sexta-feira, 19 de outubro de 2018

If I could make the world as pure and strange as what I see I'd put you in the mirror I put in front of me



RILKE A LOU ANDREAS-SALOMÉ em Munique

8 de Junho de 1897

(...)

Minha límpida fonte! Como te estou agradecido! Não quero mais ver flores, céu, sol  – a não ser em ti. Tudo é absolutamente mais belo, mais fabuloso, quando o olhas: a flor nas tuas margens, que – sei isso do tempo em que tinha de ver as coisas sem ti – treme de frio no musgo, solitária e terna, reflecte-se clara na tua bondade, vibrante, e quase aflora com a sua pequena cabeça o céu que irradia da tua profundeza. E o raio de sol que chega empoeirado e único aos teus limites transfigura-se e multiplica-se em chuva de centelhas nas ondas luminosas da tua alma. Minha límpida fonte. É através de ti que quero ver o mundo, porque, ao mesmo tempo, verei, já não o mundo, mas apenas a ti, a ti, a ti!
            Tu és o meu dia de festa. Quando em sonhos me junto a ti, tenho sempre flores nos cabelos.

//

Desejaria colocar-te flores nos cabelos. Quais? Nenhuma tem a simplicidade comovente que deveria, nenhuma é suficientemente simples. Em que Maio colhê-lhas? – Mas creio agora que tens sempre nos cabelos uma grinalda – ou uma coroa… Nunca te vi de outro modo.
            Nunca te vi, que não tivesse o desejo de te rezar. Nunca te ouvi que não tivesse o desejo de acreditar em ti. Nunca te esperei, sem o desejo de sofrer por ti. Nunca te desejei, sem ter também o direito de me ajoelhar à tua frente.


LOU ANDREAS-SALOMÉ A RILKE em Berlim

26 de Fevereiro de 1901

Último apelo.
(…) Mas então, outra coisa aconteceu, qualquer coisa que é como que uma trágica culpabilidade minha para contigo: o facto de, a despeito da nossa diferença de idades, me ter sido necessário crescer desde Wolfratshausen, crescer para encontrar finalmente o que com tanta alegria te anunciei quando nos despedimos, por mais estranho que isso possa parecer: a minha juventude. Pois somente hoje consegui ser jovem, somente agora posso ser o que as outras são aos dezoito anos: inteiramente eu própria. Foi esta a razão por que a tua pessoa, tão querida e tão próxima em Wolfratshausen, a pouco e pouco foi desaparecendo da minha vista, como um determinado pormenor numa vasta paisagem, uma imensa paisagem do Volga, por exemplo, e onde a pequena cabana já não te pertencia. Sem o saber, obedeci ao grande destino da minha vida, que, sorrindo e para além de toda a compreensão e de toda a expectativa, me oferecia um presente. Aceitei-o com uma grande humildade; e lúcida como um vidente, lanço-te este apelo: caminha da mesma maneira ao encontro do teu Deus obscuro!

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

diz que era o poema predilecto de Dostoievski


O Profeta

Com o espírito morto de sede,
Rojo-me num deserto escuro,
E voa um anjo de seis asas
Na encruzilhada dos meus rumos.
Com dedos leves como o sonho
O serafim toca-me os olhos:
Uns olhos profetas se abriram
Como os da águia assustada.
Eis que me assoma os ouvidos
E os enche de alvoroço:
Escuto o tremer do céu,o alto
Voo dos anjos,os deslizar
Subáqueo do monstro marinho
E a rosa a crescer no vale.
Sobre minha boca se inclina
E arranca a língua ardilosa,
Carpideira,iníqua e vã,
E com a dextra ensanguentada
Põe o dardo da sábia cobra
Na minha boca silenciada.
Com a espada me corta o peito,
O meu coração latejante
Despega,e no vão negro do seio
O anjo mete a brasa viva .
Estou,como morto,no deserto
E a voz de Deus por mim clama:
Ergue-te,ouve e vê,profeta,
Da minha vontade te tomes,
Mares e terras percorre,queime
Teu verbo o coração dos homens.


