Numa digressão pelos corredores da biblioteca onde a minha adolescência criou raízes encontrei o livro de Hector Abad Faciolince, Receitas de Amor para Mulheres Tristes. Li-o numa hora, intimada não pela falta de afectos amorosos nem pela tristeza, mas por ter uma capa bonita, ter sido traduzido pelo Pedro Tamen e, sobretudo, porque nele se publicitava a sabedoria de um homem que conhece o «feminino» em profundidade.
Ora eu, que pertenço ao sexo feminino por outorgação biológica e cultural, muito tenho debatido comigo na minha solidão e com algumas amigas empenhadas em estudos feministas sobre as chamadas questões das mulherzinhas. E isto sem saber nada do feminino em profundidade, mas sentindo-o muito profundamente. Na pele, que é onde mais nos sentimos e doemos.
Até hoje cheguei apenas à conclusão de que a mulher é um dos enigma da cultura e que eu própria sou uma mulher-enigma. Explico melhor. Mulher-enigma, mulher que passa o tempo a meditar em si, com o corpo ocupado por um problema. Um corpo-problema parasitado pelo pensamento que se devora do avesso. Ser mulher é hospedar um problema que afecta os gestos, os afectos, as palavras. Um problema criado para além da possibilidade da solução. Um problema que me ultrapassa e me dispensa até, por vezes.
Por isso, se antes me empenhava em responder aos argumentos feministas dizendo que quando seguia pela rua nos dias ordinários não me recordava como mulher mas como ser, hoje revi essa postura, sobretudo acicatada pela indignação e pela ira (que como já disse, são os afectos mais femininos que trago em mim) e digo: não sou uma mulher, sou um problema.
Convidada pela apregoada sabedoria do autor, entrei então pelo livro com toda a credulidade e inocência. E alguma ironia também, confesso. Afinal a ideia de que é preciso vir um homem para nos iluminar persiste e isso faz-me sorrir travessamente.
A prosa elegante e suave seduziam-me com acenos domésticos e sensuais. Gostei particularmente da comparação dos fluidos femininos a clara de ovo:
«Deixa-te guiar pelo manso marulhar das sensações, conhece os atalhos do teu corpo, que tudo se humedeça com o seu líquido fresco, e não penses, não penses muito, porque nada seca tanto o ventre como o pensamento. Olha, tu sabes de que humidades te estou falando; das mais desejadas, dessas que como claras de ovo se te escondem no corpo e que são o deleite do teu companheiro. Não temas derreter-te, desidratar-te, dissolver-te. Deixa-te ir, não penses, quero ouvir um gemido de corpo inteiro, um alarido de poros abertos. Abre, abre até te partires, submerge-te no mar das sensações, perde-te, solta o freio, desata-te, permite-te ser toda, por momentos, uma perdida.» (p.46)
Notável. Mas a ironia persistia. Com travos culinários. Já tenho a minha cota de perdida. As tripas e o coração seguiam intactos pelas páginas. A certa altura, o autor escreve:
«Como hás-de acreditar naquele que diz que gosta de ti?
(…) à falta de um método infalível, aí vai o velho conselho matemático: deve-se acreditar em metade da metade. Se depois desse par de divisões ficar de pé uma chamazinha de luz, começa a acreditar nele, mas não te esqueças: os homens são cobardes a amar.» (p. 96)
Foi aqui neste momento e com esta banalidade, confesso, que ele ganhou o meu respeito. Porque os homens são mesmo cobardes a amar; na literatura, como na vida, é sempre pela mão feminina que se ousa a grande aposta. É verdade que também é essa mesma mão que depois paga a factura trágica, num catálogo memorável de fatalismos e suicídios ridículos. Pela coragem, as mulheres conquistaram o estatuto das grandes vítimas históricas da ideia de amor, não perdendo jamais a inspiração. Há beleza nisto, digo eu.
Mais adiante, desfeito o sorriso travesso, na página 64 eis-me completamente rendida ao senhor:
«Essa tendência para traíres, para mentires – e para seres perfeitamente franca. Para te esconderes – ou para te mostrares muito. Esse cuidado de te preservares tanto – para acabares a contar a tua história, a tua verdade, com todos os pormenores, a um desconhecido. Essa vontade de fugires, de saíres a correr quando alguém mostra que começa a conhecer-te, embora não te reveles, e essa vertigem de ficares. Essa indomável sede de alguém – e de não estares com ninguém. Essa fome de impossíveis. Como pensar no meio desta confusão contraditória? É verdade e mentira, está bem e está mal, e não há saída.
Nada a fazer. Toma um copo de água.» (p.64)
Esta passagem tocou-me particularmente, nela revi as minhas ansiedades e contradições. Fiquei mais sossegada porque me senti mais acompanhada. Para esta fome de impossíveis, o autor não apresenta receita nem remédio. Não existe cura para a beleza mas existem paliativos para atenuar a dor que sempre fica como rasto: um copo de água porque Faciolince desaconselha o uso imoderado de álcool.
O whisky, segundo o autor, favorece sentimentos opostos, alimentando o engano e a credulidade. As suas misturas amarelas não convêm ao peito na aflição. Contudo, se for de single mat e de águas escocesas ou da Irlanda, a mulher pode tomar dois decilitros. Mas apenas quando se vir na obrigação de mentir despudoradamente; «o whisky dá uma cara tão dura que facilita a mentira. Mais séria que qualquer trampolineiro, parecerás de gesso, e todos acreditarão em ti» (p.53). As aguardentes, líquidos traiçoeiros pela semelhança com a água, são de evitar. Resta o vinho e a cerveja, bebidas benignas e sãs. E o rum das Antilhas, que aquece e é de bom gosto. Com gelo e algumas gotas de limão revela os seus melhores atributos.
De acordo com esta avaliação, parece que me tenho andado a envenenar. Nada a fazer, respondo eu deste lado: A vida! a saúde! o dinheiro! o corpo! tudo! para seja belo! É esta a minha aposta: aposto na vida e na beleza e aceito pagar o preço. Porque a beleza me deixa sempre em apuros e aflições mas decido que o prazer vale a despesa. Com as palavras de Rimbaud em mente, canto com coragem:
«Ó meu Bem! Ó meu Belo!
(…)
Isto começou com risos de criança, em risos de criança há-de acabar.
(…)
Temos fé no veneno. Sabemos dar a nossa vida inteira todos os dias. Este é o tempo dos ASSASSINOS.»
Não estou para poupanças: a vida é para gastar todos os dias, sem folgas nem férias. Estou em crise, é verdade, mas ainda estou viva. Mais viva que morta. E com os dentes todos. Para um riso grande e franco.