sábado, 11 de janeiro de 2020

o mito é o nada que é tudo




«Era a campainha da fome a soar. Reconheci aquele tipo de fome. Ela tinha uma tal fome de amabilidade que se agarrava como um íman a uma fome semelhante e se alimentava disso; uma fome por atenção que atraía qualquer tipo de fome por atenção; uma fome de cega que procurava ser conduzida por um cego; uma fome de aleijada que esperava ter um aliado num aleijado; a fome de um surdo-mudo arrulhando com um surdo-mudo.
A Aba tinha tropeçado na verdade por sorte: sim, ela era uma rapariguinha a envelhecer. Nascera ostentando na testa a marca invisível da criança desamada. Não fazia qualquer diferença se realmente a tivessem amado ou não, ou se a iriam amar ou não; a fome nascera consigo, e consigo desapareceria. Pouco havia que pudesse apaziguar aquela fome: muito se tinham desgastado a tentá-lo raivosamente. Era isso, mais do que a fome genuína, que punira o mítico Erisícton, que acabara a roer os próprios ossos?
A Aba encontrara com a minha mãe uma linguagem secreta, comum, imediatamente. Talvez fossem feitas do mesmo pano e se reconhecessem sem dar por isso. Eram tolhidas pelo mesmo medo de desaparecer, um desejo inconsciente de deixar algo a assinar-lhes a passagem, a inscrevê-las no mapa. Entretanto, não escolhiam os meios ou o mapa: podia ser a pele dos próprios filhos, a mão dum estranho. Não era culpa sua, nem era nada que tivessem feito de mal. Como se uma fada caprichosa e estouvada as tivesse marcado à nascença e as fizesse pensar que eram invisíveis. A sensação de que o eram actuava nelas como o ácido do estômago e provocava-lhes ainda mais fome. Nada havia para lenitivo de tal fome, nem uma gigantesca lente de aumentar, nem holofotes fortíssimos, nem uma prodigalidade de atenções. A fome gania-lhes no estomâgo como um cão sem eira nem beira. Era uma fome engenhosa, glutona, capaz de recusar orgulhosamente a comida, um ódio envergohado a esconder e a evitar que fosse descoberto, um ódio fremente que não se atrevia a erguer uma mão contra si própria, um ódio mentiroso e enganador, que sabia como fazer os seus ganidos parecerem a canção de uma sereia e que deixava a sua baba.
Olhei-a. A face amável ensombrada pela melancolia, que imediatamente desencadeava uma sensação de culpa no interlocutor. Ela fazia tudo o que podia para levar os outros a gostar de si. Adorava os pais, se os tinha, os amigos, que certamente teria. Porque era a única que nunca se esquecia de um aniversário, era a que mandava bilhetes delicados, postais e mails, era a que sempre pegava primeiro no telefone e marcava o número. Nunca magoava ninguém; nunca dera a ninguém um pontapé nas canelas; nunca cabulara na escola; era sempre a boa colega e a boa aluna; ajudava os outros; nunca mentia, ou quase nunca; era amável para com todos; e no seu confronto com as emoções era sempre ela a perder. Ela observava-me. Estava interessada em saber como funcionavam todas as rodinhas do meu relógio, e por amor à descoberta estava preparada para dar cabo do relógio. Porque era que toda a gente no mundo fazia tiquetaque tão regularmente, enquanto só ela tinha os batimentos fora das calhas?
Reconheci o ganido sedutor. Sentira a fome da minha mãe por demasiado tempo. Afinal, não estava ali a servir de bedel a uma delas e à outra de potencial alimento? Sim, o amor está na margem distante de um largo mar. Ali, ergue-se um carvalho grande, e nele está uma caixa, na caixa um coelho, no coelho uma pata, e na pata um ovo, e o ovo tem de ser comido, para o mecanismo emocional principiar a funcionar.»

