quarta-feira, 30 de outubro de 2013

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Leitura recomendada


"Odeio o acto de amor que não faz soltar ambos os parceiros
(eis por que me apraz menos o amor com rapazes);
odeio aquela que se entrega por ser preciso entregar-se
e que, na sua secura, só pensa na sua lã;
prazer cedido por dever não é prazer que me dê gozo;
um dever, que nenhuma mulher o pratique comigo.
A mim, apraz-me ouvir gemidos que me façam sentir o gozo dela,
e que me suplique que me demore, que me aguente;
quero ver os olhos rendidos da mulher, já fora de si,
e que ali fique desfalecida e largo tempo não queira que lhe toque."

Epifanias de uma alma pequena


Acredito na existência da alma. Acredito porque já senti a minha a querer partir-me o peito algumas vezes. É uma alma curiosa e inquieta e não aceita confinar-se a nada, recusa convenções e devoções e nem sempre obedece aos meus desígnios.

As vantagens e as despesas de uma alma deste tipo são conhecidas. O bem e o mal coincidem no mesmo ponto, a imaginação empática. Gosta-se demasiado de visitar e imaginar toda e qualquer alteridade, pois o que interessa é abarcar a vida nas suas múltiplas manifestações e contradições.

Uma vez ofereceram-me um workshop de Reiki. Acontecia a um sábado e, apesar da generosidade da oferta, o corpo clamava por praia. Após uma longa hesitação, acabei por me levantar bem cedo e ir ao workshop, de algum modo convencida que se não abdicasse de um dia de Verão, a minha alma estaria condenada a um materialismo opressivo. Aguentei a manhã e a tarde no workshop, contrariando ora a minha vontade de fugir, ora o riso convulsivo.

No entanto, o reiki acabou por me oferecer duas epifanias. A primeira aconteceu durante o workshop. Todas as mulheres que frequentavam o mesmo, à excepção de mim, tinham alguma doença complicada. Uma deles ficou indignada, quando um dos mestres lhe deu a ler o significado espiritual da síndrome de Crohn: parece que só acontece aos lambe-cus. E foi então que a certo momento, eu vi, eu soube: as quatro mulheres que ali estavam, tinham trocado o sol e os pés descalços sobre a areia, porque estavam perdidas e precisavam desesperadamente de um sentido para a vida. Eu inclusive.

A segunda aconteceu no dia seguinte ao workshop. Depois de iniciada ao reiki, há que meditar uma hora durante 30 dias. Nunca consegui meditar mas como as mãos aqueciam realmente, decidi tentar. Pus o CD com os sininhos e comecei os exercícios sentada na cadeira. Quinze minutos depois estava deitada na cama a aldrabar todos os exercícios e fui forçada a ser sincera comigo. Admiti que não conseguia meditar, que o reiki fazia muito bem a muita gente mas a mim só me tirava os pés do chão para a cama e que durante o tempo que ali estivera, não conseguira esvaziar a mente pelo constante lamento de estar a desperdiçar tempo que podia gastar a ler. Senti-me muito mais leve depois disto e aproveitei a vela para alumiar a leitura dessa noite e meditar nos pensamentos e acções das personagens que então me ocupavam.

Este sábado fui para a Malveira da Serra. Perto do Cabo da Roca, acontecia uma “festa esotérica”, segundo uns amigos. Como não me apeteciam as calçadas lisboetas, fui. Numa “casa encantada” discutia-se a espiritualidade e o futuro da humanidade, noutras divisões faziam-se massagens e leituras de tarot, mas os caminhos húmidos da serra distraíam-me. Gosto dos caminhos misteriosos da serra, da humidade que os protege, do silêncio dos meus passos.

Houve depois uma aula conjunta de chi kuan, que comecei a fazer mas rapidamente me aborreci, pois que me apetecia fumar e aproveitar uma cadeira perfeita para olhar o mar. Gosto de estar deitada sem fazer nada, fumando o tempo. Gosto de deitar os meus olhos no mar.

Despertei desta contemplação, sentindo uma presença a meu lado. Uma galinha, de olho verde-inquieto aproximara-se, decidida a estabelecer conexão comigo. Olhou-me nos olhos, meneando a cabeça como um ponto de interrogação até se fartar e partir. Fiquei depois observando as peripécias das três galinhas que ali viviam, encantada com os seus movimentos oscilantes e as excitações que as moviam. Concluí que as galinhas, apesar de estúpidas, nunca se entendiam e que é impossível não nos divertirmos com os seus voos arcaicos.

