quinta-feira, 31 de maio de 2012

quarta-feira, 30 de maio de 2012

sempre a mesma dor de ser quase:


Não consigo evitar um certo misticismo recente em mim. Após mais uma série de jogos mentais em que a minha cabeça se serviu de todos os limites para me desafiar, sobreveio em Março uma crise nervosa violentísima e deixei Lisboa às pressas. Rumo à minha infância e à minha fragilidade. Fugi com medo, verdadeiro terror, tendo visto a noite em pleno meio-dia e não sabendo como voltar as vestir as coisas mortas e tornar a viver. A única salvação possível que se me afigurava era entrar pela carne a dentro dos outros para não sentir tanto o mal-estar do meu corpo. Fui para junto dos meus, magra, assustada, e pedi ajuda, pela primeira vez. E a coisa correu francamente bem, tão simples e apaziguador como… como pedir e receber.

Recobrei. Recobro todos os dias, ainda a medo, frágil, doce. E nos últimos dias, perante alguns acontecimentos, constatei em mim algo que se constituía como uma enigma: perante situações temerosas ou passionais, não consigo sentir nada, sou de uma insensibilidade dura que por vezes fere a carne dos outros; noutros casos, em contextos insignificantes, como perante o encontro de um rosto anónimo no metro, uma tonalidade do céu, o aroma de uma esquina, uma frase ou melodia, o sangue ferve e quebro com a facilidade de um ramo seco. Que estranha álgebra poderá explicar esta insensibilidade mórbida que vibra com os nervos arrebitados em franja?

Andava às voltas com esta pergunta enquanto lia A Educação Sentimental do caríssimo Flaubert e eureka! eis que mais uma vez, ele me explica a mim mesma! As semelhanças com Madame Bovary são extensas; fiquemo-nos pelas mais evidentes: o protagonista Frédéric, jovem possuído pelas suas leituras românticas que obsessivamente tenta replicar, entendia-se perante o atraso da felicidade merecida pela excelência do seu espírito. Os primeiros capítulos apresentam-no como um animal engaiolado nas suas fantasias, as suas ocupações exclusivas consistem em olhar, meditar, sonhar, aborrecer-se mortalmente, deambular pelos bulevares de Paris para se distrair de si e aturdir-se com a multidão e o rumor contínuo. A sua libido fixou-se obsessivamente numa senhora casada.

“As prostitutas que encontrava à luz do gás, as cantoras soltando gorjeios, as amazonas nos seus cavalos a galope, as burguesas a pé, as costureirinhas à janela, todas as mulheres, ou por semelhanças ou por contrastes violentos, lhe recordavam a Senhora Arnoux. Olhava, ao longo das lojas, os xailes, as rendas e os pingentes de pedrarias, imaginando-os enrolados à volta dos seus rins, cosidos ao espartilho, fazendo reflexos na cabeleira negra. Nos expositores das vendedoras, desabrochavam as flores para que ela as escolhesse, ao passar; na montra das sapatarias, as pequenas pantufas de cetim bordadas pareciam esperar o seu pé; todas as ruas iam dar a casa dela; as carruagens estacionavam nas praças abertas apenas para o levarem lá mais depressa; Paris ligava-se à sua pessoa, e a grande cidade, com todas as suas vozes, sussurrava como uma imensa orquestra em torno dela.”

Mas a semelhança fundamental entre este romance e o outro é o tédio, que parasitando tudo e todos, constitui a afecção dominante e pano de fundo de toda a narrativa. Flaubert explora as múltiplas nuances da grande afectação da modernidade para nos legar uma cartografia do sistema nervoso desarranjado (assunto íntimo para ele também, vítima de sucessivas crises nervosas que a ciência da altura não consegue definir e que o levam a abandonar estudos e a vida parisiense na primeira juventude). É ao ritmo do tédio e de uma ociosidade estéril que as suas personagens são impulsionadas para paixões sempre decepcionantes; a vida flui e esvai-se num vazio sem fundo, os eventos e as reviravoltas não sucedem (a Revolução provoca apenas uma vontade de rir imensa), enquanto os detalhes, as pequenas vírgulas da história (com “h” minúsculo) se convertem em falsos acontecimentos.

Esta bulimia temporal impede qualquer trabalho, emoção ou valor de perdurar e solidificar-se na História (com “h” grande) que, falhando a sua oportunidade de incorporação no real, não encontra outra alternativa que não a de permanecer refém do Imaginário, hegemonicamente romântico.

