sábado, 30 de abril de 2011

Bolero de Ravel





Há dias em que não acredito na psicologia humana. Dói-me a cabeça. Muito. Nunca ninguém saiu daqui curado. Na minha frente, um paciente. Uma rapariga ou mulher, não sei ao certo, que se queixa de pânico. Preciso de ter paciência e não pacientes. Penso que lhe digo:


Não sei que dizer, menina – o melhor seria perguntar a Deus. Eu sou apenas um homem num dia mau com uma dor de cabeça enorme.


Em vez disso, digo:
Há quanto tempo tem ataques de pânico?


Ela, obediente, responde que há oito anos. Oito anos é muito tempo. Há oito anos que a minha mulher anda a foder o professor assistente do meu departamento na faculdade.

Conte-me a primeira vez.


A primeira vez deles foi no nosso quarto conjugal. Ela diz que andava pelas ruas quando de repente tudo lhe pareceu paisagem cartonada. Como no Truman Show, penso. Diz que os rostos perderam a humanidade.


Perderam a humanidade como? Explique isso melhor.

Oiço-a dizer nos bastidores da minha dor de cabeça que é difícil explicar, é uma coisa da ordem da sensação. Como dar um testemunho da dor através das palavras? As palavras são traiçoeiras, enredam-nos em asfixias que nos matam lentamente. Devia divorciar-me. Porque não me deixa ela? Não entendo. Ela tenta explicar: por detrás dos rostos não havia nada, eram máscaras arquitectadas de carne sem entranhas, por dentro nada, nem vísceras. Bombas-relógio.

Olho para ela. Pela primeira vez. Já não é uma menina mas ainda não é uma mulher. Está perdida e assustada. Tem medo dela, tem medo do mundo. Ela viu qualquer coisa. Viu o real sem aquilo a que os antigos chamavam o véu de Maya. De súbito, apetece-me levantar da cadeira, esquecer a posição frágil de doutor onde enterrei a minha juventude e todas as esperanças, pegar-lhe na mão frágil e dizer:


A menina dança?


E girar por este consultório, falso como toda a mobília do mundo, ao som de um bolero de Ravel nunca composto. Dizer-lhe,

Não tenha medo, você foi salva! Foi salva pelo pânico! Viu! Agora sabe. Vá-se embora, não há nada de errado consigo. Vá, tente fazer o melhor que puder, sabendo que a festa não virá! Só esta dança.


Mas não posso. Refreio a vontade das pernas. Não posso. Estarei eu a enlouquecer? Os dias inteiros a aturar pantanas, a fazer cara de quem já não se espanta e, no fundo, todos os dias quando ponho os pés fora da cama me espanto por isto, a realidade, não se desconjuntar. A dela desconjuntou-se, tão nova, talvez assim as coisas possam correr pelo melhor, não sei, eu não sei, e deus? deus saberia?

Reparo nos seus olhos miúdos que suplicam uma reacção minha – é só isto que a vida nos permite: reagir? e digo:


Pois talvez alguma medicação possa ajudar. Anti-depressivos. Ansioliticos. E hipnóticos em SOS.


E a mim quem me salva? A mão escreve veloz a receita como quem acelera daqui para fora. Para fora deste contexto doutor-paciente em que o mundo nos atrasa a ambos num compasso de solidão. Talvez seja apenas um dia mau. É preciso paciência. Aperto a mão dela, tão frágil e magra, ensaio um sorriso profissional – Deus se sorrisse, como seria?, e digo,


As melhoras e até à próxima.


Como quem diz,


Até amanhã e esta guerra não fui eu que a criei.

um casal ventoso



Corpo e Cabeça nunca tiveram os mesmos interesses e há muito que esqueceram o propósito da sua união. Raramente se põem de acordo e pontuam as noites com desacordos e insultos. A Cabeça é uma esposa dedicada, ocupa os dias com a alimentação, limpeza e defecação do Corpo. Não é, no entanto, apaixonada. O mais das vezes, é ouvi-la andar pelas divisões de sua casa resmungando que seria mais feliz longe dos hábitos e rotinas do Corpo. Nunca partiu, porém.



Perante as contínuas guerras domésticas do casal, os vizinhos não conseguem chegar a um consenso. Uns dizem que a culpa é da Cabeça que a todo o instante trai o corpo com as ideias dos outros. E quem sofre, é o pobre do Corpo! Mas, reclamam outros, o Corpo também trai a Cabeça com outros corpos, toda a gente sabe. Pois, replicam outros, mas volta para casa na mesma noite. Ou de manhã. Adormece a cantarolar satisfeito enquanto a Cabeça gira em torno de mais uma insónia, as mãos apertando a culpa.