A caminho de Lisboa, encontramos uma tasca na aldeia de Juso. Escolhi certeiramente o sítio pelo toldo e pelo nome. Lá dentro, tive a oportunidade de conversar com alguns sorrisos enrugados, descobrir que também existe bom medronho no centro e provar tordos pela primeira vez. Gosto de tascas perdidas no tempo e no espaço e a minha intuição não costuma falhar quando se trata de encontrar uma. Lá dentro, encontro sempre uma pureza que nunca consegui traduzir em palavras. Uma deficiência que felizmente consegui suplementar com a leitura das aventuras do Augie March: primeiro tem de se testar aquilo de humano com que se consegue conviver. E se o mais elevado estiver naquela taberna vazia e abafada, com as moscas, o rádio quente a zumbir entre jogadas e a cerveja de Sox Park, o que poderá fazer-se senão aceitar a mistura e dizer que a imperfeição é sempre a condição do que encontramos? Do mesmo modo, os meus olhos arranhados verão sempre a grande beleza arranhada. E deuses podem aparecer em qualquer lugar”.

Regressada a Lisboa, a noite alongou-se até desembocar na madrugada suja do Tejo. Gosto das manhãs fantasmáticas que descolam do rio com uma imponência demorada. Gosto dos fantasmas que se abeiram do rio, das mãos sujas que mendigam cigarros e dos olhares vítreos dos peixes que se extraviam da água para um balde triste. Gosto dos barcos que assombram o horizonte e dos cacilheiros que cortam a paz morta das águas. E do céu de Lisboa que nem William Turner conseguiria reproduzir.

Regressei a casa de eléctrico, já a manhã ia alta e embriagada. Com um casal de franceses, descobri que as pessoas que lêem muito ficam com papos nos olhos quando envelhecem. Como se as letras inchassem debaixo de olhos que não souberam olhar o mundo sem o ler. Ao despedir-me deles, riam muito, contentes por saber que Madame Bovary sobrevivia afinal alegre em Lisboa.


Deitei-me por fim com mais uma epifania: tenho uma alma pequena com uma vontade imensa de andar por aí, simultaneamente meditabunda e alegre. Misteriosos são os caminhos de uma alma que se sente atraída por tudo o que vive e se agita, quer se trate de galináceos, águas ou tascas perdidas no espaço e tempo. 

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Cosac & Naify


Estou apaixonada por uma editora.

Este ano pude passar algumas noites com 2 livros da colecção Prosa do Mundo da Cosac & Naify: Niels Lyhne e Thérèse Desqueyroux. Foram noites de euforia. Primeiro, o aspecto sensorial do livro: livros de capa dura, com sobrecapas lindas, papel macio, que apetece deitar no colo. Depois, cada edição tem apresenta textos introdutórios de outro autor (no caso de Niels Lyhne, o brilhante ensaio «As Moedas da Vida» de Claudio Magris; em Thérèse D., o belo prefácio de Carlos Drummond de Andrade, tradutor do romance).  Como apêndice, o livro de Mauriac acrescenta também a conferência «O Romancista e seus personagens», proferida pelo autor em 1932. E para terminar tão faustosa refeição, um bombom final: sugestões de leitura.

A Cosac & Naify é uma editora brasileira com pouca ou nenhuma representação em Portugal. A minha amiga carioca diz-me que são livros de luxo. E então pus-me a pensar no mercado editorial português e nas raras vezes em que um livro me delicia pela sua faceta de objecto e pela edição cuidada. Chego à conclusão que não temos nenhuma editora de luxo, apesar de algumas esporádicas edições. E parece-me óbvio que com as recentes inovações do mercado editoral e a profusão de ebooks, este sector terá de evoluir também por aí, à semelhança do vinil.

Embora reconheça as vantagens de uma biblioteca leve num Kindle, acredito que jamais deixaremos de ser uma cultura do livro: este será sempre um objecto erótico para os seus amantes dedicados.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Qual romance você está lendo?

