quinta-feira, 27 de julho de 2017

Carta a Greco



Eis o livro que inspirou Hilda Hilst a mudar-se para a Casa do Sol e a iniciar o seu trânsito com o divino.

Começa de forma auspiciosa:

THREE KINDS OF SOULS, THREE PRAYERS:
1)  I AM A BOW IN YOUR HANDS, LORD. DRAW ME, LEST I ROT.
2) DO NOT OVERDRAW ME, LORD, I SHALL BREAK. 
3) OVERDRAW ME, LORD, AND WHO CARES IF I BREAK!

When a man thinks of the past, he becomes kinder.



Frequentei a Zona desde os primeiros dias… Lembro-me de termos parado numa aldeia e o que mais me impressionou foi o silêncio. Nenhum passado, nada… Percorremos a rua… Silêncio. Bem, as casas ficaram vazias, não havia lá gente, foram-se todos embora, mas o silêncio era total, sem um único pássaro. Pela primeira vez vi uma terra sem pássaros… Sem mosquitos… Nada voava…

Desde que apanhei um documentário na RTP2 sobre a vida animal em Chernobyl, que o lugar me fascina. VOZES DE CHERNOBYL, de Svetlana Alexievich veio exponenciar ainda mais esse fascínio. Tento decompô-lo em partes: por um lado, uma catástrofe inédita e uma cidade abandonanda, evacuada, que a natureza vai reconquistando, numa fosforescência incrível que não deixa adivinhar a radioactividade. Em Chernobyl tudo parece ter permanecido como estava naquele dia fatídico de 26 de Abril de 1986. Aos habitantes, foi dito que regressariam após três dias. Depois, há a semelhança profética entre a Zona e o Stalker de Tarkovsky, realizado sete anos antes! E por último, as histórias daquele povo, o povo soviético, o mais literários dos povos, como já vinha intuído e estas histórias reais confirmaram, histórias cheias de dever e amor, como nos livros de Dostoievski e Tchékhov. Que outro povo se poderia por a enterrar a própria terra?! Foi uma leitura duríssima mas fiquei absolutamente rendida ao talento de Alexievich: o melhor prémio Nobel que li nos últimos anos e, sem dúvida, um dos melhores livros que li este ano.

Completei a leitura com um documentário que saquei quase aleatoriamente – As babuchkas de Chernobyl – sobre umas quantas velhotas que regressaram à Zona para terminar os seus dias, todas desempenadas, a beber vodka e a rir sem dentes.

O Livro dos Encantos


Desengane-se quem achar que os muitos livros que leio me tornam mais inteligente ou mais culta. Nada disso, passados algum tempo não consigo discorrer sobre os temas ou enredos lidos. Tal como nas histórias da minha vida, restam-me apenas sensações. Se no passado, esta erosão me afligia um pouco, hoje faço fé de que algures, na minha pele, se alojam todas as histórias e factos vividos e lidos.

Aquilo que busco nos livros é, num perpétuo movimento retroactivo, algo que alimente a minha sede de viver e saber. As minhas leituras empurram-me para a vida; a vida escorraça as minhas aspirações, regresso aos livros e estes devolvem-me novamente à vida, como um cavalo belo e novo, pronto para qualquer luta ou descanso.

Busco encantos, como uma amazona teimosa. E onde estes se anicham, nunca sei, é uma caça interminável. É preciso ler muitas páginas, às vezes livros inteiros, para encontrar numa frase um farrapo de alma. Esse farrapo não é apanágio apenas dos livros, também pode acontecer através de outras artes, ou na vida, por exemplo, através de uma frase anónima e sorrateira.