MULHER, ESSA FOME DE IMPOSSÍVEIS...



Numa digressão pelos corredores da biblioteca onde a minha adolescência criou raízes encontrei o livro de Hector Abad Faciolince, Receitas de Amor para Mulheres Tristes. Li-o numa hora, intimada não pela falta de afectos amorosos nem pela tristeza, mas por ter uma capa bonita, ter sido traduzido pelo Pedro Tamen e, sobretudo, porque nele se publicitava a sabedoria de um homem que conhece o «feminino» em profundidade.


Ora eu, que pertenço ao sexo feminino por outorgação biológica e cultural, muito tenho debatido comigo na minha solidão e com algumas amigas empenhadas em estudos feministas sobre as chamadas questões das mulherzinhas. E isto sem saber nada do feminino em profundidade, mas sentindo-o muito profundamente. Na pele, que é onde mais nos sentimos e doemos.

Até hoje cheguei apenas à conclusão de que a mulher é um dos enigma da cultura e que eu própria sou uma mulher-enigma. Explico melhor. Mulher-enigma, mulher que passa o tempo a meditar em si, com o corpo ocupado por um problema. Um corpo-problema parasitado pelo pensamento que se devora do avesso. Ser mulher é hospedar um problema que afecta os gestos, os afectos, as palavras. Um problema criado para além da possibilidade da solução. Um problema que me ultrapassa e me dispensa até, por vezes.


Por isso, se antes me empenhava em responder aos argumentos feministas dizendo que quando seguia pela rua nos dias ordinários não me recordava como mulher mas como ser, hoje revi essa postura, sobretudo acicatada pela indignação e pela ira (que como já disse, são os afectos mais femininos que trago em mim) e digo: não sou uma mulher, sou um problema.


Convidada pela apregoada sabedoria do autor, entrei então pelo livro com toda a credulidade e inocência. E alguma ironia também, confesso. Afinal a ideia de que é preciso vir um homem para nos iluminar persiste e isso faz-me sorrir travessamente.

A prosa elegante e suave seduziam-me com acenos domésticos e sensuais. Gostei particularmente da comparação dos fluidos femininos a clara de ovo:


«Deixa-te guiar pelo manso marulhar das sensações, conhece os atalhos do teu corpo, que tudo se humedeça com o seu líquido fresco, e não penses, não penses muito, porque nada seca tanto o ventre como o pensamento. Olha, tu sabes de que humidades te estou falando; das mais desejadas, dessas que como claras de ovo se te escondem no corpo e que são o deleite do teu companheiro. Não temas derreter-te, desidratar-te, dissolver-te. Deixa-te ir, não penses, quero ouvir um gemido de corpo inteiro, um alarido de poros abertos. Abre, abre até te partires, submerge-te no mar das sensações, perde-te, solta o freio, desata-te, permite-te ser toda, por momentos, uma perdida.» (p.46)

Notável. Mas a ironia persistia. Com travos culinários. Já tenho a minha cota de perdida. As tripas e o coração seguiam intactos pelas páginas. A certa altura, o autor escreve:


«Como hás-de acreditar naquele que diz que gosta de ti?
(…) à falta de um método infalível, aí vai o velho conselho matemático: deve-se acreditar em metade da metade. Se depois desse par de divisões ficar de pé uma chamazinha de luz, começa a acreditar nele, mas não te esqueças: os homens são cobardes a amar.» (p. 96)

Foi aqui neste momento e com esta banalidade, confesso, que ele ganhou o meu respeito. Porque os homens são mesmo cobardes a amar; na literatura, como na vida, é sempre pela mão feminina que se ousa a grande aposta. É verdade que também é essa mesma mão que depois paga a factura trágica, num catálogo memorável de fatalismos e suicídios ridículos. Pela coragem, as mulheres conquistaram o estatuto das grandes vítimas históricas da ideia de amor, não perdendo jamais a inspiração. Há beleza nisto, digo eu.