Aleksandr Pushkin
(tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra)

Traditore: o critério de Novalis, citado por Cesariny


«Uma tradução pode ser literal, livre ou mítica. As traduções míticas são o estilo supremo da tradução. Representam a obra de arte individual no seu carácter puro e total. Dão-nos, não a obra de arte ela-própria, mas a sua transcrição ideal... As traduções literais exigem muito saber, mas valem-se de um talento puramente discursivo.
    As traduções livres, se se pretendem válidas, exigem o mais elevado espírito poético.
    ... O verdadeiro tradutor neste género deve ser ele mesmo um artista e dar uma ideia do conjunto por tal ou tal processo à sua escolha. É necessário que seja o poeta do seu poeta..»


o meu coração é árabe




“Quantos Árabes ilustres ligados a esta terra têm merecido a atenção da nossa gente de cultura? Apenas responderá um silêncio que magoa. No entanto, esses mouros convertidos em lenda iluminaram a Idade Média, guiados pelos noventa e nove Nomes de Alá. E, como os ventos que sopravam dos desertos de onde vinham, trouxeram aromas e fulgores de todas as civilizações que avassalaram. E foram filósofos, matemáticos, poetas, santos e heróis. Por isso, os reis cristãos peninsulares, vencedores tantas vezes pela espada, se rendiam ao seu saber e, não raro, entregavam o coração à mulher muçulmana.
(…)
Compreende-se que, no cenário das areias, «a única arte que os nómadas podem desenvolver é de facto a língua – que se torna assim o que Heidegger disse: a morada do ser. A frase do filósofo alemão é tão verdadeira que o verso poético árabe chama-se bayt (literalmente casa) e palavra diz-se mufrad (de fard, ou seja, indivíduo).»

IBN ‘ABDÛN (Évora, século XI)

regaram-no as chuvas da abastança
e saudosas frases me vêm à lembrança.

cumes cobertos de moitas floridas
de bordados mantos, sendas não esquecidas.

como esquecer-me das horas passadas
no tropel louco de ingénuas cavalgadas?

ai como era doce esse meu folguedo
passarinho à toa esvoaçando ledo.

dias tão felizes, bordados em flor,
vento em minhas vestes murmurando amor.


AL-MU’TAMID (Beja, 1040 – Aghmat, 1095)

evocação de Silves

saúda, por mim, Abû Bakr,
os queridos lugares de Silves
e diz-me se deles a saudade
é tão grande quanto a minha.
saúda o Palácio dos Balcões,
da parte de quem nunca o esqueceu,
morada de leões e de gazelas
salas e sombras onde eu
doce refúgio encontrava
entre ancas opulentas
e tão estreitas cinturas.
moças níveas e morenas
atravessavam-me a alma
como brancas espadas
como lanças escuras.
ai quantas noites fiquei,
lá no remanso do rio,
preso nos jogos do amor
com a da pulseira curva,
igual aos meandros da água,
enquanto o tempo passava…
ela me servia vinho:
o vinho do seu olhar,
às vezes o do seu copo,
e outras vezes o da boca.
tangia-me o alaúde
e eis que eu estremecia
como se estivesse ouvindo
tendões de colos cortados.
mas se retirava as vestes
grácil detalhe mostrando,
era ramo de salgueiro
que me abria o seu botão
para ostentar a flor.

--//--

solta a alegria! que fique desatada!
esquece a ânsia que rói o coração.
tanta doença foi assim curada!
a vida é uma presa, vai-te a ela!
pois é bem curta a sua duração.

e mesmo que a tua vida acaso fosse
de mil anos plenos já composta
mal se poderia dizer que fora longa.
seres triste sempre não seja a tua aposta
pois o alaúde e o fresco vinho
te aguardam na beira do caminho.

os cuidados não serão de ti os donos
se a taça for espada brilhante em tua mão
da sabedoria só colherás a turbação
cravada no mais fundo do teu ser:
é que, de entre todos, o mais sábio
é aquele que não cuida de saber.