Acontece por exemplo quando estou ensonada no sofá, numa manhã moribunda de sábado, a ver um programa sobre a vida selvagem no deserto Sahara e, de súbito, descubro a rosa de Jericó. Esta rosa cresce e reproduz-se até que o ambiente se lhe torna hostil. Então, as suas flores e folhas secam, as raízes desprendem-se da terra, os galhos secos enrodilham-se e a rosa transforma-se numa «bola», permitindo que os vento a levem. Assim pode viajar durante anos, cem anos se preciso for, quilómetros e quilómetros, vivendo ressequida e sem uma única gota de água. Até encontrar água. E voltar a verdejar e florescer. Foda-se, que poema brutal!

Por tudo isto e sobretudo por que a minha memória é curta, criei no início deste ano um pillow book, onde anoto os arrebatamentos que me encontram, sempre que me lembro de fazer. Chama-se Livro dos Encantos e tem a ridícula pretensão de anotar uma ínfima parte da beleza do mundo. Até tem duas epígrafes: uma de Rilke e outra dos diários de Etty Hillesum, também leitora de Rilke. Etty morreu em Auschwitz. Pouco tempo antes, escreveu:

And still life makes sense to me, my God, I cannot help it.
(...)
I have died a thousand deaths in a thousand camps. I know it all and I do no longer get upset over new information. Somehow I already know it all. And still I find this life beautiful and full of meaning, every minute of it.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Ninfa Moderna - Ensaio sobre o Panejamento Caído



“Não houve fadas boas – senhoras sábias e benevolentes, com muito poder na sua varinha de condão – a inclinarem-se sobre o berço da nossa modernidade intelectual, na viragem do século XIX para o XX. Os grandes sismos da história estavam próximos. Mas houve ninfas: belas aparições drapejantes, vindas não se sabe de onde, andando ao vento, sempre comoventes, nem sempre muito sábias, quase sempre eróticas, por vezes inquietantes.

Ninfas: divindades menores sem poder institucional, mas irradiantes de um verdadeiro poder de fascinação, que agita a alma e, com ela, todo o possível saber sobre a alma. Perigosas, como o são também a memória – quando reconhecida até nos seus continentes negros –, o desejo e o próprio tempo. Entre muitas outras aparições, elas foram Arria Marcella segundo Théophile Gautier, Aurélia segundo Nerval, Herodíade segundo Mallarmé, a Eva Futura segundo Villiers de l’Isle-Adam, Lulu segundo Wedekind e de seguida por Alban Berg, A Mulher sem Sombra segundo Hoffmannsthal e depois por Richard Strauss e, um pouco mais tarde, Nadja segundo André Breton…

É sabido: para que nascesse algo como uma moderna «ciência da alma», terá sido preciso que Freud visse, em 1885, surgir histéricos em crise no anfiteatro de Charcot, na Salpêtrière. Corpos perturbados, virados do avesso, gestos agitando os panejamentos dos vestidos e das camisolas, olhar perturbado do jovem médico… De todas estas perturbações – e da descoberta de que estas infelizes ninfas modernas, Anna, Emma ou Dora, na realidade, «sofriam de reminiscências» - terá nascido, contra toda a psicologia de escola, a psicanálise (…).

Ora, para que também nascesse algo como uma moderna «ciência das imagens» terá sido necessário que um poder de adaptação, em todos os pontos semelhante, viesse perturbar esse outro saber de escola chamado história da arte. Em 1893, Aby Warburg viu surgir a Ninfa – como acabaria por lhe chamar – no palco das obras-primas da Renascença florentina (…)

A questão não está, pois, em saber onde – ou mesmo quando – chegará a Ninfa ao destino, mas até onde ela é capaz de se anichar, de se esconder, de se transformar. Já às Ninfas da tradição acontecem muitas coisas e a iconografia clássica mostra-no-lo em todas as situações possíveis: sentadas ou de pé, em pose ou a correr, elanguescidas à beira de uma fonte ou adormecidas numa gruta, numa bacia ou numa concha, fiando a lã ou cantando melodias inaudíveis, dançantes ou perseguidas, agredidas ou fazendo amor, violadas ou raptoras de rapazes jovens, aguadeiras ou parteiras de deusas, kourotrophos [amas] ou amamentando Dioniso, protectoras das fontes ou fatais aos humanos…