Mais adiante, desfeito o sorriso travesso, na página 64 eis-me completamente rendida ao senhor:

«Essa tendência para traíres, para mentires – e para seres perfeitamente franca. Para te esconderes – ou para te mostrares muito. Esse cuidado de te preservares tanto – para acabares a contar a tua história, a tua verdade, com todos os pormenores, a um desconhecido. Essa vontade de fugires, de saíres a correr quando alguém mostra que começa a conhecer-te, embora não te reveles, e essa vertigem de ficares. Essa indomável sede de alguém – e de não estares com ninguém. Essa fome de impossíveis. Como pensar no meio desta confusão contraditória? É verdade e mentira, está bem e está mal, e não há saída.
Nada a fazer. Toma um copo de água.» (p.64)


Esta passagem tocou-me particularmente, nela revi as minhas ansiedades e contradições. Fiquei mais sossegada porque me senti mais acompanhada. Para esta fome de impossíveis, o autor não apresenta receita nem remédio. Não existe cura para a beleza mas existem paliativos para atenuar a dor que sempre fica como rasto: um copo de água porque Faciolince desaconselha o uso imoderado de álcool.

O whisky, segundo o autor, favorece sentimentos opostos, alimentando o engano e a credulidade. As suas misturas amarelas não convêm ao peito na aflição. Contudo, se for de single mat e de águas escocesas ou da Irlanda, a mulher pode tomar dois decilitros. Mas apenas quando se vir na obrigação de mentir despudoradamente; «o whisky dá uma cara tão dura que facilita a mentira. Mais séria que qualquer trampolineiro, parecerás de gesso, e todos acreditarão em ti» (p.53). As aguardentes, líquidos traiçoeiros pela semelhança com a água, são de evitar. Resta o vinho e a cerveja, bebidas benignas e sãs. E o rum das Antilhas, que aquece e é de bom gosto. Com gelo e algumas gotas de limão revela os seus melhores atributos.


De acordo com esta avaliação, parece que me tenho andado a envenenar. Nada a fazer, respondo eu deste lado: A vida! a saúde! o dinheiro! o corpo! tudo! para seja belo! É esta a minha aposta: aposto na vida e na beleza e aceito pagar o preço. Porque a beleza me deixa sempre em apuros e aflições mas decido que o prazer vale a despesa. Com as palavras de Rimbaud em mente, canto com coragem:



«Ó meu Bem! Ó meu Belo!
(…)
Isto começou com risos de criança, em risos de criança há-de acabar.
(…)
Temos fé no veneno. Sabemos dar a nossa vida inteira todos os dias. Este é o tempo dos ASSASSINOS.»



Não estou para poupanças: a vida é para gastar todos os dias, sem folgas nem férias. Estou em crise, é verdade, mas ainda estou viva. Mais viva que morta. E com os dentes todos. Para um riso grande e franco.

sábado, 16 de abril de 2011

O APOGEU DE MISS JEAN BRODIE



«“Miss Jean Brodie diz que o apogeu é melhor”, disse Sandy.

“Pois, mas ela nunca se casou como as nossas mães e os nossos pais.”

“Eles não têm apogeus”, disse Sandy.

“Têm relações sexuais”, disse Jenny.

As meninas fizeram uma pausa, porque isto por enquanto era um pensamento assombroso e sobre o qual só recentemente se fizera luz para elas; a própria frase e o seu significado eram novidade. Era mesmo inacreditável. Depois, Sandy disse: “Mr. Lloyd teve um bebé na semana passada. Deve ter praticado sexo com a esposa”. Esta ideia era mais fácil de encarar e elas riram-se estridentemente, cobrindo a boca com os guardanapos de papel cor-de-rosa. Mr. Lloyd era o professor de Arte das raparigas no secundário.

“Consegues ver isso a acontecer?”, segredou Jenny.

Sandy contraiu os olhos, tornando-os ainda mais pequenos, no esforço de ver mentalmente. “Ele tinha o pijama vestido”, segredou por sua vez.

As raparigas sacudiram-se de riso, pensando em Mr. Lloyd, que era maneta, fazendo a sua entrada solene na escola.

Depois Jenny disse: “É uma coisa que se faz num impulso momentâneo. É assim que acontece.”

Jenny era uma fonte de informações de confiança, porque uma rapariga que era empregada na mercearia do pai dela aparecera grávida recentemente, e Jenny captara alguns fragmentos do rebuliço que se seguira. Tendo confidenciado as suas descobertas a Sandy, deram ambas início a uma série de pesquisas a que chamaram ‘pesquisa’, ligando entre si indícios que recordavam de conversas ouvidas ilicitamente e excertos de grandes dicionários.

“Acontece tudo num abrir e fechar de olhos”, disse Jenny. “Aconteceu à Teenie quando ela andava a passear em Puddocky com o namorado. Depois tiveram de se casar.”