La pasión de la brasa compasiva

BLANCO

el comienzo
                   el cimiento
la simiente
                        latente
la palabra en la punta de la lengua
inaudita                                inaudible
                       impar
grávida                                         nula
                      sin edad
la enterrada con  los ojos  abiertos
inocente                      promiscua
                    la palabra
  sin nombre                 sin habla
 
                   Sube y baja,
                   escalera de escapulario,
                   el lenguaje deshabitado.
                   Bajo la piel de la penumbra
                   late una lámpara.
                                                Superviviente
                   entre las confusiones taciturnas,
                                                                              asciende
                   en un tallo de cobre
                                                      resuelto
                   en un follaje de claridad:
                                                                amparo
                   de caídas realidades.
                                                       O dormido
                   o extinto,
                                  alto en su vara
                   (cabeza en una pica),
                                                         un girasol
                   ya luz carbonizada
                                                      sobre un vaso
                   de sombra.
                                        En la palma de una mano
                   ficticia,
                                                   flor
                   ni vista ni pensada:
                                                       oída,
                   aparece
                                  amarillo
                   cáliz de consonantes y vocales
                   incendiadas.
 
 
en el muro la sombra del fuego   llama rodeada de leones
en el fuego tu sombra y la mía     leona en el circo de las llamas
                                                           ánima entre las sensaciones
el fuego te desata y te anuda
Pan Grial Ascua                               frutos de luces de bengala
                         Muchacha               los sentidos se abren
tú ríes—desnuda                             en la noche magnética
en los jardines de la llama
                           La pasión de la brasa compasiva

Octavio Paz

vermelho



«É este o paradoxo do vermelho, que já não é a nossa cor preferida, que se torna cada vez mais discreto no nosso quotidiano, que em muitos campos é ultrapassado pelo azul, talvez mesmo pelo verde, mas que continua a ser simbolicamente o mais forte. Estranho destino para uma cor vinda de tão longe e tão carregada de sentidos, de lendas e de sonhos!»

Nenhuma cor se compara ao vermelho; é a cor arquetípica, a primeira a ser dominada e reproduzida pela humanidade em pinturas parietais e adornos corporais. Vinculado ao fogo e ao sangue desde épocas remotas, o vermelho desdobra-se num labirinto cromático particularmente fecundo e ambivalente: cor do Graal e do amor nos romances de cavalaria, cor do Capuchinho Vermelho, será também a cor dos proscritos, das forças do mal, indiciando perigos e interdições. Marginalizado por Newton e renegado pela Reforma protestante, o vermelho perde o seu estatuto de primeira cor e torna-se demasiado vistoso, e até imoral. Permanecerá, no entanto, como a cor do erotismo, da alegria e da revolução.

lonely universe

Dos ofícios extintos e dos cultos que interessam verdadeiramente




No Epiro, no Nordeste da Grécia, crescia o carvalho sagrado de Dodona, através do qual se exprimia a voz de Zeus. É por intermédio de Pausânias, que cita um texto do século ii a.c., que ficamos a conhecer o ritual observado em redor do famoso carvalho de Dodona, mencionado por Sófocles e Platão: «Em Dodona, havia um carvalho consagrado a Zeus, e nesse carvalho havia um oráculo de que as mulheres eram profetisas. Os consulentes aproximavam-se do carvalho e a árvore agitava-se por uns instantes, e depois as mulheres tomavam a palavra, dizendo: “Zeus, anuncia isto ou aquilo.” Havia sacerdotisas, designadas por Plêiades ou Peristeras, que interpretavam o frémito das folhas. Como a região estava sujeita a violentas tempestades, o rosnar dos trovões e os raios revelavam de forma espectacular a intervenção de Zeus.» A par deste exemplo clássico muito conhecido, pensemos no culto das árvores, presente em todo o lado entre os povos europeus, segundo Frazer. Assim, «os lituanos não foram convertidos ao cristianismo antes de finais do século xiv e, na época da sua conversão, o culto das árvores ocupava entre eles um lugar importante. Uns adoravam carvalhos grandiosos e outros, árvores enormes e frondosas, de que recebiam respostas oraculares.»

Robert Dumas, TRATADO DA ÁRVORE – ENSAIO DE UMA FILOSOFIA OCIDENTAL, Assírio & Alvim, 2007

SANATÓRIO nas escolhas de Pedro Mexia, Joana Emídio Marques e João Pedro Vala para os melhores livros de 2019


https://observador.pt/especiais/dos-populismos-a-distopia-de-margaret-atwood-estes-sao-os-livros-que-mais-gostamos-de-ler-em-2019/

Que 2020 traga muitos livros e magia ♠️ 💜