Neste amplo e casuístico mostruário, desenha-se um muito longo e lentíssimo movimento – como um filme, rodado durante dezenas de séculos, que tivesse que ser violentamente acelerado para lhe reconhecermos a lógica – que não deixa de ser perturbador: é a irremediável queda da Ninfa, o seu movimento para o chão, o seu esmagamento ao ralenti. A questão torna-se, então, saber até onde a Ninfa é capaz de cair. Já as Ninfas clássicas se deixavam ir para o chão, se inclinavam, de bom grado se deitavam."




quarta-feira, 19 de julho de 2017

Folclore russo


A obsessão russa não me abandona. Ultimamente, demoro-me pelo folclore daquele que considero o povo mais literário do mundo. Depois de ler alguns contos, recomendaram-me MYTHES RUSSES, de Elizabeth Warner. Trata-se de um livro pequenino, muito acessível, embora o título seja algo enganoso – Folclore Russo seria mais adequado – e a abordagem seja bastante superficial relativamente alguns tópicos. Serve, no entanto, o propósito introdutório que buscava para entender o modo como o cristianismo, em vez de erradicar, assimilou  os elementos pagãos da Rússia arcaica. Assim, ao invés de se extinguir, a potente concepção animista da natureza, a crença na magia e o culto dos mortos sobreviveu através da ortodoxia popular.

Algumas passagens são deliciosas, como por exemplo esta:

“De tous les espirits attachés à des lieux particuliers, la rusalka est un des plus complexes. Dans une certaine mesure, la perception de cette figure s’est trouvée édulcorée par les récits romantiques du XIXe siècle parlant de séduisantes nymphes aquatiques et surtout par le littérature classique et ses sirènes. L’origine véritable de son nom reste imprécise, bien que les spécialistes contemporains penchent pour une dérivation de l’ancienne fête slave dédiée aux morts, appelée rusalii.

Dès le XIXe siècle, les chercheurs avaient établi que les rusalki étaient des créatures spectrales, des espirits des morts plutôt que des divinités de l’eau. Cependant, la nature de ces âmes mort fut à l’origine d’un débat qui dura longtemps. Beaucoup d’ethnographes, aux XIXe et au début du XXe siècle, soutenaient qu’à l’époque pré-chrétienne toute personne qui mourait pouvait devenir une rusalka. Finalement, D. K. Zelenin établit que, comme le montrent clairement les sources tirées de la culture populaire, il n’es possible de considérer les rusalki que comme des morts impurs et plus particulièrement comme les spectres de femmes noyées.

(…)

Les descriptions des rusalki, que l’on trouve  dans toutes les régions de Russie, les présentent comme d’attirantes jeunes femmes, beautés evanescentes au visage pâle et délicat, à la peau translucide, effet à la fois de leur nature spectrale et de leur longue résidence ao fond des eaux ou des lacs, bien loin de la lumière du soleil.

(…)


En effet, étant privées d’amour, eles pouvaient se transformer en vengeresses assassines, en séduisant les jeunes hommes de leurs charmes dénudés, en les hypnotisant de leurs chants semblables à ceux des sirènes ou en criant négligemment des noms d’hommes tandis qu’elles sautillaient de branche en branche. Les hommes qui répondaient à ces appels étaient attirés dans l’eau et noyés. Toutefois, les rusalki ne tuaient pas toujours leurs victimes masculines, réservant leur malveillance aux jeunes femmes. Parfois, elles saisissaient tout simplement un jeune homme sous les aisselles et le chatouillaient sans pitié. Cette attitude faisant tellement partie du portrait traditionnel de la rusalka que, dans certaines régions de la Russie, on appelait celle-ci la«chatouilleuse».

