quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Fire walk with me



Termino o ano com uma constatação curiosa: comprei vários livros na Feira do Livro de Lisboa deste ano e o que mais me agradou foi um que me custou a módica quantia de 3 euros – PREPARA-TE PARA A MORTE, de May Sarton (lembrete para 2018: inspeccionar ainda mais cuidadosamente as caixas com os saldos da Cotovia na feira). Sem leviandade alguma, posso dizer que foi dos melhores livros que li este ano. É uma narrativa pequenina, lê-se bem numa noite, mas a sua escrita concentrada é carburada por uma poderosa inflamação.

Em primeiro lugar, o livro tem o mérito de nos colocar literalmente na pele e na cabeça de uma senhora solteira,Caro, professora reformada, que por um revés de saúde se vê depositada num lar para a terceira idade, à mercê dos cuidados negligentes de terceiros. Eu, que gosto de me imaginar em várias vidas e situações, já tinha dedicado algum tempo a pensar na velhice, e sempre suspeitei de que esta se assemelha a uma segunda infância, na qual nos encontramos completamente desamparados, com a grande diferença face à primeira infância que, desta vez, nos despimos até da esperança de que amanhã poderá ser um dia melhor, ou de que a vida poderá novamente começar a mexer, pois que o futuro certo é a morte, esse desenlace que sempre conhecemos mas do qual sempre desviámos o olhar, forçando-nos à distracção.

May Sartron confirma-me que não me enganei: a velhice é essa vulnerabilidade extrema, sem qualquer descanso ou possibilidade de distracção, em que um acerta as contas finais consigo mesmo. Mas PREPARA-TE PARA A MORTE E SEGUE-ME também me insinua que, nessas excursões da minha imaginação, vi apenas uma árvore e não a floresta toda. Para além do desamparo, da solidão, pode também acontecer a descredibilização, a retirada progressiva dos direitos outorgados aos adultos, uma infantilização forçada que priva progressivamente o «idoso» de razoabilidade, de dignidade e até de humanidade, no sentido mais político do termo.

Para além de todo este mundo, o livro agarrou-me num momento singular da minha vida em que me sentia particularmente invadida por uma raiva pouco lúcida, duvidando constantemente das minhas considerações e escolhas. E nessa fase, este livro foi como um braço súbito que me alcançasse a meio de um desvario e, desviando-me para uma berma, me sussurrasse : «essa raiva não é nada pouco lúcida, é preciso que escaves um pouco mais, que te interesses um pouco mais por esse mistério que és, para que possas entender como às vezes é preciso lutar pela sanidade contra tudo e contra todos».

Não sou digna, uma leprosa – uma velha sem controle sobre si própria. Quando chorei tanto naquele escuro, era uma pequena criança castigada que chorava, mas é contra isso que tenho de batalhar – o desejo de ser perdoada, de ser de novo aceite.
(…)

Desde a minha crise sinto-me desmerecedora de amor, além dos limites. E isto é a infância outra vez. Quantas vezes não me mandaram para a cama sem jantar por causa de uma birra? E como é que em toda a minha vida nunca resolvi esta raiva que há em mim? Contudo, Caro, lembra-te que a raiva é o lado mau do fogo – tu tinhas fogo, e esse fogo fez de ti uma boa professora, e às vezes uma lutadora destemida. O fogo pode ser purificador.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Da metereologia e das nuvens



Cada vez se ouve falar mais de docuficção e de romances de não-ficção. Creio que a tendência deriva de um facto essencial: não conseguimos suportar a vida apenas com base no quotidiano mas também não nos identificamos com histórias sem carnalidade. É preciso encantar novamente a vida e despertar do longo sono os deuses adormecidos e silentes.


           
O METEREOLOGISTA de Olivier Rolin poderá encaixar nessa categoria de romance de não-ficção. Mas o único mérito reside no facto do Rolin ter encontrado uma história impressionante – a história verídica de Alexei Feodossevitch Vangengheim, o metereologista da URSS, acusado, em 1934, de sabotador do socialismo e deportado para um campo de concentração e, que até à véspera da sua morte atroz, enviava à pequena filha Eleonora desenhos, herbários e adivinhas. A reprodução a cores de parte dessa correspondência, belíssimamente ilustrada, foi afinal a razão que me levou a comprar este livro.


            
A leitura flui, de forma dolorosa, indignada, pois estamos sempre a recordar-nos que aquela história aconteceu realmente – e a perguntar-nos, vezes e vezes sem conta, como foi possível? Como é possível? O livro vale sem dúvida pela história que nos revela e pela russofonia do autor mas, ainda assim, senti em certas passagens que faltava a Olivier Rolin unhas para alcançar a grande beleza do romance de não-ficção. Parece mais um diário, com as recolecções possíveis dos factos e algumas divagações, como se o autor tivesse medo de arriscar uma fusão mais empática com as suas personagens. E, no entanto, pergunto-me, será possível empatizar-se com um real tão pobre poeticamente, tão ridiculamente violento e triste? Dificilmente, creio.
            
