sexta-feira, 31 de agosto de 2012
segunda-feira, 27 de agosto de 2012
"O pensar, assim de noite, não é muito bom para a saúde. A misteriosa solenidade que adquirem os pensamentos produz quase sempre - sobretudo em determinados tipos, que têm dentro de si uma certeza com a qual não podem descansar, a certeza de nada poder saber e, não sabendo, de em nada poderem acreditar - uma séria constipação. Constipação da alma, escusado será dizê-lo."
Luigi Pirandello
sábado, 25 de agosto de 2012
Escrever é maçada
“Os dias estéreis da
determinação. Era essa a palavra certa, determinação: Arturo Bandini sentado em
frente à máquina de escrever dois dias seguidos, ininterruptamente, determinado
a vingar. Mas não resultou; sofreu o mais longo cerco da mais dura e implacável
determinação de toda a sua vida, e não escreveu uma única linha, mas apenas uma
palavra, repetida pela página inteira, de cima a baixo, uma palavra só:
palmeira, palmeira, palmeira, uma batalha mortal entre a palmeira e eu, e a
plameira ganhou: via-a lá fora, a balançar sob o ar azul, a ranger docemente
sob o ar azul. Ao fim de dois dias de batalha, a palmeira levou a melhor e eu
esgueirei-me pela janela e sentei-me debaixo dela. Passou algum tempo, um
momento ou dois, e adormeci, com pequenas formigas castanhas a passaream-se
alegremente por entre os pêlos das minhas pernas.”
John Fante, Pergunta ao Pó
F O M E
Fome de
Knut Hamsun narra um período de fome que um homem passa em Kristiania (actual
Oslo). Um homem sem emprego e relações, de estômago vazio e cabeça cheia de
pensamentos alucinatórios, tenta desesperadamente escrever. É preciso que
escreva para que possa comer algo, mas sem comer, escrever é algo quase
impossível, uma experiência-limite.
A certo ponto, percebemos que
este homem passa fome não porque não tenha opção, mas por escolha, ou melhor,
por uma estranha compulsão interior que o obriga a respeitar os «sentimentos
nobres», a vigiar constantemente o seu pensamento e a a imagem que oferece de
si. A certo ponto, apaixona-se mas é incapaz de abandonar o «orgulho» e a
«decência».
“Aquilo
irritou-me, quase me chocou que ela me considerasse assim tão decente; enchi o
peito de ar, deixei o coração inchar e peguei-lhe na mão. Mas ela retirou-a
docemente e sentou-se um pouco mais afastada de mim. Com isso, a minha coragem
desapareceu de novo, senti-me envergonhado e olhei na direcção da janela (…).
Senti-me totalmente paralisado.
-
Já vê! – disse ela, - já vê que tenho razão: a você é possível assustá-lo com
um mero franzir de testa; é possível embaraçá-lo com uma simples e
insignificante mudança de lugar… - Ela riu, trocista, com os olhos
completamente fechados, como se também não suportasse ser observada.”
Paul Auster tem razão quando
afirma que o herói de Fome sofre de
uma doença de linguagem. O próprio o explicita quando se explica à rapariga: “na verdade, podia ter-se uma natureza
sensível sem que, por isso, se fosse louco; havia os que viviam quase de nada e
que morriam de uma simples palavra. E deixei-a perceber que eu tinha esse tipo
de natureza.” Está doente de palavras como «honra», «honestidade»,
«altruísmo», «abnegação», etc.. É por esta razão que amachuca uma nota de
dinheiro e a atira à cara de uma hospedeira. Uma nota que o poderia alimentar
durante dias.
“Ah,
ah! Pode chamar-se a isto «actuar, salvaguardando a honra»! Sem dizer nada, sem
dirigir a palavra à gentalha, amachucar simplesmente uma nota de dinheiro das
grandes, com toda a calma, e atirá-la às ventas do seu perseguidor. Podia
dizer-se que isto é «comportar-se com dignidade» Assim se levam as bestas!...
Quando
cheguei à esquina da Tomegatten com a Jernbanetorvet, os meus olhos começaram a
ver a rua a cintilar, a cabeça vazia começou a zunir e resvalei contra a parede
de um prédio. Não consegui avançar mais, pura e simplesmente, nem sequer
consegui manter-me direito. Fiquei em pé, tal como tinha resvalado contra a
parede, e senti que estava a perder os sentidos. A minha louca ira piorou ainda
mais com este ataque de esgotamento, levantei o pé e bati no passeio. Também
fiz outras tentativas para recuperar um pouco as forças, cerrei os dentes,
franzi a testa, fiz girar os olhos desesperadamente e comecei a sentir o
efeito. O meu pensamento tornou-se mais claro e compreendi que estava prestes a
morrer. Pus as mãos à frente e apoiei-me contra a parede, e a rua continuava a
dançar à minha volta. Comecei a soluçar de raiva e lutei contra a minha
desgraça com o mais íntimo da minha alma, mantive corajosamente esta posição,
para não cair de todo; recusava deixar-me sucumbir, queria morrer de pé.”
A fome auto-imposta será a
sua maneira de verificar a validade dos sentimentos «bons». Faz lembrar
Raskolnikov e Stirner. À maneira dos ascetas e mártires, ele escolhe a via da
dor; o prazer e o deboche seriam um teste menos honroso. Tanto pior para ele.
Abeira-se do colapso muitas vezes. Nenhum anjo lhe aparece para o salvar.
Resta-lhe reconhecer que,
morto o referente transcendente, esses «sentimentos» são vazios, palavras ocas
apenas, que traduzem absolutamente nada. Prazer e dor são completamente aleatórios.
Na ponta do garfo dessa refeição nua, o Nada e nada mais. Não se pode mais
louvar uma razão omnipresente e autofágica que martiriza a carne e faz do
pensamento veneno. Estamos sozinhos aqui e agora, sem caminhos certos, e vamos
ter de nos aguentar.
“Passou
uma carroça rolando lentamente, e vi que levava batatas, mas na minha raiva e
obstinação lembrei-me de dizer que não eram batatas, mas sim cabeças de couve,
e jurei furiosamente a pés juntos que eram couves. Ouvi nitidamente o que
dizia, mas persisti na mentira e continuei a jurar repetidamente, só para ter a
desesperada satisfação de cometer perjúrio. Deixei-me embriagar por este pecado
requintado, estiquei os dedos no ar e jurei, com lábios balbuciantes, em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em como eram cabeças de couve.”
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