“Falavam do que fariam mais tarde, depois de saírem do colégio. Primeiro, empreenderiam uma grande viagem com o dinheiro que Frédéric havia de levantar antecipadamente da fortuna que lhe estava destinada, quando antigisse a maioridade. Depois regressariam a Paris, trabalhariam juntos, não se separariam; e, como refrigério para os seus trabalhos, teriam amores de princesas em alcovas de cetim, ou orgias fulgurantes com cortesãs ilustres. Mas as dúvidas sucediam-se aos seus arrebatamentos de esperança. Após as crises de alegria verbosa, caíam em silêncios profundos.”

A crença romântica na ideia de génio e de sublime originam um sentimento de magnanimidade narcísica engajado numa extenuante demanda por emoções extraordinárias, quase inumanas, que raramente encontram coincidência no real; pensamentos e sentimentos divorciam-se em infindáveis ciclos de mania e melancolia que se sucedem ao longo das páginas, muitas vezes apenas intervalados por uma ponto e vírgula, onde a cólera alterna com a compaixão, o ciúme encontra na ponta da sua faca o desejo mais intenso e a ternura culmina em decepção.

O ciclo de mania-melancolia, onde a intensidade de cada pólo depende do seu extremo, é replicado na dinâmica dos dois amores de Frédéric:

“O convívio com estas duas mulheres, criava na sua vida como que duas músicas: uma folgazã, arrebatada, divertida, a outra grave e quase religiosa; e, vibrando ao mesmo tempo, aumentavam sempre e, a pouco e pouco, confundiam-se; porque, se a Senhora Arnoux lhe tocava só com um dedo que fosse, a imagem da outra, logo se apresentava ao seu desejo, porque tinha, desse lado, uma fortuna menos longíqua; e, na companhia de Rosanette, quando lhe acontecia sentir o coração enternecido, lembrava-se imediatamente do seu grande amor.”

E assim se encontra a raiz dos movimentos dissipadores da adição moderna: perante um vazio narcísico e entendiado que se auto-devora, tudo serve como recurso estimulante ou narcótico, consoante a circunstância e pretensão. O amor, sobretudo o romântico, é em Flaubert a droga protagonista por eleição, fármaco que ora remedia, ora envenena.

“Rodopiavam tão perto dele que Frédéric lhes distinguia as gotinhas de suor nas testas; e este movimento giratório cada vez mais vivo e regular, vertiginoso, transmitindo-lhe ao pensamento uma espécie de embriaguez, sugeria-lhe outras imagens, enquanto todas passavam com o mesmo deslumbramento, e cada uma com uma excitação particular consoante o género da sua beleza. A Polaca, que se abandonava de um modo langoroso, inspirava-lhe o desejo de a apertar contra o peito, fugindo os dois num trenó pela pradaria coberta de neve. Horizontes de volúpia tranquila, à beira de um lago, num chalé, desenrolavam-se sob os passos da Suiça, que valsava de torso direito, e de pálpebras descidas. Depois, de súbito, a Bacante, inclinando para trás a cabeça morena, fazia-o sonhar com carícias devoradoras, em bosques de loureiros cor-de-rosa, num tempo de tempestade, no meio do ruído confuso dos tamboris. A Peixeira, a quem o ritmo rápido tirava o fôlego, soltava risadas; e ele teria gostado, ao beber com ela nos Porcherons, de lhe amarfanhar, com ambas as mãos, o lenço que trazia ao pescoço, como nos bons velhos tempos. Mas a Estivadora, cujas pontas dos pés mal afloravam o chão, parecia ocultar na ligeireza dos membros e no ar sério do rosto todas as subtilezas do amor moderno, que tem a justeza de uma ciência e a mobilidade de um pássaro.”

Mas tudo o resto é mobilizado pela valsa do desejo historicamente frustrado: o vinho acalma, o desprezo excita, os perfumes enervam, os bailes distraem, a compaixão expande, a política atordoa, a morte diverte, a vida citadina alegra, etc., mas logo, as drogas confundem as suas propriedades anestésicas e euforizantes e tudo se baralha de novo, e o vinho excita, o desprezo acalma, os perfumes tranquilizam, os bailes aborrecem, a compaixão retrai, a política estimula, a morte irrita, a vida citadina deprime e a dura insensibilidade alterna com enervamentos subtis numa dança despropositada de compassos desvairados.

Todos as personagens desta Educação são líquidas, fantoches de emoções fraudulentas porque transitórias, que se enganam uns aos outros, ocultando a atrofia sentimental por detrás da máscara de uma sensibilidade extrema que não passa de nervos em franja. Os caçados aceitam as mentiras como homenagens áquilo que não sentem mas gostariam de sentir e os caçadores, inebriados pelas próprias palavras, chegam a acreditar no que dizem.

