terça-feira, 17 de janeiro de 2012
As cordas da alma
Os clichés são de mau-gosto na literatura. No entanto, descubro que a vida está, mais do que eu gostaria, cheia deles. Esta música, por exemplo, faz vibrar todas as cordas da minha alma. Figura de estilo gasta, bem sei, mas não encontro outra mais honesta.
quinta-feira, 5 de janeiro de 2012
A graça disto, deixa uma gaja maravilhada.
A chuva te ensina
a ser invariável sem se repetir.
Lêdo Ivo
Vinte e seis anos aqui ou agora, entre
outras contas que faço e me embalam,
morrendo de idade e um pouco de
tudo, no quarto em que durmo e onde
ouço de novo esse leão abissínio a coxear
na minha sombra. O pequeno sol da
lâmpada, as persianas balbuciando
umas vagas noções de claridade.
Tiro a camisa em voz alta, deixo
os óculos, largo um barulho qualquer
aliviando o silêncio, nestes eternos
trezentos e sessenta graus que reajusto
entre fósforo e fósforo. Chego uns
provérbios de cinza no caderninho,
e, de cabeça baixa, quieto, sofro com
todo o cuidado enquanto passam
pelas minhas mãos muitas dessas
criaturas antigas como os sonhos,
em busca da sua história. Fumo
de olhos fechados, somo suspiros
mentalmente ou fico colando restos
de melodias. A chuva cai e eu quase
só penso nisso. Ouço o mundo e,
quando ela pára, saio
atrás dele, dos pássaros que lhe dão
corda: reticências fabulosas, e juntam
a sua medida ao canto cordial das
distâncias. Formas indecisas que
me levam, estonteado, baralhando
os nomes do mundo
num mantra. Atravesso jardins de
manicómios, escuto a canção intacta
das suas fontes, olho a mutilada doçura
das estátuas, essa mão que deixa cair
a última flor, como um estilhaço, e uma
luz adocicada que parte crianças em
pássaros iguais. Também não sei ao certo
do que falo, mas sigo-me de perto
entre ruas e valados, parques de
estacionamento onde me apanho girando
sem órbita certa, misturado aos outros,
rebelado, inconsequente, confuso e lírico.
Vadios, ensonados, trazem as suas doces
personagens pela mão e distribuem-se,
virando o lixo, farejando a verdadeira alma
dos nossos tempos.
Consumidores de épocas, bocejam uivos
magníficos, falam sozinhos enquanto
bebem restos de chuva num velho serviço
de chá. As pétalas de rosa afogadas,
a música quebrada com que o vento
junta tudo. Que estranha lição
de infância. Gestos antigos, rituais:
composições de pedras e paus, cruzes
de sombra – esta intimidade mágica
que, a pouco e pouco, nos devolve
ao mundo.
Assim e aqui, o pulso dos dias solta-se
e canta, compassando este ballet
miserável, a lenta coreografia que
alarga o espaço da fábula. Os séculos
são breves, a modernidade um delírio
inconsequente. A vida é sempre imediata.
Por uns momentos perdemo-nos
entre a assistência, deixando que passe
esse entusiasmo estrangeiro, a pressa
e o atrevimento que nos emprestam.
Eis a noite, ágil, impondo os seus
ritmos indecifráveis e esse bando
adolescente a correr na ânsia
de esgotar a cidade. Rostos disformes,
sombrios mas belos, corpos angulosos,
geniais. Anjos que vivem caídos
pelos fundos de cafés, bares – sim,
sim –, num fascínio incurável, presos
pelo tal fio. Há muito tempo
que é assim, isto, estas mãos entretidas
sobre pianos mudos e as expressões
de abismo, leitura suficiente
para quem aprende a prestar atenção.
Um gosto guardado para sempre na
boca, as antigas contra-senhas e o sabor
das carícias esboçadas. A sensação de ser
olhado, e olhar de volta uma mulher
doce como o fim do mundo.
Como te puseste velha, Roxanne.
Meio chanfrada, dos lábios fogem-lhe
sílabas de rezas inarticuladas. E os deuses
somos nós, se nos restar ainda algum
nos bolsos.
Aí, entregue, alto, já muito bêbedo,
a um coração que segue doido e bate
ao calhas. Faço-me todas as velhas
promessas: um copo mais e saio. Mais um
e volto para casa. Um copo que ainda
não vi tudo, e a vida, eu sei, não presta.