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

As Forças Estranhas



Descobri mais um mistério, novamente graças à Sistema Solar e ao magnífico Aníbal Fernandes: Leopoldo Lugones. A selecção de contos é muito boa e os textos de apresentação de Aníbal Fernandes não ficam atrás, quer pelo nível literário, quer pela profusão de bibliografia consultada que pressupõem para oferecer ao leitor toda a informação condensada. Quanto ao Lugones, apreciei muito o seu estilo: os vários contos recuperam civilizações perdidas, sugerindo não apenas uma enorme erudição histórica do autor, como também um estudo apurado de várias mitologias e tradições místicas – dos trabalhos de Hércules à civilização egípcia, passando por alguns episódios da Bíblia e pela Ordem dos Assassinos – temas que me vêem interessando cada vez mais nos últimos tempos.
AF começa por nos contar o suicídio do autor, cita a sua nota de despedida (Peço que me enterrem na terra sem caixão, sem nome que me recorde; proíbo que o meu nome seja atribuído a um qualquer lugar público; não culpo ninguém de nada; sou o único responsável por todos os meus actos.), vai até ao detalhe de nos informar que esse último quarto de hotel ainda existe e se mantém fora de serviço, tal como Lugones o deixou no dia da sua morte. Seguem-se vários textos de apresentação que ajudam a esclarecer os contos de cada secção, com especial destaque para o fenomenal resumo bíblico que AF faz do Génesis, do Dilúvio e da destruição de Sodoma e Gomorra.
E foi precisamente nestes 3 contos bíblicos que começou o meu fascínio por Leopoldo Lugones. «A Chuva de Fogo» conta-nos as últimas horas de Gomorra por um habitante desta cidade; «A Estátua de Sal» prossegue com a história da mulher de Lot e «A Origem do Dilúvio» remata com uma espécie de fantasia científica e um dos desenlaces mais surpreendentes que li – uma pequena sereia morta na bacia do lavatório, genial! O conto «Yzur» ofereceu-me uma comoção inaudita por um macaco, Yzur de seu nome, que rapidamente se estendeu a toda a humanidade. «Nuralkámar» impressionou-me sobretudo pelos vastos conhecimentos que o autor denota da poesia árabe.
E eis que chego rendida aos 3 últimos contos, extraídos da antologia Cuentos Fatales. Novamente encontramos numa antecâmara as palavras mestras de AF (Os contos «O Vaso de Alabastro», «Os Olhos da Rainha» e «O Punhal» são relatos onde o próprio Lugones se revela depositário de revelações que levam à morte quem não as respeita ou (no último caso) as aprofunda, tornando-se um verdadeiro «iniciado».) e a fabulosa imagem desse punhal que dá nome ao último conto e que terá pertencido a um druso seguidor e herdeiro das tradições da Ordem dos Assassinos, acabando na posse de Lugones. Quiçá da forma que o conto narra… Cheguei rendida, saio de gatas. Ide ler! 

amar


Amar foi durante muito tempo
gravar iniciais adolescentes,
no fuste das tílias.

Era então uma espécie
de idade de ouro do amor.

Mas tive de aprender à minha custa
que amar pode ser tão envolvente
como um polvo:
ama-se em muitas frentes.

Aprendi que amar, entre outras coisas,
é também navegar nas águas da noite
adultamente
sem bússola e sem cautelas,
à proa fugidia dum batel.

E que, em casos mais desesperados,
é ir aos trambolhões de mar em mar.
Tumultuosamente. Sem ser correspondido.
E em chamas, se preciso for.

A. M. Pires Cabral

Femicídios




Fui buscar o RAPARIGAS MORTAS, da Selva Almada, à biblioteca. Ainda bem. É mais um daqueles livros que se lê bem, à espera de que acrescente alguma coisa, e tal não acontece. Será claramente um problema meu, que tende a repetir-se com o género «romance não ficção»: as histórias reais são intrigantes e essa veracidade vai alavancando a leitura mas, para além disso, não reconheço ao autor ou autora um excepcional talento literário.

Em caso de tempestade este jardim será encerrado





E o cais cinzento e as casas vermelhas E não é ainda a solidão E os olhos vêem um quadrado negro com um círculo de música lilás no seu centro E o jardim das delícias apenas existe fora dos jardins E a solidão é não poder dizê-la E o cais cinzento e as casas vermelhas.
Alejandra Pizarnik


YOUR FUNERAL, MY TRIAL

O morto fica mais só
quando quem fala lhe rouba
a última memória desse barco
desmesurado da infância,
construído sem vista para o mar.