“- O que se passa? Estou arruinada, arruinada! Estás a ouvir?

(…)

- É a miséria, pois não posso oferecer-te uma grande fortuna!

Apenas tinha trinta mil libras de rendimento, sem contar com o palacete, que valia talvez dezoito a vinte, não mais.

Embora isso fosse a opulência para Frédéric, nem mesmo assim deixou de sentir uma decepção. Adeus sonhos, e toda a grande vida que iria levar! A honra forçava-o a desposar a Senhora Dambreuse. Reflectiu um minuto: depois, com um ar terno:

- Vou ter-te sempre, a ti!

Ela lançou-se-lhe nos braços; e ele apertou-a contra o peito, com uma ternura em que havia um pouco de admiração por si próprio. A Senhora Dambreuse, cujas lágrimas já não corriam, ergueu o rosto, radiante de felicidade e, pegando-lhe na mão:

- Ah, eu nunca duvidei de ti! Contava com isso!

Esta certeza antecipada daquilo que ele considerava como uma boa acção desagradou ao jovem.”

A educação sentimental de Frédéric vai consistir no desmoronar de todos os seus sonhos. Acompanhamos o seu desinteresse pelos estudos, a sua miséria na província e o entusiasmo com que recebe a herança do tio, a sua introdução na alta sociedade, a sede de luxo, da vida citadina e de mulheres. É pai e perde o filho. Quase casa. Quase volta para a província. No final do romance, quando a juventude já passou, Frédéric constata que falhou a sua vida. A felicidade aparece-lhe como uma imagem passada – uma imagem romântica que assombrou e devorou o seu futuro.

Com o retraimento dos deuses e a correlativa imanentização do mundo na modernidade, ficámos reféns da própria carne, encerrados e ensarilhados em nós mesmos, a todo o instante buscando um meio de escape que nos alivie do facto dos céus terem desabado e termos ficado aqui em baixo tão sozinhos. E tão sozinhos vamos de droga em droga, de sexo em sexo, de emoção em emoção buscando algum consolo, mas ainda assim, incapazes de abandonar a trincheira da nossa solidão narcísica e expropriar os nossos corpos ao Amor e à Revolução, porque as imagens esteticizadas sugam o nosso sangue e impedem os afectos genuínos, por certo bem menores e menos belos, e a capacidade dos nossos rostos tocarem e serem tocados. Mas, durante algum tempo, nada disto importa muito porque da moral aturdida nasce um gozo perverso.

“Os seus lindos olhos húmidos cintilavam de uma paixão de tal forma poderosa que Frédéric a atraiu para os joelhos e disse para consigo: «Sou mesmo um grande canalha!», aplaudindo-se pela sua perversidade.”

O pior é que também este orgulho imprevisto perde eventualmente a flor da sua novidade. O que nos sobra, portanto já não é o Grande Outro, Deus, mas o Outro, o humano. Enquanto ele não assoma, recaímos no mesmo vazio intímo, esse tédio desértico, e recorremos a meios para excitar os sentidos e sentir qualquer coisa a mais de Outro e a menos do Mesmo. No dia seguinte, a inevitável ressaca – todo o prazer se paga – e voltamos a sentir demais. Do Mesmo: ou seja, o sentir tanto até quebrar, que me intrigava, é apenas sentir-me demais. A ver se me esqueço então de caçar a minha própria pele…

sexta-feira, 18 de maio de 2012

I have heard of killer texts


When I first saw it, the small red seep, I did not believe it.
I watched the men walk about me in the office.  They were so flat!
There was something about them like cardboard, and now I had caught it,
That flat, flat, flatness from which ideas, destructions,
Bulldozers, guillotines, white chambers of shrieks proceed,
Endlessly proceed--and the cold angels, the abstractions.
I sat at my desk in my stockings, my high heels,

And the man I work for laughed:  'Have you seen something awful?
You are so white, suddenly.'  And I said nothing.
I saw death in the bare trees, a deprivation.
I could not believe it.  Is it so difficult
For the spirit to conceive a face, a mouth?
The letters proceed from these black keys, and these black keys proceed
From my alphabetical fingers, ordering parts,

Parts, bits, cogs, the shining multiples.
I am dying as I sit.  I lose a dimension.
Trains roar in my ears, departures, departures!
The silver track of time empties into the distance,
The white sky empties of its promise, like a cup.
These are my feet, these mechanical echoes.
Tap, tap, tap, steel pegs.  I am found wanting.

