Estou em
crer que nós, leitores, temos uma relação privilegiada com a solidão. A nossa
cultura, assustada com as aventuras e desventuras da caça, optou há muito pelo
caminho da segurança e da anestesia, em detrimento da liberdade e do prazer;
esta ortopedia do humano, ou antropotécnica, parece culminar numa tendência
unívoca de planificação e uniformização de toda a diversidade, fazendo-nos
temer que toda a beleza do universo regresse por fim à sua origem, à explosão
do Uno. Neste processo, a solidão tem perdido o seu carácter de capital
criativo e é cada vez menos cultivada: basta entrar numa qualquer carruagem de
metro e olhar os vários zombies frente a um ecrã, para nos apercebermos que de
que já somos cyborgs e que até as nossas relações connosco próprio foram já
mediatizadas. Em suma, e tendo a noção de que adopto um tom algo apocalíptico:
parecem andar todos apavorados com a solidão e nunca o caminho para o Ser foi
tão árido, pedregoso e de difícil acesso.
Gosto da
palavra solidão. Lembra-me um nome de planeta de outra galáxia. Gosto também da
sua tradução em espanhol – soledad –
e da sua invocação com um trago a saudade. E gosto do sentimento, sobretudo das
vezes em que o consigo habitar em plena concordância; a solidão é o barómetro
que uso para saber onde e como estou, o centro e o coração da minha existência.
Quando circulo por ela, como uma fera enjaulada, de movimentos impertinentes e
atrofiados, sei que não estou bem; nesses momentos, consigo ouvir a distância
que vai de mim a mim e garanto-vos que é das sensações mais angustiantes que me
acontecem. É como se toda eu estivesse derramada num solo estranho, alienígena,
sentido amplificadamente esse estado líquido, incapaz de me reunir ou reerguer.
Então, até o acto da leitura se me torna difícil, nenhum livro me consegue
agarrar e tudo se liquefaz nas minhas mãos e na minha cabeça.
Por isso,
não posso deixar de celebrar com redobrada alegria, cada vez que me acontece
concordar com a minha solidão. Aconteceu recentemente e a leitura deste tempo
de encontro e comunhão foi a de um livro que eu há muito desejava, sem saber
que já tinha sido escrito e que, para maior surpresa ainda, foi recentemente
traduzido e publicado por cá: O
homem-veado e a mulher-aranha, de Françoise Frontisi-Ducroux, um livro
precioso.
Combinando
múltiplas disciplinas, Frontisi-Ducroux, uma helenista francesa conhecida
sobretudo pelas suas investigações no âmbito da antropologia grega, oferece-nos
uma reflexão brilhante sobre a importância das noções de metamorfose e hibridez
nos mitos gregos e a sua respectiva representação visual na antiguidade.
“O
que é que acontece quando inopinadamente os homens se cruzam com os deuses, à
margem dos santuários erguidos para a comunicação regular, longe dos templos e
das estátuas, dos altares onde fumega o sangue dos sacrifícios, longe da
harmonia das preces e das procissões? […]
Os mitos gregos são ricos em tais acidentes e nas
suas consequências trágicas. Pais que cozinham a sua prole para celebrar e pôr
à prova um hóspede desconhecido. Mães em delírio, que abandonam a casa, que
despedaçam os filhos com as suas próprias mãos. Raparigas em pânico, desgrenhadas,
errando pelos campos fora. Uma ingénua deslumbrada, atingida pelo esplendor do
seu amante divino. Nunca é bom que um mortal se atravesse no caminho de um
deus. Frequentemente, o desfecho de tais encontros é a
metamorfose. No choque com o divino, o ser humano pode soçobrar, ser
bruscamente desviado da sua espécie, para se perder no animal, no vegetal, ou
imobilizar-se na pedra.[…]
Para os Gregos, tais aventuras pertencem ao tempo
dos mitos. Um tempo em parte findo, mas não inteiramente extinto. […] Evidentemente que os deuses se mostram com menos frequência do que nos tempos heróicos da Guerra de Tróia, ainda que em certos momentos críticos se verifique a sua intercedência, sobretudo quando a civilização se vê ameaçada pela barbárie. E, no dia-a-dia, quem se atreveria a jurar que o viadante estrangeiro, por breves instantes avistado no caminho, não era Hermes? Que Pan não despontará de um arbusto, ou que a muito querida criança que em vão se procurou por todo o lado não tenha sido raptada pelas ninfas? Quanto às metamorfoses... para as recusar em absoluto, não seria necessário crer firmemente na barreira das espécies."
