sábado, 20 de outubro de 2018
"A minha jornada está feita: vou deixar a Europa. O ar marinho queimará os meus pulmões; os climas perdidos tisnar-me-ão. Nadar, calcar a erva, caçar e sobretudo fumar; beber licores fortes como metal a ferver – como faziam esses caros antepassados à volta das fogueiras. Regrassarei, com membros de ferro, a pele escura, o olhar furibundo; pela minha máscara, julgar-me-ão de uma raça forte. Terei ouro: serei ocioso e brutal”. Rimbaud
sexta-feira, 19 de outubro de 2018
If I could make the world as pure and strange as what I see I'd put you in the mirror I put in front of me
8 de
Junho de 1897
(...)
Minha límpida fonte! Como te estou agradecido! Não quero mais ver
flores, céu, sol – a não ser em ti. Tudo
é absolutamente mais belo, mais fabuloso, quando o olhas: a flor nas tuas
margens, que – sei isso do tempo em que tinha de ver as coisas sem ti – treme de
frio no musgo, solitária e terna, reflecte-se clara na tua bondade, vibrante, e
quase aflora com a sua pequena cabeça o céu que irradia da tua profundeza. E o
raio de sol que chega empoeirado e único aos teus limites transfigura-se e
multiplica-se em chuva de centelhas nas ondas luminosas da tua alma. Minha límpida
fonte. É através de ti que quero ver o mundo, porque, ao mesmo tempo, verei, já
não o mundo, mas apenas a ti, a ti, a ti!
Tu és o meu dia de festa. Quando em
sonhos me junto a ti, tenho sempre flores nos cabelos.
//
Desejaria colocar-te flores nos
cabelos. Quais? Nenhuma tem a simplicidade comovente que deveria, nenhuma é
suficientemente simples. Em que Maio colhê-lhas? – Mas creio agora que tens
sempre nos cabelos uma grinalda – ou uma coroa… Nunca te vi de outro modo.
Nunca te vi, que não tivesse o desejo de te rezar. Nunca te
ouvi que não tivesse o desejo de acreditar em ti. Nunca te esperei, sem o
desejo de sofrer por ti. Nunca te desejei, sem ter também o direito de me
ajoelhar à tua frente.
LOU ANDREAS-SALOMÉ A RILKE em
Berlim
26 de Fevereiro de 1901
Último apelo.
(…) Mas então, outra coisa
aconteceu, qualquer coisa que é como que uma trágica culpabilidade minha para
contigo: o facto de, a despeito da nossa diferença de idades, me ter sido
necessário crescer desde Wolfratshausen, crescer para encontrar finalmente o
que com tanta alegria te anunciei quando nos despedimos, por mais estranho que
isso possa parecer: a minha juventude. Pois somente hoje consegui ser jovem,
somente agora posso ser o que as outras são aos dezoito anos: inteiramente eu
própria. Foi esta a razão por que a tua pessoa, tão querida e tão próxima em Wolfratshausen,
a pouco e pouco foi desaparecendo da minha vista, como um determinado pormenor
numa vasta paisagem, uma imensa paisagem do Volga, por exemplo, e onde a
pequena cabana já não te pertencia. Sem o saber, obedeci ao grande destino da
minha vida, que, sorrindo e para além de toda a compreensão e de toda a
expectativa, me oferecia um presente. Aceitei-o com uma grande humildade; e
lúcida como um vidente, lanço-te este apelo: caminha da mesma maneira ao
encontro do teu Deus obscuro!
quinta-feira, 18 de outubro de 2018
diz que era o poema predilecto de Dostoievski
O Profeta
Com o espírito morto de sede,
Rojo-me num deserto escuro,
E voa um anjo de seis asas
Na encruzilhada dos meus rumos.
Com dedos leves como o sonho
O serafim toca-me os olhos:
Uns olhos profetas se abriram
Como os da águia assustada.
Eis que me assoma os ouvidos
E os enche de alvoroço:
Escuto o tremer do céu,o alto
Voo dos anjos,os deslizar
Subáqueo do monstro marinho
E a rosa a crescer no vale.
Sobre minha boca se inclina
E arranca a língua ardilosa,
Carpideira,iníqua e vã,
E com a dextra ensanguentada
Põe o dardo da sábia cobra
Na minha boca silenciada.
Com a espada me corta o peito,
O meu coração latejante
Despega,e no vão negro do seio
O anjo mete a brasa viva .