This is a disease I carry home, this is a death.
Again, this is a death.  Is it the air,
The particles of destruction I suck up?  Am I a pulse
That wanes and wanes, facing the cold angel?
Is this my lover then?  This death, this death?
As a child I loved a lichen-bitten name.
Is this the one sin then, this old dead love of death?



Sylvia Plath, Three Women

terça-feira, 15 de maio de 2012

O Crime do Poeta






Era uma vez uma criança estranha. Na aldeia onde cresceu todos a temiam. Os mais antigos diziam que os seus olhos grandes e violetas traziam mau agouro. As línguas mais desocupadas avançavam que a criança tinha pacto com o demónio. A própria mãe desconfiava da criança desde que o seu corpo começou a crescer dentro de si. Pensara até ao momento do parto que trazia dentro do seu ventre um nado-morto.

- Senhor doutor, não pode ser. Nem um pontapé, nem um movimento, nada. Alguma coisa está mal.

O médico sorria e acalmava a mãe com ecografias e evidências científicas:

- Não se preocupe minha senhora, é um bebé forte. Olhe, deve ter um feitio muito calmo. Traz aí um santo ou santinha, é o que é!



E de facto, a criança nasceu e cresceu. Forte e quieta. Esse sossego continuou a alarmar a mãe. Recordava-lhe a quietude antes dos grandes vendavais da sua terra. Por isso, a mãe espiava a criança a toda a hora.
Um dia, quando a criança tinha sete anos, a família decidiu fazer uma viagem de sete dias pelo país. Visitaram as cidades mais importantes, mosteiros, serras e castelos. No caminho de regresso, fizeram um desvio por uma estrada antiga que serpenteava a costa marítima. A criança nunca tinha visto o mar. Entrou em frenesim no banco de trás, parlando incessantemente e suplicando que parassem uns instantes para ver o mar de perto. O pai concedeu mas disse que o faria no local mais bonito, para que a criança visse o mar a tentar tomar a terra. A criança acatou a decisão em desassossego. A mãe seguia com o rosto colado no pára-brisas, aterrorizada pela mudança súbita de comportamento, repetindo de si para si,

- É apenas uma criança, apenas uma criança que vai ver o mar pela primeira vez. Apenas isso, Maria.

Mas as mães têm sempre razão, uma razão secreta que adivinha os sismos nos corações dos filhos. O pai parou o carro e saíram todos, a mãe com medo, a criança com passos decididos e eufóricos. O pai ia explicando que aquele lugar se chamava Boca do Inferno porque se diziam que aquelas águas estavam destinadas a engolir a terra.

A criança foi pela mão do pai ver as águas a galgarem as rochas. Atraída pelo som das ondas que rebentavam violentas, soltou-se da mão paterna e abeirou-se do precipício para espreitar a origem daqueles braços de água. Nesse preciso momento, com o rosto salpicado pelas vagas tumultuosas, a criança sentiu o quebrar de tormentas no seu peito O seu coração partia-se em dois e a criança não queria arredar pé dali. Ouviu a voz da mãe, quebrada, dizer,



- Não te acerques demasiado da beira, olha que ainda cais!
E adivinhou nelas, uma vontade de catástrofe rochas abaixo e perdoou a mãe em simultâneo, porque agora a criança imaginava a dor de uma mãe e, por isso, conhecia e compreendia até os seus pensamentos mais secretos. A criança deu um passo em frente, sentiu um pêndulo dentro do peito agitar-se, reclamando o beijo do abismo e fechou os olhos. Com a alma embalada pelo aguaceiro subterrâneo, a criança ia compreendendo o mundo e a história dos seus dias, séculos, milénios, eras. O seu corpo soltava-se líquido da infância e envelhecia agilmente pela compreensão. Nesse instante, a criança, de olhos marejados pelo sal das águas, entendeu deus e teve compaixão do mundo.

Instada a recuar, desta vez, pela voz segura do pai, a criança percebeu que tudo entendia e que estava destinada a amar e a perder-se pela beleza do mundo. Mas a beleza era das matérias mais ariscas, perigosa, podia tornar-se insuportável e despedaçar num jorro a alma mais incauta. A beleza andava de mãos dadas com a loucura. E a loucura era empresa arriscada, era voo e queda.

De regresso ao carro, a família seguia silenciosa e de pés encharcados. No banco traseiro do carro, viajavam agora mais dois passageiros: a beleza e a loucura. E a criança já não era criança: tinha decidido apostar a vida. A voz da infância agonizou nessa viagem, no banco traseiro, ladeado de vidros chuvosos, com uma pergunta que suspirava:


- e se cais, para onde cais?

- Não cais para lado nenhum. O terrível da queda é isso: quando começas a cair nunca mais páras, respondeu a voz da loucura.