Paterson c'est moi


Gostei tanto tanto do último filme do Jim Jarmusch. Tão terno e delicado.

… so sober and furious
and stubbornly ready to burst into flame…

«Se o seu quotidiano lhe parece pobre, não o acuse; acuse-se a si, diga a si mesmo que não é poeta bastante para convocar as riquezas dele; pois, para o criador, não existe pobreza alguma, nem lugar pobre e indiferente. E mesmo que estivesse numa prisão, cujas paredes não lhe deixassem chegar aos sentidos nenhum dos ruídos do mundo – não continuaria a ter ainda a sua infância, essa preciosa riqueza régia, essa câmara de tesouro das recordações? Dirija para aí a sua atenção. Tente trazer ao de cima as afundadas sensações desse distante passado; a sua personalidade firmar-se-á, a sua solidão ampliar-se-á e tornar-se-á uma habitação crepuscular onde o barulho dos outros passará ao largo».
Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta


Or would you rather be a fish?

Sinais de Cena 2017 | Revista de Estudos de Teatro e Artes Performativas



O número de 2017 da SINAIS DE CENA já está nas livrarias e é dedicado ao tema «Genética Teatral», uma disciplina dos Estudos de Teatro, ainda com pouca expressão na academia portuguesa. Os vários artigos teóricos, as críticas a espectáculos e as recensões a livros de e sobre teatro continuam a mapear a incrível diversidade das artes performativas na cena contemporânea. Destaque para uma longa entrevista ao encenador e cineasta Jorge Silva Melo, Portefólio dedicado aos 40 anos de actividade do Teatro Aberto, uma homenagem de Maria Helena Serôdio ao trabalho do dramaturgo e historiador Luiz Francisco Rebello e uma análise do processo criativo do Teatro O Bando por Juarez Guimarães Dias.

terça-feira, 11 de julho de 2017

A cantiga do bandido elevada à mais alta filosofia



Já se sabe que os domingos, mesmo os de inverno, são dias mais propensos ao tédio abrasador. O tédio é, à semelhança da melancolia, um sentimento ambíguo, repleto de potencialidades. Faz-se anunciar por um sabor acre na boca, que se adensa com um moer contínuo da carne e torna impossível o descanso; a mente revolta-se contra a planura dos dias, quer despedaçar-se contra mistérios indómitos. Quando o tédio te encontra, não resistas, alça o corpo e a alma e vai ao encontro dessa verticalidade impossível!

Assim me aconteceu um domingo destes. O tédio já estava bem instalado na soleira da minha mente, recusando qualquer entorpecimento. Escolhi um livro ao acaso e calhou-me o primeiro volume de OU – OU, de Søren Kierkegaard. Vagueei pelas páginas até encontrar DIÁRIO DE UM SEDUTOR.

Não me vou por com merdas: confesso que me aguçou a mente mas não decifrei nem metade do texto. Este é um daqueles enigmas que exige preparação, determinação e longas consultas a edições comentadas e estudos sobre a sua recepção no contexto da história da filosofia. Sabendo de antemão que não dispunha de tanto tempo, decidi-me pela leitura mais livre – adentrar-me pelo texto a dentro, ardente, tomando-o como um amante aleatório, sem qualquer distinção especial.

Foi uma aventura deliciosa. Johannes faz da sedução uma estratégia militar e convoca toda uma tradição de amantes como artilharia – Alcibíades, Giordano Bruno e Valmont. Por um lado, cativava-me o seu espírito agudo, irónico e os seus aforismos - «que uma má consciência sirva ao menos para tornar a vida interessante». Por outro, exasperava-me a sua misoginia declarada - «... não é fácil esquecer o meu olhar de soslaio. Quando eu então ficar surpreendido por a encontrar numa ambiência que não esperava, chegará nessa altura a sua vez. Se ela não me conhecer, se o seu olhar disso logo não me convencer, então, arranjarei oportunidade para olhar para ela de lado, juro que ela há-de lembrar-se da situação. Nenhuma impaciência, nenhuma avidez, tudo se desfrutará em demorados tragos; está assinalada, decerto que será alcançada»; «pesca-se sempre melhor em águas turvas; se uma rapariga tem agitação mental, pode arriscar-se muito com sucesso, o que, de outro modo, resultaria mal.»

