domingo, 19 de outubro de 2008

Debaixo do mesmo céu


Conseguia ver-se uma ampla planície do Alentejo, com um sobreiro, glorioso na sua solidão, a suportar o quebrado pôr-do-sol violeta, que inundava a alma de Elisa, de fantasmas antigos e saudade, sentada de olhos fitos no horizonte, num poial de pedra branca e gelada.


Com a mão esquerda ia pescando punhados de terra que levava à boca de modo intermitente, e observava aquele sobreiro, que sabia-se lá há quanto tempo ali estaria, olhava o seu tronco rugoso acastanhado e os seus braços esguios semi-cobertos pela doença da cortiça, o ténue verde da sua copa e angustiava-se no pensamento de que aquela árvore lhe sobreviveria, tentando descortinar o segredo da sua longevidade.

Aquela árvore fora testemunha de várias espécies que por aquelas terras passaram e permanecia sólida na sua certeza altiva de que todos passariam menos ela. Elisa ia comendo compulsivamente terra, procurando a comunhão com aquele ente que ela suspeitava ser Deus, testemunha da progressiva degradação da espécie humana. Provavelmente, remontava ao tempo dos dinossauros, e um dia a última matriarca dessa raça há muito extinta também contemplara a árvore e percebera pelos insanos raios violetas que a atravessavam, que nada era capaz de deter o curso do mundo, que o seu ventre se tornara infértil e que aquela paisagem era um prenúncio de viragem.

Quanto tempo passara? Há quanto tempo estava ela ali, gelada numa presença espectral de estátua? Qual era o seu nome? Donde viera e que história era a sua? Olhou em pânico para as suas mãos secas e pareceu-lhe que também estas eram de madeira, pousadas sobre um regaço húmido com cheiro a terra molhada, devassada pelo labor das charruas e dos bois.


Tinha contemplado por demasiado tempo – quanto tempo, ao certo? – o sobreiro, que acabara por assimilar em si a sua natureza insuspeita de árvore. Tentou levantar-se mas não era possível, os seus pés haviam-se convertido em raízes, como tentáculos teimosos ancorados no centro da terra, tentou gritar mas não soube mais que nome evocar – esquecera aliás todas as palavras. Acabou por se acalmar, afinal toda a história fora apagada e saboreou o último rasgo amarelo violeta daquela tarde.


Preparou-se para uma longa noite de silêncio e imutabilidade e, antes da escuridão abraçar a paisagem, olhou de relance para o seu companheiro solitário, na outra extremidade do horizonte, com um tom de desafio e pensou “Agora somos só tu e eu”. Foi este o seu último pensamento. Houve ainda um breve instante em que se imaginou uma árvore exótica – uma palmeira, por certo! – a destoar numa paisagem frugal e quieta.


De ora em diante, ficou por ali, debaixo de sóis violentos, chuvas miudinhas, orvalhos pesados, acolhendo pássaros ensonados em noites primordiais e abrigando homens cansados na sua sombra de verão. Sem pensamentos, nem sentimentos de saudade. Ali, apenas. Sem ponta de inveja pela outra árvore. Havia bastante espaço para ambas e uma eternidade para apreender a sua distância. Debaixo do mesmo céu.

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