“Dir-se-ia que o ímpeto já devia ter passado no momento em que ela despiu a roupa”, disse Sandy. Por “roupa” ela queria sem dúvida referir-se a cuecas, mas “cuecas” era grosseiro neste contexto científico.

“Sim, é isso que eu não consigo compreender”, disse Jenny.»

sábado, 9 de abril de 2011

A REVOLUÇÃO VIRÁ DOS AMANTES


Em todas as esquinas da cidade nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga um cartaz denuncia o nosso amor Em letras enormes do tamanhodo medo da solidão da angústia um cartaz denuncia que um homem e uma mulher se encontraram num bar de hotel numa tarde de chuva entre zunidos de conversa e inventaram o amor com carácter de urgência deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternurae souberam entender-se sem palavras inúteis Apenas o silêncio A descoberta A estranheza de um sorriso natural e inesperado Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente Embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta de um amor subitamente imperativo Um homem uma mulher um cartaz de denúncia colado em todas as esquinas da cidade A rádio já falou A TV anuncia iminente a captura A policia de costumes avisada procura os dois amantes nos becos e avenidas Onde houver uma flor rubra e essencial é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo É preciso encontrá-los antes que seja tarde Antes que o exemplo frutifique Antes que a invenção do amor se processe em cadeia Há pesadas sanções paras os que auxiliarem os fugitivos Chamem as tropas aquarteladas na província convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva Todos Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências O perigo justifica-o Um homem e uma mulher conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-losantes que seja demasiado tarde e a memória da infância nos jardins escondidos acorde a tolerância no coração das pessoas Fechem as escolas Sobretudo protejam as crianças da contaminação Uma agência comunica que algures ao sul do rio um menino pediu uma rosa vermelha e chorou nervosamente porque lha recusaram Segundo o director da sua escola é um pequeno triste Inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão Aplicado no entanto Respeitador da disciplina Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado e submetido a um tratamento especial de recuperação Mas é possível que haja outros. É absoIutamente vitalque o diagnóstico se faça no período primário da doença E também que se evite o contágio com o homem e a mulher de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade Está em jogo o destino da civilização que construímos o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos a verdade incontroversa das declarações políticas Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários precisamos da sua experiência onde quer que se escondam ao temor do castigo Que todos estejam a postos Vigilância é a palavra de ordem Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil não precisam de dar o nome e a morada e garante-se que nenhuma perseguição será movida nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio comissões de vigilância. Está em jogo a cidadeo país a civilização do ocidente esse homem e essa mulher têm de ser presos mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da correspondência Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente espreitam a rua pelo intervalo das persianas beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna É preciso encontrá-los É indispensável descobri-los Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater É possível que cantem Mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz Lhe lembravam a infância Campos verdes floridos Água simples correndo A brisa nas montanhas Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior Mas caminhou cantando para o muro da execução foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele um misterioso halo de uma felicidade incorrupta Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boîtes com orquestra privativa Não estarão nunca aí Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece A identificação é fácil Onde estiverem estará também pousado sobre a porta um pássaro desconhecido e admirávelou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa Será então aí Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa Um tiro no coração de cada um Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da mulher Mais ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto Quer dizer que fostes contagiados Que estais também perdidos para nós É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronteo tiro indispensável Não há outra saída A cidade o exige Se um homem de repente interromper as pesquisas e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão já sabeis o que tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja matai-o Mesmo que tenha comido à vossa mesa e crescido a vosso lado matai-o Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea e deslizem depois numa tristeza líquida até ao fim da noite Evitai o apelo a prece derradeira um só golpe mortal misericordioso basta para impor o silêncio secreto e inviolável Procurem a mulher e o homem que num bar de hotel se encontraram numa tarde de chuva Se tanto for preciso estabeleçam barricadas senhas salvo-condutos horas de recolher censura prévia à Imprensa tribunais de excepção Para bem da cidade do país da cultura é preciso encontrar o casal fugitivo que inventou o amor com carácter de urgência Os jornais da manhã publicam a notícia de que os viram passar de mãos dadas sorrindo numa rua serena debruada de acácias Um velho sem família a testemunha diz ter sentido de súbito uma estranha paz interior uma voz desprendendo um cheiro a