Tenho tido inúmeras oportunidades para constatar que a minha
memória é dotada de uma selectividade muito peculiar. Interessa-se sobretudo
por guardar sensações e impressões, elidindo muitas factualidades. Quantas
vezes quero contar uma história minha e só consigo traduzir apontamentos
sensitivos. Este fenómeno manifesta-se sobretudo com os amantes e as leituras.
Não sei dizer se a compulsão voraz de certas leituras influencia, mas a verdade
é que às vezes sou incapaz de recordar o enredo de uma história que li há
muitos anos, embora possa enumerar com toda a nitidez as sensações que tal
livro me provocou no corpo.
Yukio Mishima é um dos autores que me surge envolto numa
nebulosa de sensações. Li-o nos tempos da licenciatura, há uns 11 ou 10 anos, e
recordo que a sua escrita me afectou de um modo algo delirante, como se as suas
palavras me colocassem no umbral do Indizível. Volvidos vários anos, não
consigo encontrar essas histórias dentro de mim. Já a sensação que o meu corpo
experimentou ao lê-las surge-me de pedra e cal, qual estátua. A única maneira
de a comunicar é dizer que se apresentava como um mistério solene de mãos em
posição de oração, depois de um grande combate silencioso.
Com a colectânea de contos A MORTE EM PLENO VERÃO, recuperei
parte desse tumulto interior. Falar de cada conto é tarefa quase inútil, os
temas e os acontecimentos narrados servem apenas para aflorar esse grande
mistério indizível que compõe as emoções humanas. Posso dizer que o conto A
MORTE EM PLENO VERÃO se inspira em De Quincey (a epígrafe do conto pertence a
Baudelaire mas a colusão poética do verão com a morte remonta de facto às
confissões de De Quincey, que Baudelaire tão atentamente leu e reescreveu) para
nos contar uma tragédia balnear e dissecar com toda a mestria as várias fases
do luto.
- A culpa foi toda minha – disse ela. Aquelas eram as palavras que
Masaru mais desejava ouvir.
(…)
Embora não o soubesse, estava desesperada com a pobreza das emoções
humanas. Haverá algum bom senso em que choremos a morte de dez pessoas como
choramos a morte de uma só?
Posso dizer que dizer que os remates de O SACERDOTE DO TEMPLO DE SHIGA E O SEU AMOR e AS SETE PONTES são deliciosamente enigmáticos. E que TRÊS MILHÕES DE IENES insinua em nós uma
pergunta quantitativa de difícil resposta: quanta sordidez é necessária para
assegurar uma estabilidade inocente? Ou que o conto GARRAFA-TERMOS me recordou
de algum modo a atmosfera de certos filmes do Wong-Kar Wai e também Marguerite Duras.
Apurando o ouvido para a conversa, Asaka tirou o casaco e colocou-o no
regaço. Só o pescoço, com que ela agora não tinha de se preocupar como quando
era gueixa, mostrava a negligência da mulher profissional que voltara a ser
amadora. Trazia o cabelo puxado para cima e Kawase ficou admirado com a
escuridão da sua pele.
- Não são muito simpáticas mas trabalham muito – disse Asaka em voz
alta, olhando para as criadas. Kawase gostou de ver nos olhos vivos todo o
entusiasmo que ela tinha pelo seu novo trabalho. Ela tinha sido sempre bela,
pensou ele, mesmo quando a olhava como se estivesse a admirar um fogo distante.
(…)
O café tinha o cheiro peculiar americano, meio higiénico, a remédios,
meio doce e pegajoso a corpos. Os clientes eram mulheres, na sua maioria de
meia-idade ou mais velhas, com olhos orgulhosos e lábios pintados, atacando
grandes bolos e sanduíches. Apesar do barulho e da azáfama da loja, havia
qualquer coisa de solidão em cada mulher e nos seus apetites. Triste, só, como
a actuação de tantas máquinas consumidoras.
Posso, sem dúvida, dizer que a perfeição formal de
PATRIOTISMO é de uma beleza imbatível. Mas o mais essencial será que cada
leitor se ofereça a esta leitura como um piano virgem e possa escutar em si a
ressonância inesperada de cada harmonia sombria.