Estou,como morto,no deserto
E a voz de Deus por mim clama:
Ergue-te,ouve e vê,profeta,
Da minha vontade te tomes,
Mares e terras percorre,queime
Teu verbo o coração dos homens.
Aleksandr Pushkin
(tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)
Traditore: o critério de Novalis, citado por Cesariny
«Uma tradução pode ser literal, livre ou mítica. As traduções míticas são o estilo supremo da tradução. Representam a obra de arte individual no seu carácter puro e total. Dão-nos, não a obra de arte ela-própria, mas a sua transcrição ideal... As traduções literais exigem muito saber, mas valem-se de um talento puramente discursivo.
As traduções livres, se se pretendem válidas, exigem o mais elevado espírito poético.
... O verdadeiro tradutor neste género deve ser ele mesmo um artista e dar uma ideia do conjunto por tal ou tal processo à sua escolha. É necessário que seja o poeta do seu poeta..»
o meu coração é árabe
“Quantos Árabes ilustres ligados a
esta terra têm merecido a atenção da nossa gente de cultura? Apenas responderá
um silêncio que magoa. No entanto, esses mouros convertidos em lenda iluminaram
a Idade Média, guiados pelos noventa e nove Nomes de Alá. E, como os ventos que
sopravam dos desertos de onde vinham, trouxeram aromas e fulgores de todas as
civilizações que avassalaram. E foram filósofos, matemáticos, poetas, santos e
heróis. Por isso, os reis cristãos peninsulares, vencedores tantas vezes pela
espada, se rendiam ao seu saber e, não raro, entregavam o coração à mulher
muçulmana.
(…)
Compreende-se que, no cenário das
areias, «a única arte que os nómadas
podem desenvolver é de facto a língua – que se torna assim o que Heidegger
disse: a morada do ser. A frase do filósofo alemão é tão verdadeira que o verso
poético árabe chama-se bayt
(literalmente casa) e palavra diz-se mufrad (de fard, ou seja, indivíduo).»
IBN
‘ABDÛN (Évora, século XI)
regaram-no
as chuvas da abastança
e
saudosas frases me vêm à lembrança.
cumes
cobertos de moitas floridas
de
bordados mantos, sendas não esquecidas.
como
esquecer-me das horas passadas
no
tropel louco de ingénuas cavalgadas?
ai
como era doce esse meu folguedo
passarinho
à toa esvoaçando ledo.
dias
tão felizes, bordados em flor,
vento
em minhas vestes murmurando amor.
AL-MU’TAMID (Beja, 1040 – Aghmat, 1095)
evocação de Silves
saúda,
por mim, Abû Bakr,
os
queridos lugares de Silves
e
diz-me se deles a saudade
é
tão grande quanto a minha.
saúda
o Palácio dos Balcões,
da
parte de quem nunca o esqueceu,
morada
de leões e de gazelas
salas
e sombras onde eu
doce
refúgio encontrava
entre
ancas opulentas
e
tão estreitas cinturas.
moças
níveas e morenas
atravessavam-me
a alma
como
brancas espadas
como
lanças escuras.
ai
quantas noites fiquei,
lá
no remanso do rio,
preso
nos jogos do amor
com
a da pulseira curva,
igual
aos meandros da água,
enquanto
o tempo passava…
ela
me servia vinho:
o
vinho do seu olhar,
às
vezes o do seu copo,
e
outras vezes o da boca.
tangia-me
o alaúde
e
eis que eu estremecia
como
se estivesse ouvindo
tendões
de colos cortados.
mas
se retirava as vestes
grácil
detalhe mostrando,
era
ramo de salgueiro
que
me abria o seu botão
para
ostentar a flor.
--//--
solta
a alegria! que fique desatada!
esquece
a ânsia que rói o coração.
tanta
doença foi assim curada!
a
vida é uma presa, vai-te a ela!
pois
é bem curta a sua duração.
e
mesmo que a tua vida acaso fosse
de
mil anos plenos já composta
mal
se poderia dizer que fora longa.
seres
triste sempre não seja a tua aposta
pois
o alaúde e o fresco vinho
te
aguardam na beira do caminho.
os
cuidados não serão de ti os donos
se
a taça for espada brilhante em tua mão
da
sabedoria só colherás a turbação
cravada
no mais fundo do teu ser:
é
que, de entre todos, o mais sábio
é
aquele que não cuida de saber.
sexta-feira, 5 de outubro de 2018
As Forças Estranhas
Descobri mais um mistério,
novamente graças à Sistema Solar e ao magnífico Aníbal Fernandes: Leopoldo
Lugones. A selecção de contos é muito boa e os textos de apresentação de Aníbal
Fernandes não ficam atrás, quer pelo nível literário, quer pela profusão de
bibliografia consultada que pressupõem para oferecer ao leitor toda a
informação condensada. Quanto ao Lugones, apreciei muito o seu estilo: os
vários contos recuperam civilizações perdidas, sugerindo não apenas uma enorme
erudição histórica do autor, como também um estudo apurado de várias mitologias
e tradições místicas – dos trabalhos de Hércules à civilização egípcia,
passando por alguns episódios da Bíblia e pela Ordem dos Assassinos – temas que
me vêem interessando cada vez mais nos últimos tempos.