A exploração do tema das metamorfoses gregas não é exaustiva;
Frontisi-Ducroux selecciona apenas as histórias que foram objecto de tratamento
figurativo, confrontando este tratamento com as diversas fontes escritas. A viagem
começa com o combate entre Peleu e Tétis, essa deusa humilhada, mãe de Aquiles,
oferecida a um homem por receio dos deuses da profecia de que o filho gerado
por ela seria mais poderoso de que o pai, mito que serve de modelo ao casamento.
Colateralmente, sabemos também das metamorfoses cíclicas das divindades
marinhas e de Métis, a deusa da astúcia, engolida pelo esposo, o grande Zeus
(os mitos cumprem a função de dar corpo aos fantasmas colectivos e estes dois
em particular falam-nos da ameaça feminina e de como os homens se devem
salvaguardar de gerar filhos mais poderosos e sobretudo de mulheres astutas).
Continuamos pelo conhecido episódio da feiticeira Circe,
domada pelo astuto Ulisses, pelo mito de Actéon, o caçador que se torna presa,
culpado por surpreender Artémis no banho, o transexual Tirésias e a sua
intervenção na disputa entre Zeus e Hera sobre quem tem mais prazer sexual
(Tirésias, tendo sido homem e mulher, esclarece que o prazer da mulher é nove
vezes superior ao do homem, o que vale um valente castigo por parte de Hera).
Os amores de Zeus com Calisto, Io, Europa, Leda, Ganímedes (a mais célebre
aventura das aventuras homossexuais do deus), Antíope, Dánae e Alcmena conhecem
obviamente um capítulo, que mais uma vez não se pretende exaustivo, pois o
grande deus era um grande sedutor como bem sabemos.
Um capítulo à parte trata da petrificação, recorrendo os mitos
de Medusa, Níobe e o último aborda a metamorfose numa perspectiva mais feminina,
através da fabulosa história de Procne, Filomela e Tereu, um mito de sororidade
e cumplicidade feminina de que nunca tinha ouvido falar e que, de um modo
marginal, me recordou Antígona. O feminino denota sempre um significante
ameaçador: a mulher está demasiado próxima da natureza e, como tal, sempre
pronta a resvalar para um estado selvagem, como exemplificam as Bacantes. É imperativo
que seja domesticada antes de se casar, que abandone para sempre este estado
selvagem para se dedicar à produção de filhos, que pertencem ao seu marido e
senhor e que devem portanto assemelhar-se a este. No entanto, nada garante que
a mulher não traia a sua família, preterindo-a à sua família de origem. Esta narrativa
é parente de outra, o mito de Aédon, Quélidon e Politecno, cuja hybris do casal a autora desmonta de
forma surpreendente.
E somos chegadas ao último mito, o de Aracne, essa magistral
tecelã que não se verga à submissão e modéstia feminina e desafia a deusa Palas
e que, embora se veja metamorfoseada em aranha, nos relembra de que, por vezes,
o talento humano é capaz de alcançar os píncaros da perfeição e do
arrebatamento divino.
Sem dúvida, um dos melhores livros publicados recentemente por
cá. Terminada a leitura, regresso à minha solidão. Não vale a pena ter tanto
pavor desta deusa – sem a sua influência, jamais gozaríamos de tão longos
banhos de imersão e deliciosas leituras.