sábado, 25 de outubro de 2008

A Moeda Viva




Michel é um funcionário público que orçamento eventos culturais e não acredita no poder de redenção da arte nem no progresso civilizacional («A cultura é isto, dizia eu para comigo, um bocado chata, mas é bom assim, cada um de nós é remetido para o nada de si mesmo»). O seu quotidiano é desesperançado e resignado e a sua visão do mundo é altamente corrosiva para as alminhas sem demais inquietações: após o trabalho, Michel vai a um peep-show ver ratas em movimento e em directo, para limpar as ideias e esvaziar os testículos. Encerrado numa solidão sem testemunho nem solidariedade, não se interessa pelos semelhantes nem mesmo pelas mulheres, apenas no seu prazer efémero. O serão é passado em frente ao televisor, sem problemas pois tem cento e vinte e oito canais.



«Quando estava prestes a entrar na banheira, senti a chegada, sob a forma de uma barata tonta, de um acesso de neura. Logo havia de ser agora, um acesso de neura; não podia chegar em melhor altura. Aí vinha ela a caminhar pelos azulejos, a criatura; tentei apanhar um chinelo, mas sabia bem que, no fundo, tinha poucas hipóteses de a esborrachar. Se assim era, não valia a pena tentar. Mesmo a tailandesa Oôn, mais a sua vagina elástica, também pouco poderia fazer. Estamos todos condenados à partida. Tal como as baratas tontas, também as neuras copulam sem graça nem alegria aparente; mas copulam furiosamente, e as suas mutações genéticas são rápidas; contra elas, somos completamente impotentes» (p. 45).



Desabituado das regras da convivência social, evita o contacto com o outro bem como a consciência de si próprio. «Lentamente, tudo se vai tornando difícil; a vida resume-se a isso» Podemos armar-nos em espertos e fingir que aprendemos alguma coisa com a vida, mas é sempre ela que acaba com tudo. Até lá, à morte, vamos passando o tempo com passatempos, rodeando-nos de ideias, livros e recordações para evitarmos a realidade crua – a solidão – na ponta da faca de uma refeição nua.



Plataforma gira em torno do fenómeno do turismo sexual e explora o tema tabu de uma economia baseada no erotismo, no comércio de corpos e troca de fluidos, também abordada noutro livro-murro no estomâgo de Houellebecq, As Partículas Elementares.



«Passa-se com certeza alguma coisa para que os ocidentais não consigam deitar-se uns com os outros; talvez haja razões de narcissismo, individualismo, culto da perfeição ou outra coisa qualquer. A verdade é que, a partir dos trinta anos, as pessoas passam a ter dificuldades em encontrar novos parceiros sexuais; e no entanto, sentem uma grande necessidade deles, embora se trate de um desejo que se vai dissipando lentamente. Assim, passam trinta anos das suas vidas, a quase totalidade do tempo de adultos, num estado de permanente carência sexual. (…) Neste momento, a única prática com algum significado é o sadomasoquismo. (…)




De um lado, centenas de milhões de ocidentais que têm tudo o que querem mas não dispõem de satisfação sexual: procuram-na, procuram-na incessantemente, mas não a encontram – e são profundamente infelizes. Do outro lado, há milhares de milhão de pessoas que não têm nada, que morrem de fome na flor da idade e vivem em condições de total insalubridade, mas que vendem a única coisa de que dispõem – o seu próprio corpo, a sua sexualidade intacta».




Os ocidentais tornaram-se demasiado racionais, abdicaram dos seus instintos e da sua animalidade, e consequentemente são incapazes de dar e receber prazer, com toda a fraqueza e dependência que este implica. Resta apenas uma sexualidade profissional, cerebral até, com regras e acordos pré-estabelecidos, como no caso das práticas sadomasoquistas, a carne na sua experiência dos limites, em busca de uma afectação marcante e permanente como uma tatuagem ou uma cicatriz, para gente culta e inteligente que perdeu o interesse pelo sexo no seu sentido arcaico.


O amor, a única possibilidade de santificação, termina abruptamente com a morte de Valérie, companheira de Michel, num violento ataque terrorista do Oriente contra o Ocidente e o livro termina com um hino solitário ao desencanto da contemporaneidade:


«Até ao final, continuarei a ser um filho da Europa, um filho da inquietação e da vergonha; não sou depositário de qualquer mensagem de esperança. Não sinto ódio pelo Ocidente, quando muito um enorme desprezo. Sei apenas que, sendo como somos, exalamos um imenso fedor a egoísmo, a masoquismo e a morte. Criámos um sistema em que, pura e simplesmente, é impossível viver; um sistema que, ainda para mais, continuamos a exportar». Que gera mais perdas que ganhos.