AF
começa por nos contar o suicídio do autor, cita a sua nota de despedida (Peço que me enterrem na terra sem caixão,
sem nome que me recorde; proíbo que o meu nome seja atribuído a um qualquer
lugar público; não culpo ninguém de nada; sou o único responsável por todos os
meus actos.), vai até ao detalhe de nos informar que esse último quarto de
hotel ainda existe e se mantém fora de serviço, tal como Lugones o deixou no
dia da sua morte. Seguem-se vários textos de apresentação que ajudam a
esclarecer os contos de cada secção, com especial destaque para o fenomenal
resumo bíblico que AF faz do Génesis, do Dilúvio e da destruição de Sodoma e
Gomorra.
E
foi precisamente nestes 3 contos bíblicos que começou o meu fascínio por
Leopoldo Lugones. «A Chuva de Fogo» conta-nos as últimas horas de Gomorra por
um habitante desta cidade; «A Estátua de Sal» prossegue com a história da
mulher de Lot e «A Origem do Dilúvio» remata com uma espécie de fantasia
científica e um dos desenlaces mais surpreendentes que li – uma pequena sereia
morta na bacia do lavatório, genial! O conto «Yzur» ofereceu-me uma comoção
inaudita por um macaco, Yzur de seu nome, que rapidamente se estendeu a toda a
humanidade. «Nuralkámar» impressionou-me sobretudo pelos vastos conhecimentos
que o autor denota da poesia árabe.
E
eis que chego rendida aos 3 últimos contos, extraídos da antologia Cuentos Fatales. Novamente encontramos numa
antecâmara as palavras mestras de AF (Os
contos «O Vaso de Alabastro», «Os Olhos da Rainha» e «O Punhal» são relatos
onde o próprio Lugones se revela depositário de revelações que levam à morte
quem não as respeita ou (no último caso) as aprofunda, tornando-se um
verdadeiro «iniciado».) e a fabulosa imagem desse punhal que dá nome ao
último conto e que terá pertencido a um druso seguidor e herdeiro das tradições
da Ordem dos Assassinos, acabando na posse de Lugones. Quiçá da forma que o
conto narra… Cheguei rendida, saio de gatas. Ide ler!
amar
Amar foi durante muito tempo
gravar iniciais adolescentes,
no fuste das tílias.
Era então uma espécie
de idade de ouro do amor.
Mas tive de aprender à minha custa
que amar pode ser tão envolvente
como um polvo:
ama-se em muitas frentes.
Aprendi que amar, entre outras coisas,
é também navegar nas águas da noite
adultamente
sem bússola e sem cautelas,
à proa fugidia dum batel.
E que, em casos mais desesperados,
é ir aos trambolhões de mar em mar.
Tumultuosamente. Sem ser correspondido.
E em chamas, se preciso for.
A. M. Pires Cabral
Femicídios
Fui
buscar o RAPARIGAS MORTAS, da Selva Almada, à biblioteca. Ainda bem. É mais um
daqueles livros que se lê bem, à espera de que acrescente alguma coisa, e tal
não acontece. Será claramente um problema meu, que tende a repetir-se com o
género «romance não ficção»: as histórias reais são intrigantes e essa
veracidade vai alavancando a leitura mas, para além disso, não reconheço ao
autor ou autora um excepcional talento literário.
Em caso de tempestade este jardim será encerrado
E o cais cinzento e as
casas vermelhas E não é ainda a solidão E os olhos vêem um quadrado negro com
um círculo de música lilás no seu centro E o jardim das delícias apenas existe
fora dos jardins E a solidão é não poder dizê-la E o cais cinzento e as casas
vermelhas.
Alejandra Pizarnik
YOUR FUNERAL, MY TRIAL
O morto
fica mais só
quando
quem fala lhe rouba
a última
memória desse barco
desmesurado
da infância,
construído
sem vista para o mar.