Se é do hábito eu já não sei, só que
há qualquer coisa que agarra, e com
que força! A graça disto, deixa um gajo
maravilhado.
outras contas que faço e me embalam,
morrendo de idade e um pouco de
tudo, no quarto em que durmo e onde
ouço de novo esse leão abissínio a coxear
na minha sombra. O pequeno sol da
lâmpada, as persianas balbuciando
umas vagas noções de claridade.
Tiro a camisa em voz alta, deixo
os óculos, largo um barulho qualquer
aliviando o silêncio, nestes eternos
trezentos e sessenta graus que reajusto
entre fósforo e fósforo. Chego uns
provérbios de cinza no caderninho,
e, de cabeça baixa, quieto, sofro com
todo o cuidado enquanto passam
pelas minhas mãos muitas dessas
criaturas antigas como os sonhos,
em busca da sua história. Fumo
de olhos fechados, somo suspiros
mentalmente ou fico colando restos
de melodias. A chuva cai e eu quase
só penso nisso. Ouço o mundo e,
quando ela pára, saio
atrás dele, dos pássaros que lhe dão
corda: reticências fabulosas, e juntam
a sua medida ao canto cordial das
distâncias. Formas indecisas que
me levam, estonteado, baralhando
os nomes do mundo
num mantra. Atravesso jardins de
manicómios, escuto a canção intacta
das suas fontes, olho a mutilada doçura
das estátuas, essa mão que deixa cair
a última flor, como um estilhaço, e uma
luz adocicada que parte crianças em
pássaros iguais. Também não sei ao certo
do que falo, mas sigo-me de perto
entre ruas e valados, parques de
estacionamento onde me apanho girando
sem órbita certa, misturado aos outros,
rebelado, inconsequente, confuso e lírico.
Vadios, ensonados, trazem as suas doces
personagens pela mão e distribuem-se,
virando o lixo, farejando a verdadeira alma
dos nossos tempos.
Consumidores de épocas, bocejam uivos
magníficos, falam sozinhos enquanto
bebem restos de chuva num velho serviço
de chá. As pétalas de rosa afogadas,
a música quebrada com que o vento
junta tudo. Que estranha lição
de infância. Gestos antigos, rituais:
composições de pedras e paus, cruzes
de sombra – esta intimidade mágica
que, a pouco e pouco, nos devolve
ao mundo.
Assim e aqui, o pulso dos dias solta-se
e canta, compassando este ballet
miserável, a lenta coreografia que
alarga o espaço da fábula. Os séculos
são breves, a modernidade um delírio
inconsequente. A vida é sempre imediata.
Por uns momentos perdemo-nos
entre a assistência, deixando que passe
esse entusiasmo estrangeiro, a pressa
e o atrevimento que nos emprestam.
Eis a noite, ágil, impondo os seus
ritmos indecifráveis e esse bando
adolescente a correr na ânsia
de esgotar a cidade. Rostos disformes,
sombrios mas belos, corpos angulosos,
geniais. Anjos que vivem caídos
pelos fundos de cafés, bares – sim,
sim –, num fascínio incurável, presos
pelo tal fio. Há muito tempo
que é assim, isto, estas mãos entretidas
sobre pianos mudos e as expressões
de abismo, leitura suficiente
para quem aprende a prestar atenção.
Um gosto guardado para sempre na
boca, as antigas contra-senhas e o sabor
das carícias esboçadas. A sensação de ser
olhado, e olhar de volta uma mulher
doce como o fim do mundo.
Como te puseste velha, Roxanne.
Meio chanfrada, dos lábios fogem-lhe
sílabas de rezas inarticuladas. E os deuses
somos nós, se nos restar ainda algum
nos bolsos.
Aí, entregue, alto, já muito bêbedo,
a um coração que segue doido e bate
ao calhas. Faço-me todas as velhas
promessas: um copo mais e saio. Mais um
e volto para casa. Um copo que ainda
não vi tudo, e a vida, eu sei, não presta.
Se é do hábito eu já não sei, só que
há qualquer coisa que agarra, e com
que força! A graça disto, deixa um gajo
maravilhado.
Diogo Vaz Pinto
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