terça-feira, 28 de abril de 2020

Los anillos fatigados

Hay ganas de volver, de amar, de no ausentarse,
y hay ganas de morir, combatido por dos
aguas encontradas que jamás han de istmarse.
Hay ganas: de un gran beso que amortaje a la Vida,
que acaba en el áfrica de una agonía ardiente,
suicida!
Hay ganas de... no tener ganas. Señor;
a ti yo te señalo. con el dedo deicida:
hay ganas de no haber tenido corazón.
La primavera vuelve, vuelve y se irá. Y Dios,
curvado en tiempo, se repite, y pasa:  pasa:
a cuestas con la espina dorsal del Universo.
Cuando, las sienes tocan su lúgubre tambor...
cuando me duele el sueño grabado en un puñal,
hay ganas de quedarse plantado en este verso!


César Vallejo


Um homem não nasce homem, torna-se homem


O que significa hoje ser-se viril? E o que significava há cem ou mil anos? Estará a virilidade em crise nas sociedades contemporâneas? HISTÓRIA DA VIRILIDADE, organizada em 3 volumes, traça a genealogia da identidade masculina e a sua transformação ao longo dos séculos nas sociedades ocidentais. O segundo volume centra-se no século XIX, período em que o sistema de representações, de valores e normas que constitui a virilidade se impõe com força máxima, sobretudo através da expansão colonial e industrial.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Nostalgia


"Precisamos de encher os olhos e as orelhas daquelas coisas que existem no início de um grande sonho. Todos devem gritar que construiremos uma pirâmide, não importa se não a construirmos! O que importa é alimentar o desejo. Temos que tirar a alma de todas as partes, como se fosse um lençol que cobre o infinito." 💜

quinta-feira, 23 de abril de 2020

O jovem mágico




O jovem mágico das mãos de ouro que a remar não se cansa muito e olha muito depressa (como se fosse de moto) veio hoje ficar a minha casa
Vivia longe
longe já se sabia
tão longe que era absurdo querer determinar
metade campo metade luz
aí era a sua casa o sítio onde era longe
mesmo de olhos
fechados (como ele estava)
e de braços cruzados (como parecia dormir)
o jovem mágico das mãos de ouro
que era todo de empréstimo à minha noite
que falou
por acaso que nem se chamava assim
(segundo também contou) tinha vivido há muito
ele, que estava ali, era um falsário
um fugido de outro basta ver os meus olhos
nada sabemos
de nós a não ser que chegamos
sem uma luz a esconder-nos o rosto
belos e apavorados de estranhos casacos vestidos
altos de meter medo às aves de longo curso
nem há
noites assim não há encontros
ao longo das enseadas
não há corpos amantes não há luzeiros de astros

sob tanto silêncio tão duradoura treva
e não
me fales nunca eu sou surdo eu não te oiço
eu vou nascer feliz numa cidade futura
eu sei atravessar as fronteiras das coisas
olha para as minhas mãos que te pareço agora?
No entanto
surgiu como simples criança
conseguia sorrir sentar-se verter águas
com as maõs na cintura livre natural
ele que era um fantasma um fugido de outro
um que nem
mesmo se chamava assim
o jovem mágico nu de todos os sítios da Terra