O morto
fica mais só ainda,
quando
quem ouve se esquece da música
para
escolher o seu próprio funeral,
alinhando
convidados e preferindo coroas
de
plástico a condizer com as lágrimas.
O morto
fica mais só ainda, se possível,
quando me
distraio com o mel da luz
nos
vitrais ou sigo o gato amarelado
para quem
a morte é apenas uma questão de
sobrevivência,
talvez um jogo, se algum rato
finge
entregar-se com prazer às suas garras.
Hoje,
pela primeira vez, não me chegam
os dedos
para contar os meus dias de veladora.
Mesmo
sabendo que nenhum ritual nos consola,
tento apaziguar
a terra que se abre a meus pés,
plantando
cravos condenados que nunca voltarão a florir.
E invejo
secretamente o morto, porque já não precisa de
conhecer
a flor preferida de ninguém:
pode
simplesmente deixar-se estar,
na
certeza de que o chão não lhe voltará a falhar.
Os mais
sós, afinal, são sempre os sobreviventes.
*
TROUBADOUR
O jardim
(em) que mais amei
não tinha
tratados de botânica
nem
estátuas de domingo.
Cabia todo
no trautear suave,
quase
gemido, do banco ao lado
e tinha a
tristeza prosaica de
meia
dúzia de pombas desinspiradas
pelas
mesmas migalhas.
Os miúdos
eram os de sempre,
o futuro
à exacta distância
da bola
que passavam logo a outro,
assustados
com a responsabilidade
dessa
posse demasiado leve.
Só a
fonte parecia calar-se
para nos
ouvir e os pássaros
tinham um
jeito caprichoso de roçar
cada
cabelo teu para te mostrarem
as asas
de renda em contraluz.
O único
dia em que lá regressei sem ti
foi como
saber outra vez que ia morrer.
Os céus
não se rasgaram, ninguém se calou
para me
deixar passar, nem secara
a fonte
subitamente ao centro.
Ainda insisti
num banco com vista
para o
nosso, sem folhas a cair ou pássaros
que me
emprestassem o consolo
impossível
da sua sombra. Mas o sol
era agora
uma arma descarregada,
contra a
qual já não precisava
da
muralha do teu corpo e tive
a certeza
absurda de que tudo
iria
continuar sem nós, e eu sem ti.
Era apenas
questão de evitar o jardim
do mesmo
modo que pago para fugir
à morte,
escolhendo trajectos que me façam doer
todos os
músculos, excepto o do coração.
*
REQUIEM
POR UM PÁSSARO E UM AUTOCARRO PERDIDO
Para a Renata Correia
Botelho
Mais um
dia
em forma
de pássaro morto.
Uma amálgama
ainda quente
da manhã
que nasce, espécie de beleza
desmanchada
a que nem o nosso olhar
consegue
servir de pietà. O vento
teima em
agitar uma ou outra pena,
mas não
há golpe de asa que o arranque
agora ao
asfalto negro.
Partilhamos,
no fundo, a impotência:
o destino
que o esmagou
é o mesmo
que esperamos para
embarcar
sem surpresas, sem direito a atrasos.
A essa
indiferença cansada prefiro
a do
outro pássaro que, lá muito em cima,
hoje
ainda mais, refaz a traços negros
a vida. É
por esses instantes
de voo
que aceito continuar a perder.
*
COME RAIN OR COME SHINE
No fundo,
é isto: espera-se.
Escrevemos
incuravelmente
a
história dessa espera, mas
nunca se
chega ao fim da rua
mais
escura do passado,
nem se
despe por completo o luto,
sempre
outros os mortos, sempre igual a si
a morte. A
espera,
essa
continua. Podemos
chamar-lhe
agora expectativa,
tentarmos
soletrar esperança.
Só que já
não queremos tanto crescer
e,
sinceramente, preferimos
adiar os
destinos ambicionados,
compreendendo
por fim Moosbrugger, para quem
a
felicidade era a distância
mais
comprida entre a prisão e o tribunal.
Esforçamo-nos
por vencer a dor pela
exaustão,
transformá-la num bicho
que se
alimente de palavras e recuse as nossas festas.
Mesmo
assim, espera-se. Com
as mãos
cansadas e de olhos
teimosamente
postos no amor,
abrimos a
janela e deixamos
a luz
entrar, compassiva,
abafando
a chuva que cai sem dar tempo
aos
pássaros de se abrigarem. Anotamos
a palavra
sinal. Ou redenção. Não interessa,
o poema
não deixa de ser o mesmo
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