terça-feira, 27 de novembro de 2012
terça-feira, 20 de novembro de 2012
Lembrava-se
dele e, por amor, ainda que pensasse
em
serpente, diria apenas arabesco; e esconderia
na
saia a mordedura quente, a ferida, a marca
de
todos os enganos, faria quase tudo
por
amor: daria o sono e o sangue, a casa e a alegria,
e
guardaria calados os fantasmas do medo, que são
os
donos das maiores verdades. Já da outra vez mentira
e
por amor haveria de sentar-se à mesa dele
e
negar que o amava, porque amá-lo era um engano
ainda
maior do que mentir-lhe. E, por amor, punha-se
a
desenhar o tempo como uma linha tonta, sempre
a
cair da folha, a prolongar o desencontro.
E
fazia estrelas, ainda que pensasse em cruzes;
arabescos,
ainda que só se lembrasse de serpentes.
Maria do Rosário Pedreira, Poesia Reunida
quarta-feira, 14 de novembro de 2012
sexta-feira, 9 de novembro de 2012
Para repensar o amor
Excelente contraponto ao Banquete platónico: aqui bebe-se à séria e busca-se um amor para além da moral e da estética.
segunda-feira, 5 de novembro de 2012
É a segunda vez que me acontece. Ter um contacto inicial desagradável com um autor, recusar lê-lo e depois descobrir anos mais tarde, com um espanto incrível, inúmeras afinidades. Aconteceu com o Bukowski há muito muito tempo. Li qualquer coisa dele num dia errado, rotulei-o levianamente de misógino e segui quase uma década sem o ler, até que um verão dei comigo na praia, sob um sol louco, enternecida pelo seu humor e desespero, e tive de admitir que o homem amava a vida e as pessoas como poucos. Hoje, aconteceu com o Derrida: a tarde inteira, enleada nos Spectres de Marx, lamentando não ter uma eternidade para abraçar cada página. Li algumas coisas dele na faculdade, achei-o hermético, um mestre de malabarismos com conceitos e gramáticas, raiando muitas vezes a incomunicabilidade. Não podia estar mais enganada. O homem conhece exemplarmente a história da filosofia ocidental, não só de trás para a frente como de frente para trás, de modo oblíquo, centrípeto e centrífugo. E diverte-se a brincar com essa história, tratando-o como uma estória, analisando os seus caminhos, desvios e patologias. E não é um homem interessado apenas nos conceitos: o que lhe interessa é sobretudo a vida, a vida de todos os dias, a vida até dos que não leram nunca uma única linha de filosofia. E em usar todas as artimanhas, possíveis e imaginárias, para vergar os conceitos, para que a vida possa respirar novamente, ainda que por breves momentos.
Mais uma vez, me é provado que a literatura é un affaire d'amour e que para certos livros ou autores, é preciso esperar e confiar no tempo e na sua capacidade de amadurecer a compaixão, uma paixão com, partilhada. Tem razão o Alberto Manguel quando diz que cada leitor cria a sua própria história da literatura. É que a vida e a literatura caminham juntas, mesmo quando desavindas.
sexta-feira, 2 de novembro de 2012
verão vermelho-sangue resfolegando sobre os fenos
“Do verão, diria
uma planície lenta, quase amarela: o trigo
a enrolar-se
nos pés, o oiro do sol, os cabelos
mais loiros.
Um vento quente e ondulante sibilando
nas frestas de
um celeiro. O fumo sonolento do calor
tornando informe
o fio do horizonte. Do verão
diria também
um tempo espesso onde todos
os acasos são
sofríveis: duas papoilas, vermelho-sangue,
agitam a paisagem.
Tu chegas e a minha pele chama-te
sete nomes em
surdina. É a luz da tarde que faz o fulgor
dos fenos e aquece
a roupa que abandonou o corpo
sem perguntas.
As mãos podem então dar-se
todos os recados.
E amanhã ninguém sabe. Fica
apenas um punhado
de espigas quebradas sobre a planície
lenta; amarela,
digo: as papoilas, entretanto, voaram.”
Maria do Rosário
Pedreira
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