Mário Cesariny

quarta-feira, 22 de abril de 2020

a r b o r



Pássaros soltam os seus gritos, chilreiam, lançam apelos roucos, trinados. As grandes árvores estremecem. A natureza convida-te e ama-te. Mordiscas ervas que logo voltas a cuspir: a paisagem inspira-te pouco, a paz campestre não te emociona, o silêncio dos campos não te excita nem te acalma. Só te fascinam por vezes um insecto, uma pedra, uma folha caída, uma árvore: ficas por vezes horas e horas a olhar para uma árvore, a descrevê-la, a dissecá-la: as raízes, o tronco, os ramos, as folhas, cada folha, cada nervura, de novo cada ramo, e o jogo infinito das formas diferentes que o teu olhar ávido exige ou suscita: rosto, cidade, dédalo ou caminho, brasões e cavalgadas. À medida que a tua percepção se torna mais aguda, mais paciente e mais flexível, a árvore explode e renasce, mil tons de verde, mil folhas idênticas e no entanto diferentes. Parece-te que poderias passar a tua vida diante de uma árvore, sem a esgotar, sem a compreender, porque não tens nada para compreender, só para olhar: afinal, tudo o que podes dizer dessa árvore é que é uma árvore: tudo o que essa árvore pode dizer-te é que é uma árvore, raiz, depois tronco, depois ramos, depois folhas. Não podes esperar dela outra verdade. A árvore não tem nenhuma moral a propor-te, nenhuma mensagem a transmitir-te. A sua força, a sua majestade, a sua vida – se é que ainda esperas extrair algum sentido, alguma coragem, dessas metáforas antigas – nunca passam de imagens, de boas notas, tão inúteis como a paz dos campos, a cobardia da água que dorme, a valentia dos pequenos carreiros que sobem não muito alto mas sem a ajuda de ninguém, o sorriso das colinas onde os cachos de uvas amadurecem ao sol.
É por isso que a árvore te fascina, ou te espanta, ou te repousa, é por causa dessa evidência insuspeitada, insuspeitável, do tronco e dos ramos, das folhas. É por isso, talvez, que nunca vais passear com um cão, porque o cão olha para ti, suplica-te, fala-te. Os seus olhos húmidos de reconhecimento, os seus ares de cão maltratado, as suas cabriolas de cão feliz, obrigam-te constantemente a conferir-lhe o ignóbil estatuto de animal doméstico. Não podes manter-te neutro diante de um cão, como não podes manter-te neutro diante de um homem. Mas nunca dialogarás com uma árvore. Não podes viver diante de um cão porque o cão, a cada instante, pedir-te-á para o fazeres viver, o alimentares, o elogiares, seres homem para ele, seres o seu dono, seres o deus que troveja esse nome de cão que o fará deitar-se logo no chão. Mas a árvore nada te pede. Podes ser Deus dos cães, Deus dos gatos, Deus dos pobres, basta que tenhas uma coleira, um pouco de bofe, alguma fortuna, mas nunca serás dono de uma árvore. Nunca poderás fazer mais do que desejar transformar-te em árvore.

Georges Perec, Um homem que dorme

oh dambala...

Est-ce que vous m'aimez?

terça-feira, 21 de abril de 2020

Os amantes petrificados


CUARTETO DE POMPEYA


En Pompeya, entre otros cuerpos petrificados por las lavas y cenizas de la erúpcion del Vesubio (año 79), se conservan los de un hombre y una mujer en el acto amoroso.


I

Nos desnudamos tanto
hasta perder el sexo
debajo de la cama,

nos desnudamos tanto
que las moscas juraban
que habíamos muerto.

Te desnudé por dentro,
te desquicié tan hondo
que se extravió mi orgasmo.

Nos desnudamos tanto
que olíamos a quemado,
que cien vezes la lava
volvió para escondernos.

II

Me hiciste tanto daño
con tu boca, tus dedos,
me hacías saltar tan alto

que yo era tu estandarte
aunque no hubiera viento.
Me desnudaste tanto

que pronuncie mi nombre
y me dolió la lengua,
los años me dolieron.

Nos desnudamos tanto
que los dioses temblaron,
que cien vezes mandaron
las lavas a escondernos.

III

Te frotabas tan rápido
los senos que dos veces
caí en sus remolinos,

movías el culo lento,
en alto, para arrearme
a su negra emboscada,

su mediodía perenne.
Abrías tanto su historia,
gritaba su naufragio...

Nos desnudamos tanto
que no nos conocíamos
que los dioses mandaron
la lava a reiventarnos.

IV

Te desmentí de cabo
a rabo devolviéndote
a tus primeros actos,

te escudriñe profundo
hasta escuchar la historia
amarga de tu cuerpo,

pues sólo el amor sabe
cómo llegar tan hondo
sin molestar la sangre.

Esa noche la lava
mudó el paisaje en piedra.
Tú y yo fuimos lo único
que se murió de veras.