domingo, 19 de outubro de 2008

A Metamorfose


Passados muitos anos, voltei a reler A Metamorfose de Kafka. Recordei o gume da frase de abertura: «Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso insecto.» O absurdo da história voltou a impressionar-me profundamente, e não me refiro à metamorfose de Gregor Samsa num insecto (ou verme com Valdimir Nabokov defendia ser a tradução correcta da palavra alemã Ungeziefer) – afinal, estas coisas acontecem quotidianamente a muitos de nós – mas à servidão voluntária do protagonista que, acordando numa situação-limite, não consegue quebrar com a formatação que lhe impuseram e que ele assumiu, continuando a insistir na permanência no real, no correcto, no concreto e no útil para a comunidade, para lá de toda a racionalidade.


A razão tem destas coisas quando se apura demasiado, acaba por nos trocar as voltas e enredar no absurdo de termos perdido o nosso tempo a trabalhar desalmadamente num trabalho chato para um patrão filha-da-puta, para pagar uma dívida que nunca existiu e sustentar vícios e parasitas que a sociedade de consumo transformou em necessidades vitais. E um dia acordamos - e que é feito da nossa humanidade, onde estão os outros, a comunidade que sustentava o nosso quotidiano na sua hipocrisia, frustração e monetarização -, mas não conseguimos desligar o programa, e vamos tentando em vão equilibrar-nos nas frágeis patas que substituíram os nossos membros inferiores, para apanharmos o próximo comboio e não chegarmos mais atrasados ao trabalho que detestamos, porque não podemos ficar o dia inteiro na cama a olhar para as paredes ou colados ao tecto do nosso quarto, não foi para isso que nos preparam. Se é certo que a liberdade tem um preço e apenas temos que decidir se o queremos pagar, também o tempo de vida que desperdiçamos, nos será reclamado.

Dos treze para os vinte seis, a passagem do tempo não alterou a minha leitura da obra, mas percebi que me tornou mais crua e ácida para com as vítimas. É triste o que acontece a Gregor Samsa numa certa manhã, mas assim como o seu pai agressivo, a sua mãe ausente e a sua irmã egoísta, também eu me sinto incapaz de compaixão por ele, não comungando do seu espírito de sacrifício. Chego, mais uma vez ao final do romance com um sentimento de angústia e revolta: odeio a sua família e desprezo Gregor, incapaz de odiar e de se revoltar – um verme, no final das contas. Descarto-o porque desde o início ele se torna descartável; violento-o também porque ele assim o pede.


Desde tenra idade que tenho um problema com as vítimas; detesto os agressores mas entendo-me bem com eles, a sua linguagem é básica e a retaliação é fácil. Pelo contrário, não lido muito bem com a vítima que aceita ser espancada e espezinhada, que consente na sua servidão e na violência sobre si. Os cristãos chamam-lhe abnegação, humildade, altruísmo, perdão, uma infinidade de palavras com conotações positivas que nos permitirão o acesso a um reino paradisíaco, além, sempre num futuro próximo, que tarda ou parece não se cumprir. (Neste ponto, surgem-me sempre inúmeras questões – será que dão uma pulseira aos eleitos com livre acesso a todas as festas e banquetes? Será que há animadores nesse local idílico? Haverá sessões de karaoke? E que prazeres se praticam lá, para além dos pecaminosos mortais?).


Essa moral cristã de levar uma bofetada e oferecer a outra face, arrepia-me, tira-me mesmo do sério. Caso haja sessões de karaoke no reino do além, poupem-me ao espectáculo deprimente daquela inglesa rechonchuda com uma saia demasiado curta a revelar as coxas rosa-suíno e o ventre marcado pela menopausa e um divórcio mal resolvido, que costuma aparecer nestas noites a cantar o hit I Will Survive de Gloria Gaynor. Porque eu – e esta é uma das poucas certezas que vou tendo- não sou capaz de sobreviver a isso. Prefiro ficar por cá a beber whiskies e a tomar calmantes para suportar os dias mais pesados. Sofrendo agora e aqui, sem terror de vir a sofrer depois, mesmo que rodeada de querubins assexuados e enlouquecedoramente alvos.

Debaixo do mesmo céu


Conseguia ver-se uma ampla planície do Alentejo, com um sobreiro, glorioso na sua solidão, a suportar o quebrado pôr-do-sol violeta, que inundava a alma de Elisa, de fantasmas antigos e saudade, sentada de olhos fitos no horizonte, num poial de pedra branca e gelada.


Com a mão esquerda ia pescando punhados de terra que levava à boca de modo intermitente, e observava aquele sobreiro, que sabia-se lá há quanto tempo ali estaria, olhava o seu tronco rugoso acastanhado e os seus braços esguios semi-cobertos pela doença da cortiça, o ténue verde da sua copa e angustiava-se no pensamento de que aquela árvore lhe sobreviveria, tentando descortinar o segredo da sua longevidade.

