediodía,
adonde me esperaba
quien yo bien me sabía,
en parte donde nadie parecía.                    

  ¡Oh noche que me guiaste!,
¡oh noche amable más que el alborada!,
¡oh noche que juntaste
amado con amada,
amada en el amado transformada!                  

  En mi pecho florido,
que entero para él solo se guardaba,
allí quedó dormido,
y yo le regalaba,
y el ventalle de cedros aire daba.               

  El aire de la almena,
cuando yo sus cabellos esparcía,
con su mano serena
en mi cuello hería,
y todos mis sentidos suspendía.                  

  Quedéme y olvidéme,
el rostro recliné sobre el amado,
cesó todo, y dejéme,
dejando mi cuidado
entre las azucenas olvidado. 

San Juan de la Cruz

Da orfandade


Não me canso de recomendar esta série. Uma dos melhores tratados trágico-cómicos do niilismo existencial que já vi. Simultaneamente angustiante e hilariante. São três temporadas e não desilude: ide ver!

domingo, 1 de outubro de 2017

the fire next time

Eis dois livros que não me impressionaram particularmente, apesar das elevadas expectativas.



Percebo que WAYS OF SEEING, de John Berger, tenha constituído uma enorme inovação nos anos 70, com as suas reflexões sobre o impacto da reprodutibilidade técnicas nas imagens da arte, a objectualização da mulher e da nudez, as relações do poder – patriarcal e capitalista – com arte, o papel da publicidade na reprodução da dominação social, etc., mas hoje é uma leitura que me acrescenta pouco. Ainda assim, percebo que este livro tenha tido o mérito de motivar o aprofundamento destes temas nos anos que se lhe seguiram.



THE FIRE NEXT TIME, de James Baldwin, não me satisfez por outros motivos. Primeiro, achei que, embora tais reflexões possam também abranger a realidade europeia, se centrava muito na perspectiva americana; depois, tive alguma dificuldade em relacionar-me com a religiosidade do autor. No entanto, também aqui pressenti um mérito pioneiro e uma enorme coragem.


If we – and now I mean the relatively conscious whites and the relatively conscious blacks, who must, like lovers, insisto n, or create, the consciousness of the others – do not falter in our dusty now, we may be able, handful that we are, to end the racial nightmare, and achieve our country, and change the history of the world. If we do not now dare everything, the fulfillment of that prophecy, re-created from the Bible in a song by a slave, is upon us: God gave Noah the rainbow sign, No more water, the fire next time!

tell me a riddle



Tillie Olsen: mais uma grande autora que eu desconhecia, revelada pela poderosa Antígona. Tive alguma dificuldade inicial em alinhar com o estilo de escrita mas cheguei ao final da leitura dos 4 contos completamente de joelhos. Neles se escreve sobre as adversidades que afectam as classes desprivilegiadas, sobre a segregação, a solidão e sobretudo sobre «os silêncios que impedem vidas de se converter em escrita». O conto final, CONTA-ME UMA ADIVINHA, que intitula a antologia, e a sua protagonista Eva, uma velha matriarca em guerra contra a sociedade patriarcal, dobrou-me a espinha, obrigando-me a ler o final de olhos marejados.

Reabriam-se velhas cicatrizes e as feridas infectavam de novo. Tchekov, nem mais. Ela pensou sem brandura na jovem esposa que, altas horas da noite, amamentando o bebé do momento, e quem sabe com outro ao colo, tentava manter-se acordada no pouco tempo, o único, que tinha para ler. Quando ele chegava tarde de uma reunião e a encontrava assim, ela sentia-lhe na face a atmosfera exterior, e ele, fremente e excitado, cheirava-lhe a pele, provocador: ‘Vou pôr o bebé na cama e tu… arruma o livro, não leias, não leias.
(…)
(Toda a vida me deitou vinagre: estou bem marinada. Como posso agora ser só mel?)
(…)

No entanto, enquanto falava, lembrou-se de que ela nem sempre estivera isolada, nem sempre quisera estar só (pois sabia que houvera uma voz antes daquele frágil fio; antes da voz rouca que cortava o silêncio para fustigar, implicar, para o envergonhar: uma eloquente voz de rapariga que pronunciava os sonhos mais sagrados de ambos). Mas mais uma vez foi incapaz de reconstituir, de imaginar o que houvera antes, nem quando ou como tinha mudado.