segunda-feira, 31 de maio de 2010
Canção da Inocência Perdida
1
O que a minha mãe dizia
Não pode ser bem verdade:
Que uma vez emporcalhada
Nunca passa a sujidade.
Se isto não vale pra a roupa
Também não vale pra mim.
Que o rio lhe passe por cima
Breve fica branca, assim.
2
Como qualquer pataqueira
Aos onze anos já pecava.
Mas só ao fazer catorze
O meu corpo castigava.
A roupa já estava parda,
No rio a fui mergulhar.
No cesto está virginal
C'mo sem ninguém lhe tocar.
3
Sem ter conhecido algum
Já eu tinha escorregado.
Fedia aos Céus, como uma
Babilónia de pecado.
A roupa branca no rio
Enxaguada à roda, à roda,
Sente que as ondas a beijam:
«Volta-me a brancura toda».
4
Quando o primeiro me amou
Abracei-o eu também.
Senti no ventre e no peito
Ir-se a maldade pra além.
Assim acontece à roupa
E a mim acontecerá.
A água corre depressa,
Sujidade diz: Vem cá!
5
Mas quando os outros vieram
Um ano mau começou.
Chamaram-me nomes feios,
Coisa feia agora sou.
Com poupanças e jejuns
Nenhuma mulher se acalma.
Roupa guardada na arca,
Na arca se não faz alva.
6
E veio depois um outro
No ano que se seguiu.
Vi que me fazia outra
Com o tempo que fugiu.
Mete-a na água e sacode-a!
Há sol, cloreto e vento!
Usa-a, dá-a de presente:
Fica fresquinha a contento.
7
Bem sei: Muito pode vir
'Té que nada por fim. fica.
Só quando ninguém a usa
A roupa se sacrifica.
E uma vez que apodreça
Nenhum rio a embranquece.
Leva-a consigo em farrapos.
Um dia assim te acontece.
Bertold Brecht
sábado, 29 de maio de 2010
INGEBORG BACHMANN (1926-1973)
Terra de névoa
No Inverno a minha amada
está com os bichos na mata.
Que eu tenho de voltar antes do dia,
a raposa sabe-o e ri.
Tremem tanto estas nuvens! E
na minha gola de neve cai
uma cama de gelo quebrado.
No Inverno a minha amada
é uma árvore entre as árvores e
convida aos belos ramos
os corvos abandonados da sorte. Sabe
que o vento, ao anoitecer, lhe levanta o
vestido hirto de noite e geada,
e me leva para casa.
No Inverno a minha amada
Vai silenciosa com os peixes.
Servindo as águas, movidas adentro
pelo o fio das barbatanas,
eu fico na margem e vejo-a
mergulhar e revirar,
enquanto os gelos não me expulsam.
E de novo, ao embate do grito
da ave que me ampara
com a asa, desabo
num campo aberto: a amada depena
as galinhas e atira-me
uma clavícula branca. Ponho-a ao pescoço
e afasto-me por entre a penugem amarga.
Infiel é a minha amada,
eu sei que às vezes flutua
de saltos altos até à cidade,
beija nos bares com a palhinha
os copos profundamente na boca
e vêm-lhe palavras para todos.
Mas eu não percebo o idioma.
Vi terra de névoa.
Comi coração de névoa.
uma espécie de perda
Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma
cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,
gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.
E estendemos sempre a mão.
Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por
Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma
cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um aponta-
mento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor
mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
Não te perdi a ti,
perdi o mundo.
O Tempo Aprazado
Vêm aí dias difíceis.
O tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.
Em breve terás de atar os sapatos
e recolher os cães nos casais da lezíria,
pois as vísceras dos peixes
arrefeceram ao vento.
Mortiça arde a luz dos tremoceiros.
O teu olhar abre caminho no nevoeiro:
o tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.
Do outro lado enterra-se-te a amante,
a areia sobe-lhe pelo cabelo a esvoaçar,
corta-lhe a palavra,
impõe-lhe silêncio,
acha-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.
Não olhes em volta.
Ata os sapatos.
Recolhe os cães
Lança os peixes ao mar.
Extingue os tremoceiros!
Vêm aí dias difíceis.