Aquela árvore fora testemunha de várias espécies que por aquelas terras passaram e permanecia sólida na sua certeza altiva de que todos passariam menos ela. Elisa ia comendo compulsivamente terra, procurando a comunhão com aquele ente que ela suspeitava ser Deus, testemunha da progressiva degradação da espécie humana. Provavelmente, remontava ao tempo dos dinossauros, e um dia a última matriarca dessa raça há muito extinta também contemplara a árvore e percebera pelos insanos raios violetas que a atravessavam, que nada era capaz de deter o curso do mundo, que o seu ventre se tornara infértil e que aquela paisagem era um prenúncio de viragem.

Quanto tempo passara? Há quanto tempo estava ela ali, gelada numa presença espectral de estátua? Qual era o seu nome? Donde viera e que história era a sua? Olhou em pânico para as suas mãos secas e pareceu-lhe que também estas eram de madeira, pousadas sobre um regaço húmido com cheiro a terra molhada, devassada pelo labor das charruas e dos bois.


Tinha contemplado por demasiado tempo – quanto tempo, ao certo? – o sobreiro, que acabara por assimilar em si a sua natureza insuspeita de árvore. Tentou levantar-se mas não era possível, os seus pés haviam-se convertido em raízes, como tentáculos teimosos ancorados no centro da terra, tentou gritar mas não soube mais que nome evocar – esquecera aliás todas as palavras. Acabou por se acalmar, afinal toda a história fora apagada e saboreou o último rasgo amarelo violeta daquela tarde.


Preparou-se para uma longa noite de silêncio e imutabilidade e, antes da escuridão abraçar a paisagem, olhou de relance para o seu companheiro solitário, na outra extremidade do horizonte, com um tom de desafio e pensou “Agora somos só tu e eu”. Foi este o seu último pensamento. Houve ainda um breve instante em que se imaginou uma árvore exótica – uma palmeira, por certo! – a destoar numa paisagem frugal e quieta.


De ora em diante, ficou por ali, debaixo de sóis violentos, chuvas miudinhas, orvalhos pesados, acolhendo pássaros ensonados em noites primordiais e abrigando homens cansados na sua sombra de verão. Sem pensamentos, nem sentimentos de saudade. Ali, apenas. Sem ponta de inveja pela outra árvore. Havia bastante espaço para ambas e uma eternidade para apreender a sua distância. Debaixo do mesmo céu.

Oh Brother, where art thou?


POEMA EM LINHA RECTA


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenha calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenha agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe . todos eles príncipes na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que, contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ò príncipes, meus irmãos,
Arre estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos . mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

domingo, 12 de outubro de 2008

O Amante

«Não havia que atrair o desejo. Ele estava naquela que o provocava ou não existia. Ou estava lá desde o primeiro olhar ou não existia (…). Desde o primeiro instante ela sabe qualquer coisa deste género, ou seja, que ele está à sua mercê. Logo, que outros além dele poderiam ficar também à sua mercê, se a oportunidade surgisse. Sabe também outra coisa, que doravante chegou o tempo em que não pode escapar a certas obrigações que tem para consigo própria (…).

Ele, treme. Olha-a primeiro como se esperasse que ela fale, mas ela não fala. Então ele também não faz qualquer gesto, não se despe, diz que a ama como um louco, di-lo muito baixo. Depois cala-se. Ela não lhe responde. Poderia responder-lhe que não o ama. Não diz nada. De repente sabe, ali, nesse instante, sabe que ele não a conhece, que nunca a conhecerá, que não tem maneira de conhecer tanta perversidade. E ao fazer tantos e tantos desvios para a agarrar, não poderá nunca. Cabe-lhe a ela saber. Sabe. A partir da ignorância dele, ela sabe de repente; já na barcaça ele lhe agradava. Ele agrada-lhe, a coisa só dependia dela (…).

Anos depois da guerra, depois dos casamentos, dos filhos, dos divórcios, dos livros, ele veio a Paria com a mulher. Telefonara-lhe. Sou. Ela reconhecera-o logo pela voz. Ele dissera: queria só ouvir a sua voz. Ela dissera: sou eu, bom dia. Ele estava intimidado, tinha medo como dantes. A sua voz tremia de repente. E com o tremor, de repente, ela voltara a encontrar a pronúncia da China. Ele sabia que ela tinha começado a escrever livros, soubera-o pela mãe dela que voltara a ver em Saigão. E depois dissera-lho. Dissera-lhe que era como dantes, que ainda a amava, que nunca poderia deixar de a amar, que a amaria até à morte.
»

O desejo comanda todas as operações, enclausura o ser desejado numa redoma, condenado a desejar, amado convertido em amante. Devemos temer sempre aquele que nos deseja. A raíz etimológica da palavra "desejo" remete para a ideia de rapto, desviar alguém através de astúcias e armadilhas.