Assim, fui progredindo na leitura de modo algo esquizofrénico, ora deleitando-me com a argúcia de Johannes, apreciando a sua estratégia infalível, ora desprezando-o como protagonista de uma misoginia disseminada pela cultura, geralmente em estado latente. Até à estocada final, absolutamente arrasadora.

Porque não pode uma noite como esta durar mais tempo? Não poderia Alectrião esquecer-se, não poderia o sol ser suficientemente compassivo nesse sentido? Mas agora já passou e desejo nunca mais a ver. Quando uma rapariga entregou tudo, enfraquece, perdeu tudo, pois, no homem, a inocência é um momento negativo, na mulher, é o mérito do seu ser. Agora toda a resistência é impossível e, enquanto ela existe, é belo amar; quando cessa, resta fraqueza e hábito. Não desejo que me lembrem a minha relação com ela; perdeu a fragrância e já lá vão os tempos em que uma rapariga, com a dor de perder o amante, era transformada em heliotrópio. Não quero despedir-me dela, nada me repugna mais do que choro de mulher e súplicas de mulher, que tudo mofificam, não tendo, porém, propriamente nada para significar. Amei-a; mas, a partir de agora, já não constitui a ocupação para a minha alma. Se eu fosse um deus, faria com ela o que Neptuno fez com a ninfa: transformava-a em homem.


Sublinhando e anotando profusamente várias passagens do diário de Johannes, perguntava-me continuamente: na textologia ocidental, foram sempre os homens os autores da arte da sedução – e a révanche do feminino, onde a encontrar?

Summer reading


Li A ILHA DE ARTURO há algum tempo e o que me ficou foi uma sensação de verão doce, uma atmosfera sensual e insular. Como todos os bildungsroman, centra-se nos anos de formação Arturo na ilha mediterrânica de Prócida. Bom selvagem, Arturo cresce num mundo onírico, fascinado por um pai ausente em misteriosas viagens, paraíso do qual será expelido pelo despertar inquietante da sexualidade. Afunilando bastante, é este o enredo. Mas o que impressiona é o estilo de Elsa Morante, simultaneamente complexo e ingénuo. À semelhança de outros bildungsroman, conta-nos da perda da inocência; porém, fá-lo da forma mais inocente e cândida, recordando-nos um deus benevolente que se lançasse na narração da expulsão do Éden.

 As vozes da povoação, pouco afastada, que chegavam até mim amortecidas e brandas através     do ar calmo, pareciam-me vozes de uma raça infantil, diferente da minha; ao ouvi-las, experimentava o sentimento que experimentaria um fúnebre cavaleiro errante que, enquanto anda sozinho por bosques e vales ao cair da noite, vai ouvindo os diálogos dos pássaros reunidos sobre as árvores para dormirem todos juntos. Recordava com saudade os outros dias em que, a estas horas vadiava pelo porto, saciado do amor feito com Assuntina durante toda a tarde, e já meio ensonado; senti remorsos da pequena escrava que, hoje, me esperara inutilmente. «Neste mesmo instante – pensei –, lá em baixo, no seu casebre, ela está a preparar o jantar para os pais que voltam dos campos. Na “casa dos guaglioni”, a minha madrasta canta, sentada ao pé da alcofa, para adormecer Carmine. Carmine não tem, contudo, sono e ainda quer brincar… Toda a gente se ocupa de coisas simples e naturais. Só eu persigo mistérios terríveis e extraordinários que talvez nem sequer existam e que, além disso, não tenho interesse em conhecer.»

domingo, 2 de julho de 2017

Performance na Esfera Pública


Pode a performance arte hoje participar, construir e recriar o espaço público? Como podem os mundos criados pela performance reconfigurar as possibilidades políticas, éticas e estéticas do encontro com o outro, de acção no mundo e da relação entre esfera privada e pública? Estas são as questões de fundo que norteiam os 11 ensaios e as 9 páginas de artistas reunidos neste volume, publicado por ocasião do centenário da conferência futurista de Almada Negreiros, marco inaugural de uma possível história da performance portuguesa.