E talvez que este livro não me tenha preenchido por completo, porque me recordava repetidamente O CASO DO CAMARADA TULAEV, muito provavelmente o melhor romance de não-ficção sobre o grande terror das purgas estalinistas. A história de Vangengheim repete o que já tinha aprendido nessa obra-prima: o motivo rídiculo pelo qual se é acusado de sabotagem do socialismo, os mecanismos dessa imparável engrenagem da morte que faz com que os inocentes acabem por confessar os crimes imaginários de que são acusados, os detractores e fuziladores que acabam também eles por ser denunciados e fuzilados, os Matveiev dessa época assombrosa…
            
É altura de apresentar Mikhail Matveiev, executor do NKVD (…). É pela sua mão, pois faz ponto de honra de não delegar a tarefa de matar, nunca se cansa de sangue, é pela sua mão que vai morrer Alexei Feodossievitch Vangengheim (…). Durante a guerra civil, participa na tomada do Palácio de Inverno (que não foi de modo algum o evento heróico fabricado por Einsenstein), mas é enquanto encarregado das execuções, um cargo que tem futuro, que integra a polícia política em 1918. Como recompensa pelo seu trabalho, que faz com paixão (ele não é de todo um «sabotador»), recebe distinções que têm nome de revólveres: Browning, Walter. Relógios de ouro, aparelhos de radio Radiola. Mimos para um carrasco. Toma portanto conta em Kem da coluna dos mil cento e dezasseis condenados das Slovoki (…).

            O lugar da execução é «na floresta», sem mais pormenor – não há outra coisa senão floresta em torno de Medvejegorsk. Cavam grandes valas, precipitam-se os condenados para dentro delas, viram-nos de barriga para baixo e matam-nos com um tiro na nuca. Não «alguém» mas ele, pessoalmente, Matveiev. Quando lhe perguntam se viu alguns dos seus homens dar uma sova aos condenados, responde que de facto aconteceu mas não chegou a ver porque estava em baixo, na cova, com o seu revólver Nagant. De vez em quando, quando se sente cansado, quando tem vontade de descomprimir, de fumar um cigarro, volta a subir e passa a tarefa ao seu adjunto, o tenente Alafer, mas, regra geral, é ele que se encontra no fim da cadeia, as suas botas na lama sanguinolenta, cheia de miolos. Todos os dias, ou antes todas as noites, porque aquelas coisas têm lugar à noite, nas noites de vinte e sete de outubro de 1937 e de um a quatro de novembro (…), ele avia entre duzentos e duzentos e cinquenta contrarrevolucionários. E, para além disso, tem de assinar as declarações que atestam que cada sentença foi executada. Em suma, trabalha a mata-cavalos, mereceu o seu relógio de ouro.

Como foi possível? Como é possível?

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Conselhos preciosos para o grande frio

Saibas, amado filho, que, se te encantes de alguém, não deves ceder indiscriminadamente ao prazer, estejas tu bêbedo ou sóbrio, porque é sabido que o sêmen que de ti irrompe é sempre germe de almas e pessoas. Não te entregues ao prazer inebriado de vinho, é coisa danosa e deletéria; melhor esperar, ao menos, que os efeitos do álcool passem. E não deixes que o prazer comande sempre que fiques excitado, pois esse é um comportamento verdadeiramente animalesco, e os animais não conhecem nem tempo nem lugar. Os homens, ao contrário, devem sempre saber o momento justo, diferenciando-se assim das feras.
 Em relação à escolha entre garotos e mulheres, não limites tua preferência a um único gênero, garotos ou mulheres, para que tu possas obter prazer de ambos os sexos, evitando assim a inimizade de um ou de outro.
 Os excessos, como te disse, são danosos, mas, saibas que a abstinência também tem seus perigos. Qualquer coisa que faças deve ser feita de acordo com teu desejo e não por obrigação, de modo que o dano seja menor.
 Havendo desejo ou não, é todavia aconselhável que te controles durante o grande calor e o grande frio. É nas duas estações extremas que as paixões produzem os efeitos mais deletérios, principalmente para os mais velhos. De todos os momentos do ano, ao invés, é a primavera, com seu clima temperado e suas fontes túrgidas, a estação mais propícia, onde a face do mundo se mostra feliz e faceira. E assim como o macrocosmo, graças à primavera rejuvenesce nosso corpo, que é o microcosmo. Os humores do corpo tornam-se temperados e o sangue de nossas veias se dilatam, assim como o sêmen nos lombos. Mesmo sem uma vontade precisa, irresistível se torna a busca por prazeres e incontrolável a necessidade de regozijos e encontros, mas se autêntico é o ardor, menor é o dano.
E assim a vida segue. Se possível não dês vazão a teus líquidos vitais no calor tórrido e no inverno rígido, e caso percebas um aumento do ardor procura reestabelecer o equilíbrio com uma dieta harmoniosa. Durante o verão dá predileção aos garotos, e reserva o inverno às mulheres, respeitando sempre um sano equilíbrio sazonal. E, se neste discurso fui breve, é porque mais não serve.
Kay Ka’us ibn Iskandar (Qābūs-nāme, séc.XI)