Fabio Morabito

Sinais de Cena 4


Revista de Estudos de Teatro e Artes Performativas, Série II Número 4
A revista Sinais de Cena ocupa uma posição de destaque entre as publicações especializadas em teatro e artes performativas em Portugal. Fundada em 2004, inaugurou, em 2016, uma segunda série, sob a chancela das edições Orfeu Negro, adquirindo peridiocidade anual e uma distribuição mais ampla.
O número quatro (Janeiro 2020) é dedicado ao tema «A Prática como Investigação», com a participação de vários autores nacionais e internacionais que se têm dedicado a questões relacionadas com a investigação académica e as práticas artísticas. Para além dos vários ensaios, críticas de teatro e recensões a obras de e sobre teatro, neste número destaca-se uma longa entrevista ao actor e encenador Pedro Gil e um portefólio dedicado ao histórico fotógrafo de teatro José Marques.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Charlotte Salomon: Leben oder Theater?







o design invisível


A Força da Forma problematiza a identidade do design português e as suas múltiplas intersecções com outros formatos sociais e institucionais. Numa reflexão crítica sobre a contaminação das formas gráficas pelos regimes políticos, o mercado e a tecnologia, Mário Moura revela como o discurso do design nunca é puramente visual. Desenvolvidas a partir da exposição homónima no âmbito da Porto Design Biennale 2019, as crónicas historiográficas apresentadas traçam um percurso amplo, por vezes inesperado, desde as práticas do design no Estado Novo ao diálogo com a arquitectura e a banda desenhada.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Vuelvo al sur

Juan Luís Panero


Fundamento e Imersão: Ensaios sobre Técnica


Autores
João Marques Carrilho | José A. Bragança de Miranda | José Gomes Pinto | Jussi Parikka |  Luís Cláudio Ribeiro | Wolfgang Ernst
Muitos sectores da experiência contemporânea estão a ser substituídos, complementados e articulados pelas tecnologias digitais, e ao mesmo tempo surgem novos domínios inteiramente mediados pela tecnologia. Os textos reunidos em FUNDAMENTO E IMERSÃO resultam de um estreito diálogo entre os seus autores, e buscam compreender a crescente convergência entre cultura e técnica. Partindo de domínios conexos como a ecologia dos media, o fundamento sónico nos novos ambientes imersivos, as relações entre arquivo e memória, fotografia e modernidade, as dimensões cósmicas do som e a consciência humana, as reflexões aqui apresentadas pretendem mapear alguns dos problemas centrais a uma teoria da técnica.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

oração da tarde

ORAISON DU SOIR


Je vis assis, tel qu'un ange aux mains d'un barbier
Empoignant une chope à fortes cannelures,
L'hypogastre et le col cambrés, une Gambier
Aux dents, sous l'air gonflé d'impalpables voilures.

Tels que les excréments chauds d'un vieux colombier,
Mille Rêves en moi font de douces brûlures:
Puis par instants mon coeur triste est comme un aubier
Qu'ensanglante l'or jeune et sombre des coulures.

Puis, quand j'ai ravalé mes rêves avec soin,
Je me tourne, ayant bu trente ou quarante chopes,
Et me recueille, pour lâcher l'âcre besoin:

Doux comme le Seigneur du cèdre et des hyssopes,
Je pisse vers les cieux bruns, très haut et très loin,
Avec l'assentiment des grands héliotropes.


Arthur Rimbaud


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ORAÇÃO DA TARDE


Vivo abancado como um Anjo no barbeiro,
De cerveja empunhando as grossas caneluras,
Hipogastro e pescoço arqueado, sobranceiro,
Sob o pesado céu de ténues velaturas.

Tal o excremento quente aquece o galinheiro,
Mil sonhos em mim fazem doces queimaduras.
Meu terno coração escorre como um balseiro
Ensanguentado no ouro das emborcaduras.

E quando os Sonhos meus engoli com cuidado,
Depois que já bebi trinta ou quarenta chopes,
Recolho-me a aliviar seu acre resultado:

Doce como o Senhor do cedro e dos hissopes.
Aponto ao pardo céu meu mijo de alto arqueado
- E acenam-me que sim os grãos heliotrópios.