Esperança

Habito nesta casa velha de três andares há mais de 40 anos. Conheço cada canto escuro de humidade, o ranger frágil das escadas de madeira que atravessam todos os andares, as zonas que o sol ilumina fortemente de manhã e as curvas por onde passa no seu ocaso. Conheço intimamente as manchas de café nos sofás com motivos florais gastos na sala de estar onde já ninguém está, a poeira instalada de modo persistente nos móveis antiquados, os quadros de todas as estações enquadrados por cada janela desta casa silenciosa.

Nasci no quarto de meus pais, no segundo andar, em 1913, numa tarde pontuada por uma chuva mansa e persistente, apenas perturbada pelos gritos de agonia da minha jovem mãe, que aumentaram de intensidade quando a parteira lhe mostrou o meu corpo prematuro e violeta e minha mãe se apercebeu de que o seu primeiro filho era uma menina de olhos excessivamente grandes, morta à nascença.

Penso que minha mãe nunca recuperou verdadeiramente daquela perda e que uma parte da sua juventude e alegria ficou para sempre encerrada no meu rosto violeta. Recordo o seu empenho e diligência em escolher-me um nome para colocar na lápide de mármore e a sua exigência ao severo padre da aldeia em baptizar-me numa cerimónia em que ninguém compareceu para além de minha mãe, nem sequer o meu pai, que decidira sofrer em silêncio e só, observando de quando em quando minha mãe, para se certificar de que esta não tinha perdido o juízo.

Ao longo dos anos, vivi sempre a seu lado, incapaz de a abandonar, espiando todos os movimentos do seu corpo pequeno e magro, os olhares que longas vezes se perdiam no horizonte, sempre atenta à sua voz rouca e frases quebradas, vigiando a escuridão absoluta das suas noites de insónia, sempre descobrindo no seu colo o espaço da minha ausência, da menina Esperança, «Com amor e eterna saudade dos seus pais».

Fui ficando, conheci os meus irmãos, acompanhei os seus primeiros passos, as aventuras da sua infância, as primeiras desventuras da adolescência, comunguei das suas alegrias e tristezas nos almoços de domingo, onde todos permaneciam silenciosos e encerrados no seu mistério e minha mãe sorria, de quando em quando, como uma estátua enigmática de pedra branca. Até que todos foram partindo, um por sua vez, minha irmã para casar e meu irmão para estudar e perder-se no mundo.
Meu pai, homem trabalhador e sóbrio, de mãos pesadas, grossas e ásperas, sempre instalado nos fins de tarde na doçura da sua presença, a fumar cachimbo e a observar atentamente as nuvens azuladas do fumo, morreu na tarde de verão mais quente que alguma vez vivi. Partiu sem um queixume, sem uma sombra no seu olhar, poucas semanas depois de saber que meu irmão abandonara o curso de Direito em Coimbra para partir pelo mundo como marinheiro. Almoçou calmamente como sempre o fazia, levantou-se e anunciou a minha mãe que iria descansar um pouco, beijou de modo trémulo a testa de minha mãe, que tricotava distraidamente na sala de estar, rodeada pelos motivos florais ainda não tão gastos do sofá, e cambaleou até à rede ancorada na figueira que abraça as traseiras desta casa, seguido pelo seu cão Tejo.
Morreu nessa rede, embalado num sono pesado, na mesma rede onde fui concebida numa manhã branca e ligeira por um casal jovial e risonho que nunca encontrei, a rede onde a minha irmã chorou a perda do seu primeiro amor, onde meu irmão sonhou com paisagens inóspitas e mulheres exóticas de países distantes, a rede onde minha mãe se sentou incontáveis vezes, olhando as estrelas em noites frias com um olhar pesado e vazio, tentando imaginar à força que aspecto teria eu tido aos 3 anos, aos 4, aos 7, aos 20, que linhas de carácter teriam tecido meu destino e que conversas teríamos as duas. Sem imaginar jamais que ali estava eu, a seu lado, sem respirar mas atenta a todas as ondas que dela emanavam. Sempre, como uma sombra a quem ninguém devolve o olhar. Como o cão Tejo que até morrer de cansaço e velhice, permaneceu ainda sete anos junto da rede onde meu pai faleceu, fiel na sua espera inútil e na esperança do dia em que o dono regressaria. Porque os cães e os fantasmas não conseguem compreender a ideia da morte.

Aforismo #1


O sexo por sexo é uma das maneiras mais eficazes de boicotar o contacto com o outro.