sábado, 18 de julho de 2015

La double vie de Veronique (1991)

Das releituras sempre surpreendentes


“Há qualquer coisa de ausente e de intacto no barão Felix – um homem maldito da cintura para cima, que me lembra Mademoiselle Basquette, que era maldita da cintura para baixo, uma rapariga sem pernas, talhada como uma anomalia medieval. Tinha o hábito de se locomover através dos Pirinéus numa prancha de madeira com rodas. O que dela existia era belo, de uma beleza tradicional e vulgar, porque tinha o rosto dos que atingiram uma estupefacção racial, não pessoal. Quis dar-lhe um presente por causa do que lhe faltava, e ela disse-me: «Pérolas… ficam bem com qualquer coisa.» Imaginem… e a sua outra metade ainda estava no saco de habilidades de Deus! Não se pode dizer que aquilo que lhe faltava não lhe tivesse ensinado o valor do que tinha. Como quer que fosse – continuou o doutor enrolando as luvas –, um dia um marinheiro viu-a e apaixonou-se por ela. Ela subia e o Sol iluminava-lhe as costas; formava uma sela no seu pescoço curvado e tremulava ao longo do cabelo ondulado, sumptuosa e saqueada como a figura de proa de uma embarcação normanda que houvesse sido abandonada pelo corpo do navio. Por isso ele apoderou-se dela, prancha de madeira e tudo, e levou-a consigo e obteve o que pretendia. Quando ficou seriamente cansado dela, depositou-a na prancha, em jeito de galanteria, a algumas cinco milhas da cidade, de modo que ela teve de regressar fazendo rolar a prancha, chorando de um modo que causava medo, pois não estamos habituados a ver as lágrimas rolarem até aos pés! Ah! Sim, na verdade uma mulher pode ter uma tábua de pinho que lhe sobe até ao queixo e mesmo assim encontrar uma razão para chorar. É o que lhe digo, minha senhora, se alguém fizesse nascer um coração num prato, ele diria «Amor» e palpitaria como uma perna de rã cortada.”


Djuna Barnes, O Bosque da Noite