Tradução Jorge de Sena

ensaios sobre fotografia



Autores:
Rosalind Krauss | Allan Sekula | John Tagg | Susan Sontag | Rudolph Arnheim | John Berger | Hubert Damisch | Roland Barthes | Siegfried Kracauer | André Bazin | William M. Ivins Jr. | Walter Benjamin | Paul Valéry | Berenice Abbott | Edward Weston | Man Ray | Laszlo Moholy-Nagy | Franz Roh | Paul Strand | Anónimo | Marius de Zayas | Alfred Stieglitz | Lewis Hine | Peter Henry Emerson | Henry Peach Robinson | Charles Baudelaire | Oliver Wendell Homes | Elizabeth Eastlake | Edgar Allan Poe | Henry Fox Talbot | François Arago | Louis Daguerre | Joseph Niépce
A antologia Ensaios Sobre Fotografia reúne 34 autores, entre eles fotógrafos, escritores e pensadores, e apresenta-nos um vasto conjunto de ensaios fundamentais, desde o séc. XIX até à actualidade, acerca da evolução da fotografia. Organizada e actualizada por Alan Trachtenberg, professor emérito da Universidade de Yale, a presente edição representa um relevante contributo para a história da fotografia, congregando diversas reflexões sobre este medium ao longo de dois séculos, entre as quais as de Louis Daguerre, Walter Benjamin, Susan Sontag e Rosalind Krauss.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

um dia tão bonito...

METEOROLÓGICA

para o José Bernardino



Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)

A vida
é livro
e o livro
não é livre

Choro
chove
mas isto é
Verlaine

Ou: um dia
tão bonito
e eu
não fornico



Adília Lopes

contos de f+das




Era uma vez bruxas e felizes anões,
princesas e príncipes folgazões,
rainhas e heróis aventureiros
que se divertiam muito o dia inteiro.
O Gato das Botas, Branca de Neve, Gata Borralheira, Rapunzel e o Capuchinho Vermelho, a par de muitas outras personagens que já todos conhecemos das histórias para crianças, desfilam neste livro num registo mais íntimo e travesso. CONTOS DE F*DAS é um pequeno álbum  ilustrado, inusitado e repleto de humor, através do qual Benjamino Caldo nos faz viajar até terras de fadas, rainhas, príncipes e ogres, sob cenários mágicos, encantadores e... muito marotos!
Uma divertida e inovadora versão dos contos tradicionais, para adultos!

terça-feira, 14 de abril de 2020

La estacíon violenta

Todo está lejos, no hay regreso, los muertos no están muertos, los vivos no están vivos,
hay un muro, un ojo que es un pozo, todo tira hacia abajo,
pesa el cuerpo, pesan los pensamientos, todos los años son este minuto desplomándose interminablemente,
aquel cuarto de hotel de San Francisco me salió al paso en Bangkok, hoy es ayer, mañana es ayer,
la realidad es una escalera que no sube ni baja, no nos movemos,
hoy es hoy, siempre es hoy,
siempre el ruido de los trenes que despedazan cada noche a la noche,
el recurrir a las palabras melladas,
la perforación del muro, las idas y venidas, la realidad cerrando puertas,
poniendo comas, la puntuación del tiempo, todo está lejos, los muros son enormes,
está a millas de distancia el vaso de agua, tardaré mil años en recorrer mi cuarto,
qué sonido remoto tiene la palabra vida, no estoy aquí, no hay aquí, este cuarto está en otra parte,
aquí es ninguna parte, poco a poco me he ido cerrando y no encuentro salida que no dé a este instante,
este instante soy yo, salí de pronto de mí mismo, no tengo nombre ni rostro,
yo está aquí, echado a mis pies, mirándome mirándose mirarme mirado. 

Fuera, en los jardines que arrasó el verano, una cigarra se ensaña contra la noche.

¿Estoy o estuve aquí?

Octavio Paz, La estación violenta (Tokio, 1952)

ADOPTA UMA LIVRARIA | 10 DIAS, 10 LIVRARIAS - de 14 a 23 de Abril



Com o objectivo de alertar o público para a situação cada vez mais frágil das livrarias independentes, a Orfeu Negro e a Antígona - duas editoras também independentes - uniram esforços para lançar uma campanha de vendas online, intitulada ADOPTA UMA LIVRARIA - 10 DIAS, 10 LIVRARIAS.