A verdadeira poesia
segunda-feira, 17 de maio de 2010
"O ventre das mulheres contém sempre uma criança ou uma doença" - Celine
vestem-se as dores
nos bastidores da minha memória
esta é a puta
que estendeu a mão
após descruzar as pernas
esta é a ingénua
não estendeu a mão
após descruzar as pernas
esta é a nostálgica
traz a mão estendida
nunca descruzou as pernas
despem-se as dores nos
bastidores da minha memória
&
a puta que me pariu era a mais linda da rua formosa
eu saí a ela deve ser por isso que mal sorrio os homens perguntam
quanto é
e eu não é nada a puta que me pariu pôs-me a estudar e eu agora
só sorrio e é tudo de graça
e a seguir mostro-lhes o rabo e a seguir as pernas e ponho-me a andar
deixo-os de corpo a abarrotar
de tralha
&
um homem geme porque
o corpo da mulher que recusa
se enrosca e
a recusa é doce e um homem geme
enquanto a mulher se ausenta
estica o corpo até às nuvens
enfia os dedos no ânus das nuvens e
está frio na ponta dos seus dedos então
a mulher cose as nuvens umas às outras
monta um carrossel para se aquecer
e disse tomai os meus vestidos enfiai-os que não os quero mais
e empinou o corpo
finalmente a mulher remata o homem enrosca-se então
&
hoje vou com aquele que me levar
e se for uma mulher
vou com as suas mãos que remendam
e não substituem
e se for um homem
vou com as suas mãos que remendam
e não substituem
e se ninguém houver
vou com ninguém que me leva sempre
para onde não quero
e vou com as suas mãos que substituem não remendam
é por isso que à noite
espreito para a janela dos comboios
e cumprimento-me timidamente
Bénédicte Houart
domingo, 16 de maio de 2010
MULHER AO MAR
ANIVERSARIO
Há tanto tempo eu
trazia um vestido curto nós
subíamos as escadas eu
à frente sem reparar deixava
as pernas ao desamparo do teu
agrado, tínhamos bebido ao meu
futuro e era uma fuga o teu
presente um disco que me deste
reluzia em semi-círculo e a nós
excitava seriamente escapar eu
fazia vinte anos tu
relanceavas-me as pernas eu
abandonava a adolescência
nem olhara para trás tu
miravas-me as pernas de trás. Nós
subíamos ao telhado eu
trazia um vestido curto nós
estávamos tristes creio tu
fingias-te um sátiro e nós
subíamos ao telhado desarmados.
O tambor do sol batia
nos olhos que a luz e o álcool e a luz
e o álcool diminuíam
e os branco raiavam o solstício
incandescentes eu
fazia vinte anos tu
tinhas-me dado uma música eu
rodava-a na mão e o sol
girava no gume do metal eu
de vestido curto descrevia
um círculo de desejo nós
estávamos tristes creio nós
tínhamos subido e a crista
das telhas beliscava na pele
petéquias de luz e tu
ao disco do sol dançavas e eu
de olhos cegos espiava fazia calor nós
tínhamos bebido e tínhamos calor eu
já tinha vinte anos nós
éramos o grande amor.
-"Mulher ao Mar"- Margarida Vale de Gato
sexta-feira, 7 de maio de 2010
quarta-feira, 5 de maio de 2010
Full of romantic hopes, I shall place my head in the oven as well
"I have a lot to give someone, someday. But I must not be too Christian. I can only end up with one, and I must leave many lonely by the wayside. So that is all for now. Perhaps someday someone will leave me by the wayside. And that will be poetic justice.
(...)
Click-click: tick-tick
Clock snips time in two
Lap of rain
In the drain pipe
Two o’clock
And never you.
Never you, down the evening,
I cannot
Cry, or even smile
Acidly or bitter-swetly
For never you and incompletely.
Things surround me;
I could touch
Soap or toothbrush
Desk or chair.
Never mind the three dimensions
All is flat and you not there.
Letters, paper, stamps
And white. And black.
Typewritten-you, and there
It is.
The trickle, liquid trickle
Of rain in drain-pipe
Is voice enough
For me tonight.
And the click-click
Hard quick click-click
Of the clock
Is pain enough,
Enough heart-beat
For me tonight.
The narrow cot,
The iron bed
Is space enough.
To bed and sleep
And tearless creep
The formless seconds
Minutes hours
And never you
The raindrops weep
And never you
And tick-tick,
tick-tick
pass the hours."
The Journals of Sylvia Plath 1950-1962
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