Autores:
Bojana Cvejic & Ana Vujanovic | Carla Cruz | Sandra Guerreiro Dias | David Helbich | Isabel Nogueira | Claire Bishop | Eleonora Fabião | Sevi Bayraktar | Maria Andueza Olmedo | Christof Migone | Rui Mourão | Liliana Coutinho & Catherine Wood | Peggy Phelan | Ana Pais | Ana Bigotte Vieira | Leif Elggren/KREV | Ana Borralho & João Galante | Sílvia Pinto Coelho | João Macdonald | Christine Greiner | Andrea Maciel | Paulo Raposo | Guillermo Gómez-Peña

Para desenjoar dos irmãos Grimm


O folcore eslavo é ambíguo e muitas vezes violento. Percebemos que estamos a mergulhar noutra cultura quando é o homem que é despertado pelo beijo da rapariga que correu mundo para o encontrar. Aqui, as mulheres também partem para a guerra e existe até uma Princesa Sapo. Oh, a minha alma é cada vez mais russa...<3 .="" p="">

Freak show



Na literatura como na vida, a história reza dos vencedores. Para além do mérito, existe todo um conjunto de factores que determinam o ingresso ao cânone ou a queda no esquecimento. Hermann Ungar é um dos autores soterrados pela história, desenterrado em 2015 pela E-primatur através da tradução portuguesa de OS MUTILADOS.

É um livro perturbador em vários sentidos. Como personagem principal temos Franz Polzer, um empregado bancário neurótico e socialmente inepto cuja grande ambição é a criação de uma vida controlada e sem surpresas. Impossível não pensar em Bartleby. «Sossegava-o o facto de estar lá. Como se evidenciasse que tudo estava no seu lugar, tudo na maior das ordens, mesmo na incontrolável escuridão, nada se havia alterado nem ele houvera feito algo que pudesse alterar a ordem estabelecida e, deste modo, abrir a porta ao insólito (…). Todos os seus sentidos tinham que estar permanentemente alerta, pois o perigo existia. Não se podia deparar com alterações. Todas as semanas, contabilizava o que lhe pertencia, livros, jornais, papéis velhos, roupa interior, vestuário. Queria ter a certeza que nada se havia alterado no seu acervo.»

O perigo existe, de facto, e a vida de Polzer vê-se apartada da tão estimada rotina, completamente arremessada ao caos, num turbilhão tremendo de eventos grotescos. Do início ao fim, a narrativa não nos dá descanso e, ainda que a leitura tenha terminado e o livro regressado ao seu lugar na estante, o sentimento de repulsa persiste. No meio de tantas aberrações, Polzer acaba por ser a personagem mais simpática no meio desta descida aos infernos. Uma descida aos infernos sem qualquer paliativo e que, como Stefan Zweig disse, ficaríamos contentes por poder esquecer.


«À noite, Polzer ficava junto de Karl. Karl estava sentado na sua cadeira, parecida com as das crianças que ainda não sabem andar. Esta cadeira fora feita especialmente para ele. Na parte da frente tinha uma tábua atravessada para que Karl não caísse no caso de perder o equilíbrio. Para além disso, o tronco de Karl era preso por uma correia ao encosto. O coto do braço esquerdo estava ligado. Dele emanava um forte cheiro. O braço direito tombava inerte do tronco.»