A mãe não ouviu este diálogo mas soube que naquela tarde tinha perdido a sua criança e seguiu gelada o resto da viagem. Nessa noite, deitou a criança que não era mais criança, muito menos sua, e beijou-lhe com tristeza resignada as faces, recordando a voz de malha da sua avó,

- É assim, filha, a gente tem os filhos mas eles pertencem ao mundo, não são nossos.



A sua avó sabia muito. Não sabia escrever mas sabia muito. Tinha parido treze filhos, dos quais apenas três vingaram até à velhice. Os outros levou-os o mundo, a guerra, o suicídio, os jogos, as terras.
Quando saía do quarto, a voz delirante chamou-a, voltou-se rápido, talvez ainda pudesse salvar a criança, talvez fosse ainda uma criança, uma criança apenas e ela não se devesse inquietar,

- Mamã?
- Sim?
- Amo a beleza.

A mãe soube então que a sua criança estava perdida, não para o mundo, mas contra o mundo, de uma forma ainda mais cruel.


- São horas de dormir,
Respondeu e saiu do quarto e nervosa admitiu primeiro para si que tinha medo daquela criança. Disse depois mais tarde, já deitada na cama, em voz alta para o seu marido,

-
A criança é diferente, José.
- Diferente como?
- Tu não notas?
- Não. Tu que notas?
- Não sei. Não sei bem. É estranha, José!
- Não é nada. Isso são preocupações de mãe. Está tudo bem.
O homem abraçou-a com as mãos largas e ásperas e ela amou-o como já não o amava há muitos anos. E quis acreditar que tudo estava bem. Jurou muda que nunca mais falaria nisso e que tudo estava bem.

Semanas depois, a criança saiu um dia de casa, ainda de madrugada, usou de passos adultos para ir até ao jardim oriental que ficava na outra margem da cidade mais próxima da aldeia. Cruzou-se com os fantasmas da noite, prostitutas, chulos, ladrões, bêbados, mas nem ela teve medo nem nenhum ousou falar-lhe ou fazer-lhe mal.

A criança amava o lago que havia nesse jardim e as centenas de carpas que se afadigavam nas águas num trânsito de cores. Nessa manhã, a criança levava nas suas mãos o imperativo da beleza. Distribuiu veneno pelas águas e aguardou com os olhos hipnotizados as bocas que bailavam á superfície e devoravam o veneno. A criança imaginou que em cada uma daquelas bocas escancaradas se arrendondava uma palavra derradeira.

Esgotado o baile das bocas e das palavras, o sol nasceu amarelo e forte sobre um lago onde centenas de carpas bailavam mortas à tona das águas paradas na recordação de um antigo trânsito de cores. Um crime tinha sido cometido, o real tinha sido assassinado pela ideia que uma criança tinha da beleza.

Alertadas as autoridades, a criança foi levada para casa, repreendida, os pais informados e encarregues do castigo. A mãe fechou-a no quarto durante duas semanas, com as persianas cerradas e sem ver nem falar com ninguém. As refeições foram parcas e entregues em silêncio pela cara ofendida da mãe. A criança não percebia que mal tinha feito para merecer esse castigo e tratou de ocupar o tempo lendo.

Apaixonou-se então pelas palavras e pensou que nelas poderia encontrar a sua redenção e o perdão da mãe. Um dia, quando o rosto encerrado da mãe assomou na ombreira a criança disse com voz de criança,

- Mãe, escrevi-te um poema, para que me perdoes.

A mãe, pegou no papel, desconfiada, e leu. No final, começou a rir contente e olhou a criança pela primeira vez com olhos de mãe e disse, numa comoção de voz alagada:
- É muito bonito! É lindo!


Nessa noite, pude tornar a jantar com o meu pai e a minha mãe. Uma mãe nova e alegre. Também eu me sentia alegre. Tinha descoberto que com as palavras podia cometer todas as loucuras e crimes em nome da beleza e sair impune. Assim cresci e me tornei poeta.




quarta-feira, 9 de maio de 2012

Here comes the sun ♥

"Teria saudades de si mesmo, de si naquele instante passado em que tivera como insuportável a solidão. (...) Mas não era uma tristeza, era exatamente uma saudade de ter sofrido o que sofrera, o necessário para usufruir mais tarde, agora, a ...felicidade. (...) Nunca cultivava a dor, mas lembrá-la com respeito, por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é. Se for assim, não é necessário voltar atrás. A aprendizagem estará feita e o caminho livre para que a dor não se repita."
 
Valter Hugo Mãe, O filho de mil homens