Sempre pensei que fosse sábio desconfiar de quem não lê literatura. Ler ou não ler romances é para mim um critério. Quer saber se tal político merece seu voto? Verifique se ele lê literatura. Quer escolher um psicanalista ou um psicoterapeuta? Mesma sugestão.
E, cuidado, o hábito de ler, em geral, pode ser melhor do que o de não ler, mas não me basta: o critério que vale para mim é ler especificamente literatura --ficção literária.
Você dirá que estou apenas exigindo dos outros que eles sejam parecidos comigo. E eu teria que concordar, salvo que acabo de aprender que minha confiança nos leitores de ficção literária é justificada.
Algo que eu acreditava intuitivamente foi confirmado em pesquisa que acaba de ser publicada pela revista "Science" (migre.me/gkK9J), "Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind" (ler ficção literária melhora a teoria da mente), de David C. Kidd e Emanuele Castano.
Uma explicação. Na expressão "teoria da mente", "teoria" significa "visão" (esse é o sentido originário da palavra). Em psicologia, a "teoria da mente" é nossa capacidade de enxergar os outros e de lhes atribuir de maneira correta crenças, ideias, intenções, afetos e sentimentos.
A teoria da mente emocional é a capacidade de reconhecer o que os outros sentem e, portanto, de experimentar empatia e compaixão por eles; a teoria da mente cognitiva é a capacidade de reconhecer o que os outros pensam e sabem e, portanto, de dialogar e de negociar soluções racionais. Obviamente, enxergar o que os outros sentem e pensam é uma condição para ter uma vida social ativa e interessante.
Existem vários testes para medir nossa "teoria da mente" --os mais conhecidos são o RMET ou o DANVA, testes de interpretação da mente do outro pelo seu olhar ou pela sua expressão facial. Em geral, esses testes são usados no diagnóstico de transtornos que vão desde o isolamento autista até a inquietante indiferença ao destino dos outros da qual dão prova psicopatas e sociopatas.
Kidd e Castano aplicaram esses testes em diferentes grupos, criados a partir de uma amostra homogênea: 1) um grupo que acabava de ler trechos de ficção literária, 2) um grupo que acabava de ler trechos de não ficção, 3) um grupo que acabava de ler trechos de ficção popular, 4) um grupo que não lera nada.
Conclusão: os leitores de ficção literária enxergam melhor a complexidade do outro e, com isso, podem aumentar sua empatia e seu respeito pela diferença de seus semelhantes. Com um pouco de otimismo, seria possível apostar que ler literatura seja um jeito de se precaver contra sociopatia e psicopatia. Mais duas observações.
1) A pesquisa mede o efeito imediato da leitura de trechos literários. Não sabemos se existem efeitos cumulativos da leitura passada (hoje não tenho tempo, mas "já li muito na adolescência"): o que importa não é se você leu, mas se está lendo.
2) A pesquisa constata que a ficção popular não tem o mesmo efeito da literária. A diferença é explicada assim: a leitura de ficção literária nos mobiliza para entender a experiência das personagens.
"Como na vida real, os mundos da ficção literária são povoados por indivíduos complexos cujas vidas interiores devem ser investigadas, pois são raramente de fácil acesso."
"Contrariamente à ficção literária, a ficção popular (...) tende a retratar o mundo e as personagens como internamente consistentes e previsíveis. Ela pode confirmar as expectativas do leitor em vez de promover o trabalho de sua teoria da mente."
Em suma, o texto literário é aquele que pede esforços de interpretação por aquelas caraterísticas que foram notadas pelos melhores leitores do século 20: por ser ambíguo (William Empson), aberto (Umberto Eco) e repleto de significações secundárias (Roland Barthes).
Na hora de fechar esta coluna, na terça-feira, encontro a mesma pesquisa comentada na seleção do "New York Times" oferecida semanalmente pela Folha. A jornalista do "Times" pensou que a leitura literária, ajudando-nos a enxergar e entender os outros, facilitaria nossas entrevistas de emprego ou nossos encontros românticos.
Quanto a mim, imaginei que, na próxima vez em que eu for chamado a sabatinar um candidato, não esquecerei de perguntar: qual é o romance que você está lendo? E espero que o candidato mencione um livro que conheço, para verificar se está falando a verdade.
Contardo Calligaris
Contardo Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão impressa de "Ilustrada".

