2012 foi um ano estéril em paixões. À parte alguns arrufos
inconsequentes, não amei nenhum homem nem nenhum livro. Foi por isso um ano
estranhamente bom, ocupado na aprendizagem de uma solidão interior, calma e
insuspeita. Até aqui, houve sempre alguém, como diz a Mick em The Heart
is a Lonely Hunter, e houve sempre um livro, a tal ponto que a escrita da minha
história da leitura se confunde com os meus amores e desamores.
Como o desejo se desloca da minha carne e encontra um livro,
é algo misterioso. Como uma operação alquímica. Nalguns casos, o desejo é
encaminhado por um terceiro, noutros casos, mora já em minha casa. Mas continuo
a preferir os encontros fortuitos na biblioteca, quando as minhas mãos e olhos
escutam o apelo de um livro manuseado, que não figura na lista dos livros que
gostaria de ler, e o encontram doído de colos ausentes. Com estes livros
feridos por outras mãos, sinto sempre uma maior liberdade de tacto, como se
fosse mais fácil imprimir-me neles antes de os devolver à sua posição
enigmática.
Desta vez, o acaso aconteceu com os diários de Etty Hillesum
na Biblioteca de Portimão, a biblioteca da minha adolescência nietzscheana. Uma
surpresa deliciosa, considerando que a questão judaica nunca me interessou
muito, porque demasiado absolutizada nos pólos vítima-carrasco. Chamou-me uma
vez: ignorei, outras leituras se impunham. Chamou-me mais uma vez, fui até ele
e li a contracapa, tornei a pousá-lo, outras leituras se impunham. Chamou uma
terceira vez, caminhei até ele com passos resolutos e abri-o sem qualquer
pudor:
“Terça-feira de manhã [17 de Março de 1942], às nove e meia
Ontem à noite, quando ia ter com ele de bicicleta, havia um
grande e aprazível desejo de primavera em mim. E enquanto eu pedalava em cima
do asfalto da rua Lairesse, desejando-o e com sonhos na cabeça, senti-me de
repente acariciada por um ar tépido de primavera. E subitamente pensei: «Assim
também está bem. Porque é que uma pessoa não pode experimentar uma grande e terna
euforia pela primavera e, também, por todas as pessoas?» (…) Sim, por que razão
é que uma pessoa não poderia sentir amor por uma primavera? E as carícias do ar
primaveril eram tão delicadas e tão envolventes, que mãos masculinas, mesmo que
fossem as dele, em comparação com elas me haveriam de parecer rudes.
E foi assim que cheguei a casa dele. O pequeno quarto de
dormir apanhava um pouco de luz vinda do quarto de trabalho e, quando entrei
reparei que a cama dele estava aberta e que, dobrado por cima dela, havia um
pesado ramo de orquídeas aromatizando o quarto. E na mesinha ao lado da
almofada havia narcisos, muito amarelos, tão extremamente amarelos e frescos. A
cama aberta e as orquídeas e os narcisos – uma pessoa nem precisa de se deitar
acompanhada naquela cama. Enquanto ali estive, por um instante, naquele quarto
meio iluminado, foi como se tivesse tido uma noite inteira de amor. E ele
estava sentado à pequena escrivaninha e de novo me saltou à vista como o rosto
dele se assemelhava a uma paisagem antiga, cinzenta e gasta.
Pois, estás a ver, uma pessoa necessita de ter paciência. O
teu desejo deve ser como um navio lento e majestoso, navegando no oceano
infinito e não à procura de um local onde largar a âncora. E de súbito,
inesperadamente, dás de caras com um local onde ancorar por um momento. Ontem à
noite, encontrou o seu ancoradouro por um breve instante. Foi só há quinze dias
que eu fui tão bravia e indomável e o puxei para mim, de tal forma que ele caiu
por cima de mim e eu me senti mais tarde tão infeliz que pensei que
dificilmente conseguiria continuar a viver? E passou-se só uma semana desde que
eu me enfiei nos seus braços e, de um modo ou outro, permaneci infeliz porque
havia ainda qualquer coisa de forçado nisso?
E todavia, estes estádios terão sido necessários para chegar
a este deslizar ao encontro um do outro, a esta familiaridade, a este ser
querido ao outro e ser bom para ele. E uma noite destas fica para sempre, em
tamanho enorme, na memória. E se calhar, uma pessoa nem precisa de muitas
destas noites para ter a sensação de levar uma vida amorosa plena e rica.”
E pronto: de novo, essa ligação estranha. Saí da biblioteca
com o livro junto ao peito, com aquela sensação reconfortante de ter encontrado
um objecto perdido na infância – a conceptualização do fetiche por Freud não
anda longe da verdade, ainda que a sua verdade se resuma a uma metáfora.
Coloquei o livro no lugar do morto e assim fizemos a viagem até casa. Mais
tarde, nessa mesma noite, tive de ir ver os homens, compromisso penoso que
prolongava mais um pouco o ritual de sedução. Levei-o comigo. É sempre assim
quando um livro me conquista: sinto a todo o instante, uma enorme vontade de o
ter ao meu alcance, estender a mão e sentir o seu corpo sólido e macio, antecipando
com delícia o nosso momento de entrega e rendição. Por isso, quando estou
apaixonada por um livro saio à noite com ele, mesmo sabendo que não o posso ler
porque os protocolos de leitura não o permitem, imensamente agradada pela
companhia do seu peso, que a mão sub-repticiamente acaricia sempre que pode.
Algumas vezes, chego até a colocá-lo com todo o cuidado na almofada contígua à
minha e podem crer que adormeço contente e satisfeita como se tivesse tido uma
noite inteira de amor. Sim, porque razão é que uma pessoa não pode sentir amor
por um livro?
Não vou escrever sobre o livro da Etty. Não consigo, dissecar
um amor apenas é possível no desamor. Posso apenas dizer que se trata do
registo diarístico de uma mulher a parir a sua alma, com todas as tremendas
dores da individuação, para conquistar a alegria anterior a um coração
desassossegado e acelerado e uma vida plena, digna de ser vivida. Uma dádiva
que me trouxe a consciência de que já não sou nem desejo ser uma amante-leitora
compulsiva, atacada pelo síndrome do bovarysmo, faminta por conhecer o máximo de
experiências e sensações. Platão tinha razão quando dizia que a escrita era um
pharmakon, sei-o agora. A literatura pode ser um vício, uma compulsão que
envenena e corrompe a vida. Mas eu não quero acabar como a Emma, desiludida com
a vida, vomitando a tinta negra de todos os livros lidos. Lá onde está o
veneno, também estará a cura. Tendo a sorte de poder afirmar ousadamente que já
vivi muito e já fiz de muitas personagens, posso agora começar a trabalhar na
minha síntese feliz e isso implica fazer do erotismo e da literatura um
trabalho mais sério e árduo, um trabalho de exegese. Uma decisão válida para os
livros e para os homens: não me interessam mais os arrufos da paixão, mas o
Amor. Não querendo isto dizer que me converti ao platonismo. Porque corpo e
alma são um só, como a Etty e eu aprendemos. Tendo escavado bem fundo em mim,
com todas as facas que encontrei à mão, vou agora tratar de me esculpir e fazer
da vida uma obra de arte. A Obra começa.
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