Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância
absurda a caminho da morte, certa. Não me coube em herança qualquer deus, nem
ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. Tão pouco me legaram
o disfarçado furor do céptico, a astúcia do racionalista ou a ardente candura
do ateu. Não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem
os que fazem o culto da própria dúvida, como se não estivesse, também esta
rodeada de trevas. Seria eu, também, o acusado, pois de uma coisa estou certo:
o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.
(…) Nem a vida é
mensurável, nem viver é uma tarefa. O salto do cabrito ou o nascer do sol não
são tarefas. Como há-de sê-lo a vida humana – força surda a crescer na dor da
perfeição? E o que é perfeito não desempenha tarefas. O que é perfeito labora
em estado de repouso. É absurdo pretender que a função do mar seja exibir
armadas e golfinhos. Evidentemente que o faz – mas preservando toda a sua
liberdade. Que outra tarefa a do homem, senão viver? Faz máquinas? Escreve
livros?
(…) mas onde está hoje a
floresta na qual o ser humano prove que pode viver livre, e não limitado pelos
rígidos moldes da sociedade?
Sou obrigado a responder:
em parte alguma. Se desejo viver livre, é por enquanto necessário que o faça no
interior desses moldes. Sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir
ao seu poder só me tenho a mim. O que já não é pouco. Se o número não me
esmagar, sou, também eu, um poder. E enquanto me for possível empurrar as
palavras contra a força do mundo, esse poder será tremendo, pois quem constrói
prisões expressa-se sempre pior do quem se bate pela liberdade. E no dia em que
só o silêncio me restar como defesa, então será ilimitado, pois gume algum pode
fender o silêncio vivo.
É este o meu único
consolo. Sei que as recaídas no desespero serão profundas e numerosas, mas a
lembrança do milagre da libertação leva-me como uma asa a um fim que me
inebria: um consolo que seja mais do que apenas isso, e mais vasto que uma
filosofia: que seja, enfim, uma razão de viver.