Termino o ano com uma constatação curiosa: comprei vários
livros na Feira do Livro de Lisboa deste ano e o que mais me agradou foi um que me custou a módica quantia de 3 euros – PREPARA-TE PARA A
MORTE, de May Sarton (lembrete para 2018: inspeccionar ainda mais cuidadosamente as caixas
com os saldos da Cotovia na feira). Sem leviandade alguma, posso dizer que foi
dos melhores livros que li este ano. É uma narrativa pequenina, lê-se bem numa
noite, mas a sua escrita concentrada é carburada por uma poderosa inflamação.
Em primeiro lugar, o livro tem o
mérito de nos colocar literalmente na pele e na cabeça de uma senhora solteira,Caro, professora reformada, que por um revés de saúde se vê depositada num lar para a
terceira idade, à mercê dos cuidados negligentes de terceiros. Eu, que gosto de
me imaginar em várias vidas e situações, já tinha dedicado algum tempo a pensar
na velhice, e sempre suspeitei de que esta se assemelha a uma segunda infância,
na qual nos encontramos completamente desamparados, com a grande diferença face
à primeira infância que, desta vez, nos despimos até da esperança de que amanhã
poderá ser um dia melhor, ou de que a vida poderá novamente começar a mexer,
pois que o futuro certo é a morte, esse desenlace que sempre conhecemos mas do
qual sempre desviámos o olhar, forçando-nos à distracção.
May Sartron confirma-me que não
me enganei: a velhice é essa vulnerabilidade extrema, sem qualquer descanso ou possibilidade de distracção, em que um acerta as contas finais consigo mesmo. Mas PREPARA-TE PARA A MORTE E SEGUE-ME também me insinua que, nessas
excursões da minha imaginação, vi apenas uma árvore e não a floresta toda. Para
além do desamparo, da solidão, pode também acontecer a descredibilização, a
retirada progressiva dos direitos outorgados aos adultos, uma infantilização
forçada que priva progressivamente o «idoso» de razoabilidade, de dignidade e
até de humanidade, no sentido mais político do termo.
Para além de todo este mundo, o
livro agarrou-me num momento singular da minha vida em que me sentia
particularmente invadida por uma raiva pouco lúcida, duvidando constantemente
das minhas considerações e escolhas. E nessa fase, este livro foi como um braço
súbito que me alcançasse a meio de um desvario e, desviando-me para uma berma,
me sussurrasse : «essa raiva não é nada pouco lúcida, é preciso que escaves um
pouco mais, que te interesses um pouco mais por esse mistério que és, para que
possas entender como às vezes é preciso lutar pela sanidade contra tudo e
contra todos».
Não sou digna, uma leprosa – uma velha sem
controle sobre si própria. Quando chorei tanto naquele escuro, era uma pequena
criança castigada que chorava, mas é contra isso que tenho de batalhar – o desejo
de ser perdoada, de ser de novo aceite.
(…)
Desde a minha crise sinto-me desmerecedora de
amor, além dos limites. E isto é a infância outra vez. Quantas vezes não me
mandaram para a cama sem jantar por causa de uma birra? E como é que em toda a
minha vida nunca resolvi esta raiva que há em mim? Contudo, Caro, lembra-te que
a raiva é o lado mau do fogo – tu tinhas fogo, e esse fogo fez de ti uma boa
professora, e às vezes uma lutadora destemida. O fogo pode ser purificador.