O morto fica mais só ainda,
quando quem ouve se esquece da música
para escolher o seu próprio funeral,
alinhando convidados e preferindo coroas
de plástico a condizer com as lágrimas.

O morto fica mais só ainda, se possível,
quando me distraio com o mel da luz
nos vitrais ou sigo o gato amarelado
para quem a morte é apenas uma questão de
sobrevivência, talvez um jogo, se algum rato
finge entregar-se com prazer às suas garras.

Hoje, pela primeira vez, não me chegam
os dedos para contar os meus dias de veladora.
Mesmo sabendo que nenhum ritual nos consola,
tento apaziguar a terra que se abre a meus pés,
plantando cravos condenados que nunca voltarão a florir.
E invejo secretamente o morto, porque já não precisa de
conhecer a flor preferida de ninguém:
pode simplesmente deixar-se estar,
na certeza de que o chão não lhe voltará a falhar.

Os mais sós, afinal, são sempre os sobreviventes.

*

TROUBADOUR

O jardim (em) que mais amei
não tinha tratados de botânica
nem estátuas de domingo.
Cabia todo no trautear suave,
quase gemido, do banco ao lado
e tinha a tristeza prosaica de
meia dúzia de pombas desinspiradas
pelas mesmas migalhas.
Os miúdos eram os de sempre,
o futuro à exacta distância
da bola que passavam logo a outro,
assustados com a responsabilidade
dessa posse demasiado leve.
Só a fonte parecia calar-se
para nos ouvir e os pássaros
tinham um jeito caprichoso de roçar
cada cabelo teu para te mostrarem
as asas de renda em contraluz.

O único dia em que lá regressei sem ti
foi como saber outra vez que ia morrer.
Os céus não se rasgaram, ninguém se calou
para me deixar passar, nem secara
a fonte subitamente ao centro.
Ainda insisti num banco com vista
para o nosso, sem folhas a cair ou pássaros
que me emprestassem o consolo
impossível da sua sombra. Mas o sol
era agora uma arma descarregada,
contra a qual já não precisava
da muralha do teu corpo e tive
a certeza absurda de que tudo
iria continuar sem nós, e eu sem ti.
Era apenas questão de evitar o jardim
do mesmo modo que pago para fugir
à morte, escolhendo trajectos que me façam doer
todos os músculos, excepto o do coração.

*

REQUIEM POR UM PÁSSARO E UM AUTOCARRO PERDIDO

Para a Renata Correia Botelho


Mais um dia
em forma de pássaro morto.
Uma amálgama ainda quente
da manhã que nasce, espécie de beleza
desmanchada a que nem o nosso olhar
consegue servir de pietà. O vento
teima em agitar uma ou outra pena,
mas não há golpe de asa que o arranque
agora ao asfalto negro.

Partilhamos, no fundo, a impotência:
o destino que o esmagou
é o mesmo que esperamos para
embarcar sem surpresas, sem direito a atrasos.
A essa indiferença cansada prefiro
a do outro pássaro que, lá muito em cima,
hoje ainda mais, refaz a traços negros
a vida. É por esses instantes
de voo que aceito continuar a perder.

*

COME RAIN OR COME SHINE

No fundo, é isto: espera-se.
Escrevemos incuravelmente
a história dessa espera, mas
nunca se chega ao fim da rua
mais escura do passado,
nem se despe por completo o luto,
sempre outros os mortos, sempre igual a si
a morte. A espera,

essa continua. Podemos
chamar-lhe agora expectativa,
tentarmos soletrar esperança.
Só que já não queremos tanto crescer
e, sinceramente, preferimos
adiar os destinos ambicionados,
compreendendo por fim Moosbrugger, para quem
a felicidade era a distância
mais comprida entre a prisão e o tribunal.

Esforçamo-nos por vencer a dor pela
exaustão, transformá-la num bicho
que se alimente de palavras e recuse as nossas festas.
Mesmo assim, espera-se. Com
as mãos cansadas e de olhos
teimosamente postos no amor,
abrimos a janela e deixamos
a luz entrar, compassiva,
abafando a chuva que cai sem dar tempo
aos pássaros de se abrigarem. Anotamos
a palavra sinal. Ou redenção. Não interessa,
o poema não deixa de ser o mesmo