Holz [madeira, lenha] é um nome antigo
para Wald [floresta]. Na floresta [Holz] há caminhos que, o mais das vezes
sinuosos, terminam perdendo-se, subitamente, no não-trilhado.
Chamam-se caminhos de floresta [Holzwege].
Cada um segue segue separado, mas na mesma floresta [Wald]. Parece, muitas vezes, que um é
igual ao outro. Porém, apenas parece ser assim.
Lenhadores e guardas-florestais conhecem os caminhos. Sabem o que
significa estar metido num caminho de floresta.
Martin Heidegger, Caminhos
de Floresta
Uma das temáticas centrais da
literatura sufi é o amor espiritual entre Deus e o homem. Amor e conhecimento
alimentam-se mutuamente, são complementares. Não se trata de um amor humano,
carnal, mas sim de uma energia criativa. Como toda a textologia do mundo nos
ensina, o indizível, o transcendental, jamais podem ser enunciados directamente; a aproximação ao
mistério só se pode fazer pelo caminho da alegoria, pela floresta de símbolos. Para
abordar o amor divino, os sufis escolheram então transmutar o vocabulário da
antiquíssima poesia erótica árabe. Como a «Essência» divina é uma palavra
feminina em árabe, os sufis atribuem sobretudo nomes femininos para evocar o
seu amor a Deus. O pronome mais usado é Layla,
a Nocturna. Esse nome evoca Deus enquanto ser feminino, ser misterioso, que se
vela e revela em simultâneo. O Corão sublinha em várias passagens o facto de o
dia penetrar a noite, e vice-versa. Ibn Arabi, filósofo e místico sufi usa o
mesmo motivo para compor um símbolo sexual a nível cósmico (a noite fecunda o
dia, assim como o céu fecunda a terra, o espírito a alma, Adão a Eva, Deus ao
profeta e o profeta a sua mulher). É preciso atravessar a noite. Depois da
viagem para Deus, o homem viaja em Deus e essa é uma viagem às escuras, pois
não existe mais alto nem baixo, direita ou esquerda, homem ou mulher. A noite é
o mistério essencial. Este mesmo motivo, transmitido por místicos judeus espanhóis, terá inspirado a São João da Cruz o tema da «noite escura da alma».
Tem
razão William Burroughs quando afirma THE WORD IS A VIRUS. Somos meros
hospedeiros de palavras e ideias que viajam e atravessam as fronteiras do tempo
e do espaço, às vezes de dia, por estradas largas e confortáveis, outras vezes
de noite, por vielas clandestinas e mãos de contrabandistas. Os homens morrem e
são esquecidos; as ideias não conhecem o mesmo destino, conseguem manter-se
vivas mesmo se dormentes e agigantam-se a cada nova travessia.
A
contemporaneidade quer impedir esse crecimento vital das ideias, buscando
despir as figuras essenciais da vida da sua ambivalência intrínseca. É um
projecto com raízes antigas, judaico-cristãs, platónicas: aferrar-se aos
binarismos, querer fronteiras que garantam a razão e a segurança, caminhar com
o alto e o baixo, a direita e a esquerda. A melancolia, longamente estudada por
mais de dois milénios, foi medicalizada como «depressão», e a «noite escura» reduziu-se
a uma perda de ânimo da alma, uma crise de fé. Na floresta dos símbolos,
importa mais caminhar arqueologicamente, às arrecuas: ir de São João da Cruz aos
sufis e remontar a essa antiquíssima poesia erótica árabe e perceber que quem
perde o Sul está fazendo amor com um deus nocturno.