Um pensamento que não mata nem morre. O medo, o terror, o pânico. Noite adentro, a mastigar, a ruminar, impedindo os olhos de descansarem. As pálpebras carregadas de ansiolíticos. E o pensamento a martelar, a mastigar incessantemente, roldanas de aço até ao delírio. E eu a querer apenas dormir, fechar os olhos, a tentar cavalgar a onda sem sucesso. A ser engolida pelas palavras que se soltaram dentro da minha cabeça, como notas numa composição insana. Acocorada, debruçada sobre o meu ventre, a desejar, a implorar uma pausa. Esmagada contra a almofada, os vincos da roupa impressos na minha carne.
Liberdade. Quantos comprimidos são precisos para matar o pensamento? O pensamento que me rói do avesso. Sim, exactamento quantos, para que esta porra acabe?
A geometria das paredes alonga-se, o tecto deixou de ser o companheiro vítreo da adolescência eufórica, nele não se projectam mais as esperanças de um futuro mais leve, mais brilhante. Desde que o medo se infiltrou, vísceras adentro sem piedade. Começou a roer em silêncio e apoderou-se de tudo. Medo de ter medo. Um intruso indesejado que se tornou imperador impiedoso.
Um pensamento que não mata nem morre. Vai moendo. Lentamente. Sorrateiramente. Minando o que pode. Um líquido corrosivo. Um sabor a ferrugem e crime na boca. O medo de que a boca se volte para dentro e comece a triturar tudo, os dentes, o estômago, a memória e a dignidade. Olhar para o real e não dar fé nele. Olhar para as paisagens urbanas e apenas o paladar de papel de jornal na minha garganta. Olhar os rostos dos outros e não decifrar neles a minha humanidade.
E o medo a galopar, veloz no meu colo, no meu peito, a trepar pelo pescoço, numa tensão de máquina no meu queixo. Olhar uma mãe e a sua filha e tremer. Leveza e cães. Haverá uma falha, uma brecha no real que me possa acolher? Afinal quantos comprimidos, ao certo, são necessários para matar o pensamento? Fórmula desejada...
O cansaço, a insónia, as olheiras, o suor abafado e condenado. Do outro lado, alguém a batalhar contra o sono, contra a morte certa e urgente. Contra o esquecimento. Os fantasmas brancos da madrugada e a certeza de existirmos sós naquela hora desassossegada. A luz amarela e violenta do candeeiro a insinuar que o mundo acabou e que se esqueceu de nós. De nos vomitar na nossa artificialidade. Cinco da manhã. Agitação. Morangos silvestres sem uma história prestes a ser apagada.
Seis. Sete. Até que tudo se imobiliza, a noite abraça o universo que afinal se resume a um pensamento obsessivo de um, que insite nos bastidores da consciência, sem comparecer ao seu encontro. Uma sereia, morangos silvestres de novo e uma melancia. A minha história a fugir para um disparate qualquer. Ou os comprimidos fazem efeito e adormeço, desmaio, desligo ou passo a ser apenas vestígios de ossos e sangue que um pensamento mastigou a seco. E se não houver espuma do mar? Se não vier o dia seguinte? Se não vierem dias melhores para que possam voltar os dias piores, para que tudo acabe bem para depois ficar tudo mal?
Como desligo isto? Quantos comprimidos afinal? Quantos? Para derrotar a raiz tuberculosa do medo.