Sozinha e tiritante, vou pelos
caminhos outonais. A mim, que queria apenas ser livre, a mim, que jamais quis
ir até às gentes ou que elas viessem ter comigo, a mim me mandaram ir ter com
os homens.
Sou a Virgem. E
dói um pouco. As aldeias vestem-se de azul para me receber em dias ocultos. As
pessoas não páram nunca de chegar, vindas de todos os lados. Chegam com
saltinhos leves e festivos, embora não possuam já pés nem nada que possa assemelhar-se,
e mergulham nessa atmosfera azul e imprudente que se apossa de tudo e todos. Ao
invés de ficarem cheias e sobrepovoadas, as aldeias dilatam-se como
gigantescos úteros, para acomodar todos.
Numa dessas
migrações carnavalescas, chega também José. Vem acompanhado por uma criança.
Uma menina magra, algo androgéna, algo sábia. Não se percebe quem cuida de
quem. Passo algum tempo com eles, numa praça com uma figueira, em secretas
ocupações; antes de partir, juntando-me a outro grupo, apercebo-me de que a
menina tem uma alma elástica e que, por isso, é de poucas falas.
Sigo agora
junto ao rio, com José. Estamos prestes a deixar a aldeia, rumo aos campos e abraço-o.
E esse abraço, que eu pretendia de paixão, congela-se num abraço estático de
estátuas, sem qualquer desejo. É o fim do amor e de uma era. Tenho medo de me
desfazer num montinho de pó e cinzas. É assim quando me abraçam e não me querem.
Mas sou a Virgem e, para me acudir, as árvores urdem um último estratagema, uma
última dança, estranha e belíssima, e tudo ao meu redor se transmuta em vidro. Até
o vento. Até o meu halo.
Graças às
árvores, sou capaz de continuar colina acima, acompanhada ainda por José e pela
estranha criança, que agora se junta a nós. Um silvano persegue-nos com os seus
passos subtis e selvagens. No topo da colina, um muro estreito, estreitíssimo. Proponho
à criança que o atravessemos e ela aceita jocosa, pois para além de ser também
ela muito estreita, tem como pés finas adagas. Demonstrando a facilidade do
desafio, a menina atravessa o muro e deita-se numa das suas extremidades. É a
minha vez, e não sei como hei-de fazer. Mas subitamente inspirada, ergo o meu
corpo numa acrobacia, pernas e braços flectidos em prece para os céus, e logo o
sol, apesar de ser de noite, encontra o seu caminho por entres as nuvens, apenas
para me iluminar, refractando a sua luz sobre mim, como sobre uma cúpula ou
redoma.
A menina continua deitada na
outra ponta do muro, levemente zombeteira, e então eu alço os pés (pois ainda
os possuo, sujeita que estou aos desvarios da carne) e alcanço o outro lado do
muro, incólume. Porém, ao chegar ao outro lado, tão contente me sinto, que
decido não pousar. Pairar e bailar no ar é uma das minhas proezas desde sempre,
mas jamais me atrevi a fazê-lo na presença de terceiros, por não querer causar
espanto. Afinal, trata-se de uma empresa fácil e deliciosa – basta assumir-se a
posição corporal da Virgem e dar o impulso certo ao corpo e podemos estar nisso
horas e horas, sem pousar os pés no solo. Que levitar requer esforço é uma
grande ilusão; o contrário, não-levitar, sim, é que requer esforço.
Continuo a pairar. A minha mãe
também está e, por breves momentos, percebe como fazer e ri-se à medida que se
ergue pelos ares. Somos agora duas Virgens ridentes. Mas logo algo – uma mancha
branca informe – começa a agitar os matos em redor. Eu olho e torno a olhar e
não consigo distinguir nada. Olho e desejo com temor que essa mancha branca,
cada vez mais ruidosa, se revele. Mas nada. Existem mistérios vedados até para
uma Virgem. Apavorada, dou a mão à menina e a José, e corremos colina abaixo, enquanto
a mancha sacode ervas e árvores impiedosamente.
Sou a Virgem. Do tremor que a
agita as árvores, chega-me ora a beleza – sob a forma de um vento vítreo –, ora
o pavor – sob a forma de uma mancha branca. Vivo entre martírios e êxtases desde
que tomei o hábito marcial.