De 14 a 23 de Abril (Dia Mundial do Livro), os leitores que encomendarem livros nos sites da Orfeu Negro ou da Antígona estarão a apoiar directamente a livraria designada para esse dia: 30% do valor líquido das suas compras reverte para a livraria. Além disso, terão 10% de desconto sobre o PVP de cada livro e portes gratuitos.

Cada editora seleccionou as suas 10 livrarias independentes, de norte a sul do país. Entre as livrarias assinaladas pela Antígona contam-se a A das Artes (Sines), a Tigre de Papel (Lisboa), e a Flâneur (Porto), entre outras. Já a Orfeu Negro (distinguida no ano passado na Feira do Livro infantil de Bolonha com o prémio de Melhor Editora Europeia de Livro Infantil) dá parte do destaque a livrarias dedicadas ao livro ilustrado, como a Hipopómatos na Lua (Sintra), a Gigões e Anantes (Aveiro) e a Aqui há Gato (Santarém).

A lista completa das livrarias e dos dias da campanha pode ser consultada nas imagens mais abaixo e nos sites das editoras (www.orfeunegro.org e www.antigona.pt) a partir de segunda-feira, dia 13 de Abril.

Tanto a equipa da Orfeu Negro como da Antígona consideram que «é muito importante que as editoras e as livrarias independentes estejam unidas nesta altura particularmente difícil. Umas e outras estão já habituadas a uma existência plena de adversidades em Portugal, mas cabe-nos a todos garantir que, ultrapassado este período, regressemos de boa saúde e mais activas do que nunca. A iniciativa ADOPTA UMA LIVRARIA constitui um pequeno gesto de resistência, que sabemos à partida insuficiente e ao qual contamos somar mais nos próximos meses. Esperamos também que outras editoras se juntem com acções semelhantes.»

Agradecemos a divulgação e a participação de todos!

quarta-feira, 1 de abril de 2020

O sexo da paisagem



A BOA NOVA ANUNCIADA À NATUREZA

«A boa nova anunciada à natureza» é o escândalo que a minha época não aceita. O Ser existe como beleza, mas nós perdêmo-lo e percorremos toda uma órbita excêntrica para o voltar a encontrar. A Boa Nova dirige-se à Terra no seu todo: não só porque nesta se desenvolveram entidades irredutíveis mas também porque é no seu todo que está ameaçada.
Deixou de se formar a partir da Beleza.
A ideia de que tudo o que não é humano tem, tal como o humano, necessidade de redenção, é vital para a nossa continuação aqui, ou noutro lugar.
No momento da posse, no poema de 11 de Junho (poema que nunca foi encontrado) tudo participa nas diversas partes: a boca, a copa frondosa, o cogumelo, a falésia, o mar, a erva rasteira, a leve aragem, os corpos dos amantes. Os três sexos que movimentam a dança do vivo: a mulher, o homem, a paisagem.
Esta é a novidade: a paisagem é o terceiro sexo.

A paisagem não tem um sexo simples. Nem o homem, nem a mulher. Há, no entanto, alguns factos que aqui consigno:
Na paisagem, ou na geografia imaterial da espécie terrestre, os seres humanos distribuem-se em vagabundos, em formadores, em construtores e em poetas.

Os vagabundos erram à procura de uma nova paisagem. São, desde sempre, exteriores à comunidade. Os construtores são os elementos estabilizadores que prendem toda a geografia imaterial à vida quotidiana. Os formadores sentem essa geografia porque o seu órgão é o coração. Os poetas vêem, e anunciam a geografia imaterial por vir.
Os construtores, os formadores são peregrinos.
Os poetas também o são, de certo modo. Há uma grande afinidade que os liga aos vagabundos. Porque são os únicos que desejam o retorno do ser como Belo.

