sábado, 18 de julho de 2015
Das releituras sempre surpreendentes
“Há
qualquer coisa de ausente e de intacto no barão Felix – um homem maldito da
cintura para cima, que me lembra Mademoiselle Basquette, que era maldita da
cintura para baixo, uma rapariga sem pernas, talhada como uma anomalia
medieval. Tinha o hábito de se locomover através dos Pirinéus numa prancha de
madeira com rodas. O que dela existia era belo, de uma beleza tradicional e
vulgar, porque tinha o rosto dos que atingiram uma estupefacção racial, não
pessoal. Quis dar-lhe um presente por causa do que lhe faltava, e ela disse-me:
«Pérolas… ficam bem com qualquer coisa.» Imaginem… e a sua outra metade ainda
estava no saco de habilidades de Deus! Não se pode dizer que aquilo que lhe
faltava não lhe tivesse ensinado o valor do que tinha. Como quer que fosse –
continuou o doutor enrolando as luvas –, um dia um marinheiro viu-a e apaixonou-se
por ela. Ela subia e o Sol iluminava-lhe as costas; formava uma sela no seu
pescoço curvado e tremulava ao longo do cabelo ondulado, sumptuosa e saqueada
como a figura de proa de uma embarcação normanda que houvesse sido abandonada
pelo corpo do navio. Por isso ele apoderou-se dela, prancha de madeira e tudo,
e levou-a consigo e obteve o que pretendia. Quando ficou seriamente cansado
dela, depositou-a na prancha, em jeito de galanteria, a algumas cinco milhas da
cidade, de modo que ela teve de regressar fazendo rolar a prancha, chorando de
um modo que causava medo, pois não estamos habituados a ver as lágrimas rolarem
até aos pés! Ah! Sim, na verdade uma mulher pode ter uma tábua de pinho que lhe
sobe até ao queixo e mesmo assim encontrar uma razão para chorar. É o que lhe
digo, minha senhora, se alguém fizesse nascer um coração num prato, ele diria
«Amor» e palpitaria como uma perna de rã cortada.”
Djuna
Barnes, O Bosque da Noite
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