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

a lei do horror e da beleza


“Uma pessoa pode nunca associar duas ideias de modo que mostrem o seu horror, o horror de cada uma delas, e desse modo nunca o conhecer durante toda a vida. Mas também pode viver instalada nele se tiver a má sorte de associar continuamente as ideias certas. Por exemplo, aquela rapariga que vende flores diante da sua casa. Não há nada de terrível nela, por si só não pode infundir terror. Pelo contrário. É até muito atraente. E simpática e amável. Fez festas ao meu cão. Comprei-lhe estes cravos (...). Mas aquela rapariga pode infundir horror. A ideia daquela rapariga associada a outra ideia pode infundir horror. Não acredita? Ainda não sabemos qual é a ideia que falta, a ideia adequada a que isso aconteça. O seu par espantoso. Mas é certo que existe. Há-de haver. É questão de aparecer. Também pode ser que nunca apareça. Poderia ser, sabe-se lá, o meu cão. A rapariga e o meu cão. A rapariga com a sua longa cabeleira castanha e as suas botas altas e as suas compridas pernas compactas e o meu cão sem a pata esquerda (...). Que o cão ande comigo é normal. É necessário. É estranho, se quisermos. Quer dizer, os dois juntos. Mas não há horror nisso. Se o cão andasse com ela seria mais contencioso. Seria talvez horroroso. O cão não tem pata. Se andasse com ela, certamente não a teria perdido numa rixa estúpida depois de um jogo de futebol. Isso é um acaso. Ossos do ofício de um cão de um homem coxo. Mas com ela talvez a tivesse perdido por outra razão. O cão não tem pata. Com mais motivo. Com mais gravidade. Não por acaso. É difícil imaginar aquela rapariga metida numa luta. Talvez a tivesse perdido por causa dela. Para que este cão tivesse perdido a pata pertencendo àquela rapariga, teria talvez de ter sido ela a amputar-lha. Como poderia perder a pata um cão bem protegido, cuidado e querido por uma rapariga tão atraente e simpática que vende flores? Essa ideia é horrível. É horrível a imagem daquela rapariga a cortar a pata ao meu cão com as suas próprias mãos; vendo-o com os próprios olhos; assistindo a tudo.”

Um livro inócuo


Os Irmãos Karamázov


Os livros de Dostoiévski funcionam como um espelho onde leio as minhas perturbações interiores e saio mais esclarecida.
Como já disse várias vezes, depois de ter lido Crime e Castigo tornou-se muito complicado encontrar um livro bom capaz de me satisfazer.  Depois de errar por outros livros, decidi que talvez Os Irmãos Karamázov conseguissem destronar o sortilégio de Raskólnikov.
Reflectindo a mesma preocupação essencial do Crime e Castigo, este romance abdica da ideia de uma redenção final. O conflito trazido pelo nihilismo torna-se aqui mais cru e irreconciliável. Desta feita, nem a religião e o amor salvam as personagens das suas paixões furiosas.
Para mim, Os Irmãos Karamázov lê-se como um policial existencialista magistral. Os primeiros dois tomos colocam-nos em suspense, avisando-nos de um crime que será cometido. Ou foi já cometido? Não tendo conseguido destronar O Crime e Castigo, este livro ajudou de algum modo a clarificar o móbil do crime, isto é, o problema do nihilismo tal como o entendia o escritor russo. Em ambos os romances, as vítimas são usurários, pessoas que aumentam os seus capitais à custa da sua desonestidade para com terceiros.
A afecção principal que dominava Raskólnikov era o orgulho ferido. A fúria de Dimitri Karamázov e a indiferença cultivada de Ivan Karamázov são irmãs desse orgulho maculado por uma injustiça social mascarada sob a ideologia do progresso moderno. Os arrebatamentos maníacos destas personagens testemunham uma época de transição em que as premissas mundo antigo chocam com a modernidade que se estabelece. «Honra», «consciência», «dever» tornam-se meras palavras aristocratas que os modernos deixam de compreender, porque não podem conciliar-se com os objectivos mercantilistas.

Aqui todos acabam destroçados, acossados por febres nervosas e raiva. A vida moderna exige a falência de todos os valores para que nenhum totalitarismo se possa opor a um mercado livre. Acontece que os valores tradicionais, apesar de limitarem a potencialidade individual, asseguravam a comunidade. O sistema capitalista requer a premissa de que tudo é permitido, tendo como efeito colateral uma certa institucionalização do crime que torna todos criminosos, tanto os que alinham como os que desalinham. Num mundo que perdeu o valor da promessa, «a palavra de honra», ninguém se salva. Quem se continua a guiar por tais valores, é tomado por louco ou idiota, vociferando palavras que já ninguém entende.

Gertrud