É vital conhecer a paisagem.
Por um lado, cada uma das suas raças – a floresta, o bosque, o mar, os animais, a falésia, o jardim, a encosta, o vale, o deserto –, induz uma modalidade particular de relacionamento. Por outro lado, é dela e nela que se formam e se modificam as forças que ora dividem, ora unificam os sexos propriamente humanos. A Beleza e a Harmonia não se produzem de forma platónica, nem nascem da exclusiva vontade dos homens.
Sempre que avança ao seu encontro, sob a forma de Beleza, o que têm de mais verdadeiro, deveriam acolhê-lo com gratidão porque precisam do sexo da paisagem, fonte única de toda a Beleza.

Parece-me claro que o centro da paisagem são as florestas e, na sua forma mais acessível, os bosques. Nas florestas, reúnem-se e formam-se a maior parte das forças que, nos humanos, se irão constituir em personalidades renovadas e enriquecidas. Não é nas florestas que se criam as ilusões e a aspiração ao novo? Não é na paisagem que o humano medita e contempla? Não é na sua força que busca a força de cismar?

O vulgo imagina que essas forças são as fadas e outras entidades. Os formadores e os construtores imaginam poder dispensá-las. Deixemo-los imaginar. Até podemos usar as expressões que uns e outros utilizam.

Mas não diremos, como o vulgo, que as fadas podem ser boas e más.
Estas eram, na realidade, chamadas bacantes na antiga Grécia, e viviam em permanência em companhia dos sátiros, num colectivo natural, inconscientes da fragilidade da Harmonia. Atacavam o elo mais fraco do humano – os vagabundos –, insuflavam-lhes dispersão e êxtase,
      o delírio e a embriaguez do novo.
Sempre sátiros e bacantes desejaram partilhar o seu colectivo      natural com o humano. Sempre desejaram que se unissem os sexos humanos e o sexo da paisagem.
         Sempre que isso aconteceu, os vagabundos tornaram-se poéticos e rebeldes. Sempre que isso aconteceu, os formadores foram implacáveis com os vagabundos.

         E os poetas? Associavam-se intimamente à floresta, às suas árvores e aos seus entes fabulosos, a que o vulgo chama elfos e gnomos, seres jubilosos e irónicos. Tentavam transformar a revolta e o desejo de uma comunidade humana mais natural, nascido no coração dos vagabundos, em forças de harmonia, de leveza e de amplitude. É isso a Poesia. Reconhecer a fonte da Beleza, a sua physis e o seu destino. Ofereciam-na aos outros humanos.
         Mas estes, não só ignoravam o seu combate na floresta, como eram implacáveis com os vagabundos.
         Assim se compreende por que seja possível a existência da comunidade e por que esta assenta numa harmonia, numa beleza e numa ponderação da forma, imperfeitas e incompletas. Os formadores e os construtores não querem uma comunidade humana em simbiose com o sexo da paisagem. Excluem a voz do vagabundo. Desprezam os poetas.
No entanto, são os poetas (e não as fadas boas ou más, ou a perícia dos construtores e formadores), intimamente relacionados com as árvores e demais habitantes das florestas, que transmutam a ilusão e o delírio dos vagabundos, seus companheiros espirituais de errância, em harmonia.

         A hera, que sempre foi considerada o emblema das bacantes, indica, quando enrolada num carvalho, num pinheiro ou num castanheiro, o lugar onde essa transmutação fisicamente se opera. Por esse motivo, não se devem cortar as heras que envolvem essas árvores.
         O mar produz amplitude, mas por acção das ninfas sobre os náufragos, que são outra forma de vagabundos. Ninguém quer, de facto, naufragar.
         E eu pergunto-vos: Haverá alguém que, por sua livre vontade, queira ser vagabundo? Por que se lhes exige o preço – e um preço tão elevado –, pela sua errância? Por que são tão implacáveis com o novo? Por que são tão opacos com o trabalho do poeta? Por que querem submeter a visão à razão?

         Imensa é a generosidade dos poetas. São eles os únicos humanos que vêem que a formação da comunidade dos homens passa por processos cíclicos que é necessário abrir e fechar cuidadosamente. Usam uma métrica e um tom elevado por respeito pela dor dos vagabundos. Combatem com o invisível por misericórdia para com o destino dos homens e da paisagem.

Maria Gabriela Llansol, Onde vais, Drama-Poesia?