Com a idade, aprendi a gerir as minhas admirações literárias com parcimónia. Em 2009, viajei para Nova Iorque para estudar com uma pessoa cuja escrita e teoria me encantavam, relacionada com as minhas inquietações e convicções mais íntimas. Parti alegre, entusiasta, sibilando baixinho «é desta que encontro a minha comunidade, a comunidade dos que não têm comunidade». Regressei desiludida, atónita e mais do que nunca recordada das lições da minha adolescência nietzschana: se não queres ficar com as mãos ensanguentadas de barro, cuida de tocar o mínimo possível em ídolos.
Em Berlim, em Lisboa, o mesmo
desencantamento. Por detrás das poesias mais etílicas e anárquicas, descobri
poetas ora tímidos, ora pretensiosos, que em pouco honravam as palavras escritas.
“Escrevem porque não viveram”, disse-me uma vez alguém a quem eu manifestei o
meu desencanto relativamente aos poetas vivos e andantes. Talvez eu seja uma
romântica ingénua, prezando muito palavras de honra e acreditando que tudo o
que escrevemos deve ser lavrado com saliva, muco e sangue, se preciso for.
E tenho a certeza que a minha
mania da honestidade não me acrescenta nem saúde nem charme. Ainda assim,
passei a fugir dos poetas como um diabo foge da cruz. Um dia, alguém descobriu
a minha enorme loucura pelo Herberto Hélder e prometeu apresentar-me o senhor.
Não sei se a pessoa era bem-intencionada, nem se tal encontro seria viável, mas
recuei de imediato, arreganhando o cenho, ciosa do meu encantamento precioso.
Apesar de tudo isto, descubro de
vez em quando (e que alegria quando isso acontece!), alguém que muito me agrada
admirar de longe. A última figura nesta lista reduzida chama-se Aníbal
Fernandes. Já tinha reparado no nome, omnipresente na maioria dos livros
publicados pela deliciosa Sistema Solar, mas as minhas últimas três leituras,
escolhidas por apelos diferentes, partilhavam todas traduções e textos
introdutórios do senhor, coincidência que veio sedimentar a fascinação
nascente.
Curiosamente também, dois desses
escritos pertencem a marginais – Nossa Senhora
das Flores, de Jean Genet, e A
Felicidade dos Tristes, de Luc Dietrich. Sempre tive um fraquinho por
marginais escreventes e estes dois têm frases verdadeiramente deliciosas.
E em honra de crimes assim é que vou escrever o meu livro.
(…)
Mortos agora, na altura vieram ter comigo estes assassinos, e sempre
que um astro de luto como eles me cai na cela bate com força o meu coração, o
meu coração fica rendido, se é ficar rendido o rufo de tambor que anuncia a
capitulação da cidade.
Nossa Senhora das Flores, Jean Genet
Em ambas as leituras, o furor
começou sobretudo pelos textos (também) marginais ao texto traduzido,
nomeadamente as badanas e as apresentações introdutórias, da autoria de Aníbal
Fernandes. No caso do Genet, traduzido numa edição esgotadíssima da Difel,
impressionaram sobretudo as poéticas badanas e ai! que saudades dos tempos em
que a cultura do livro não tinha ainda sido conquistada pela indústria do
entretenimento e pelas suas manobras marketeiras.
Senão vejamos: “Que palavra
assustadora – génio – pode acudir-nos para se não explicar de todo que
aprendizagem foi capaz de chegar a esta escrita sumptuosa cheia de vertigem e
fascinação. Em 1944, Jean Genet riscava na prosa francesa um sulco – a mostrar
sangue de subversão autêntica – entregava ao público Nossa Senhora das Flores.
E afinal… o que se jogava naquela faca de vidro e de todos os cristais só era
um banal filho de pai incógnito, só era a memória de uma infância magoada por
Assistências Públicas e casas de correcção, a ponta de uma trajectória
fortalecida em delinquências vagabundas por inconfessáveis marselhas e
barcelonas”. E assim por aí adiante.
Já A Felicidade dos Tristes é precedida por um umbral encantatório,
cujas palavras eloquentes revelam um conhecimento em profundidade desse mistério
que foi Luc Dietrich. Quanto à autobiografia em si, não sendo aquilo que eu
costumo chamar “um livro do caralho” (ou seja, daqueles que entram naquela
lista reservada apenas aos abalos sísmicos), foi do melhor que li este ano. O tom
deste improvável assassino é verdadeiramente singular, porque simultaneamente
ingénuo e sofrido, e algumas passagens atingem picos de beleza muito próximos
do sublime. Um exemplo ao acaso:
Mas nem estes que trabalham nas minas são homens verdadeiramente
tristes. Tristes são os que não trabalham e pensam.
É bonito sermos um homem triste, porque é raro encontrar-se um que o
seja.
Os homens tristes fizeram as igrejas, as pontes. As pessoas alegres
fizeram cinemas, estações de caminhos-de-ferro, lojas. Vemo-las passar aos
bandos, dentro de automóveis que riem, e todas se riem. E eu parava na estrada
a olhar para elas de frente, e para sentirem vergonha fazia o mais triste dos
meus ares.
Porque as melhores pessoas são tristes. A minha mãe é pálida, e mesmo
quando se ri treme-lhe uma tristeza no riso como gotas de água num ramo ao sol.
Nunca vemos Jesus dar cotoveladas aos seus discípulos e torcerem-se a rir.
Judas, esse, queria armar-se em esperto e afastava-se deles para se rir
sozinho. Nunca se viu ninguém pensar numa coisa difícil, nos rebentos de uma
árvore, no sol, como é que ele sobe e desce na água do céu, e desatar a rir-se.
Aliás, só há felicidade nos tristes.
Não podia estar mais de acordo. Há
muito que venho meditando nesta estranha álgebra em que os mais alegres são
simultaneamente os mais tristes. De resto, o livro está cheio de perturbadores
flores e frases incandescentes. Em particular, esta: O amor é isto: uma grande coragem inútil. Ainda que enlouquecesse,
jamais a esqueceria, de tão bela e fatal que é.