primavera o doce bafo quente da adolescência longínqua No inquérito oficial atónito afirmou que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte e caminhavam envoltos numa cortina de música com gestos naturais alheios Crê-seque a situação vai atingir o climax e a polícia poderá cumprir o seu dever Um homem uma mulher um cartaz de denúncia A voz do locutor definitiva nítida Manchetes cor de sangue no rosto dos jornais É PRECISO ENCONTRÁ-LOS ANTES QUE SEJA TARDE Já não basta o silêncio a espera conivente o medo inexplicado a vida igual a sempre conversas de negócios esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de automóveis Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado ou marinheiro em terra a afogar a distância no corpo sem mistério da prostituta anónima Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas constroem com urgência um universo do amor E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los Importa perguntar em que rua se escondem em que lugar oculto permanecem resistem sonham meses futuros continentes à espera Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice abrigo fraternal deixam correr o tempo de sentidos cerrados ao estrépito das armas Que mãos desconhecidas apertam as suas no silêncio pressago da cidade inimiga Onde quer que desfraldem o cântico serenorasgam densos limites entre o dia e a noiteE é preciso ir mais longedestruir para sempre o pecado da infânciaerguer muros de prisão em circulos fechadosimpor a violência a tirania o ódio Entretanto das esquinas escorre em letras enormes a denúncia total do homem e da mulher que no bar em penumbra numa tarde de chuva inventaram o amor com carácter de urgência COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidadeo nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as saídasencerramos o aeroporto patrulhamos os caishá inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de ferro É na cidade que é preciso procurá-los incansavelmente sem desfalecimentos Uma tarefa para um milhão de habitantes todos são necessários todos são necessários Não sem preocupem com os gastos a Assembleia votou um crédito especial e o ministro das Finanças tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação Pública Depois das seis da tarde é proibido circular Avisa-se a população de que as forças da ordem atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja depois daquela hora Esta madrugada por exemplo uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia um marinheiro grego que regressava ao seu navio Quando chegaram junto dele acenou aos soldados disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do Peloponeso O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as desculpas do Governo pelo engano cometido Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer Todos compreenderam que não era caso para um protesto diplomático e depois o homem e a mulher que a policia procura representam um perigo para nós e para a Grécia para todos os países do hemisfério ocidental Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida sujo insignificante e porventura bêbado SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a mulher Escondidos em qualquer parte da cidade Repete-se é indispensável encontrá-los Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante recompensa destinada a quem prestar informações que levem à captura do casal fugitivo Apela-se para o civismo de todos os habitantes A questão está posta É preciso resoIvê-lapara que a vida reentre na normalidade habitual Investigamos nos arquivos Nada consta Era um homem como qualquer outro com um emprego de trinta e oito horas semanais cinema aos sábados à noite domingos sem programa e gosto pelos livros de ficção cientifica Os vizinhos nunca notaram nada de especial vinha cedo para casa não tinha televisão,deitava-se sobre a cama logo após o jantar e adormecia sem esforço Não voltou ao emprego o quarto está fechado deixou em meio as «Crónicas marcianas»perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade à saída do hotel numa tarde de chuva O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer que se trata de uma rapariga até aqui vulgar Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota Gostava de gatos dizem Mas mesmo isso não é certo Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da gerência era bem paga e tinha semana inglesa passava as férias na Costa da Caparica. Ninguém lhe conhecia uma aventura Em quatro anos de emprego só faltou uma vez quando o pai sofreu um colapso cardíaco Não pedia empréstimos na Caixa Usava saia e blusa e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu Esperam por ela em casa: duas cartas de amigaso último número de uma revista de modasa boneca espanhola que lhe deram aos sete anosFicou provado que não se conheciamEncontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuvasorriram inventaram o amor com carácter de urgênciamergulharam cantando no coração da cidade Importa descobri-los onde quer que se escondamantes que seja demasiado tardee o amor como um rio inunde as alamedaspraças becos calçadas quebrando nas esquinas Já não podem escapar Foi tudo calculado com rigores matemáticos Estabeleceu-se o cerco A policia e o exército estão a postos Prevê-se para breve a captura do casal fugitivo (Mas um grito de esperança inconsequente vem do fundo da noite envolver a cidade au bout du chagrin une fenêtre ouverte une fenêtre eclairée)
A Invenção do Amor, Daniel Filipe

terça-feira, 5 de abril de 2011

O AMOR É UM LABORATÓRIO

Ganhei esta frase hoje enquanto caminhava febril pela cidade e pensava nas palavras do Bernardo Soares - «não o amor, mas os arredores é que vale a pena...». É só uma frase, mas não podemos começar sem a primeira frase...