Niels
Lyhne chegou indicado por Rilke, primeiro na versão francesa e depois na versão
portuguesa pela Cosac & Naify. Parente de Emma Bovary, Fréderic Moreau e
Oblómov, trata de um problema bicudo: será a
vida plena e una, tão arduamente sonhada, apenas uma quimera literária púbere?
A vida terá inevitavelmente que soçobrar perante a vidinha, salvando-se apenas
os mais calculistas?
Como acontece com todas as
perguntas genuínas, a resposta chega com atraso. Há uns tempos atrás, pus-me a
matutar seriamente no problema da vida. Tão seriamente, que por vezes sentia
que o cérebro se enovelava na mais crua certeza da morte violenta. Durante esse
tempo, procurei com verdadeiro afinco encontrar uma pessoa, uma apenas que
fosse ou estivesse, genuinamente feliz. Em cada alma, encontrei apenas uma
falha, quando não uma farsa. Lembrei-me então desse velho Diógenes que
procurava um homem pelas ruas, em pleno meio-dia, com uma lanterna acesa. O
fracasso desta demanda tornava a situação mais aflitiva, pois se até estava na
disposição de aceitar a minha derrota, a possibilidade de sairmos todos
derrotados afligia-me como uma sede sem água à vista.
Niels
Lyhne vem
comprovar que aquilo que há muitos anos tomei como uma questão íntima é afinal
um problema moderno e um problema essencialmente literário, que afecta a todos
mesmo os que escapam às leituras. Niels Lyhne passa a vida a poetar a vida em
vez de a viver. Petrificada pela letra, a vida é algo que nunca chega. O
processo começa nos suspeitos do costume – Platão e Aristóteles – e atinge a
sua hipérbole na contemporaneidade: privadas das suas forças vitais, a vida
acaba congelada pela retórica, entregue à melancolia de uma temporalidade que
não se consegue transcender sem se negar. Até aqui nada de novo. Aliás, o livro
todo não traz qualquer novidade para quem já leu essa epopeia da bulimia
temporal que é A Educação Sentimental
do Flaubert.
Mas a edição brasileira traz um
belíssimo ensaio de Claudio Magris como introdução, intitulado «As Moedas da
Vida». Nada melhor que um escritor para explicar uma questão literária: “Entre o eu e a vida abriu-se um hiato, que
faz daquela não mais a sua vida, mas um território onde ele não consegue
penetrar e se inserir, um lugar estranho que não lhe pertence e ao qual não
sente pertencer, uma contínua fuga de algo que nunca possui e que portanto não
é seu, mas do qual sente nostalgia como se o tivesse perdido”. Entre
essência e existência abriu-se uma cesura intransponível que vota a primeira à abstração
inacessível e a segunda a uma opaca insignificância. O conflito entre vida e
representação converte o tempo da existência nas moedas da vida, “trocados miúdos que não podem ser usados
para mais nada”. “A vida alienada é a
que foi privada de fins que realmente a justifiquem e a tornem auto-suficiente
na dedicação a uma meta superior; no lugar de um fim último, instalou-se uma
miríade de objectivos momentâneos e parciais, que se sucedem uns aos outros sem
repouso, como na cadeia de montagens de uma imensa produção, sacrificando e
queimando cada momento ao seguinte, para alcançar um objectivo meramente
prático e despido de valores, que portanto não ilumina – nem
retrospectivamente, na memória, nem prospectivamente, na expectativa – o
caminho que é preciso percorrer para alcançá-lo.”
Que cada um medite nisto, com a
urgência com que o problema o encontrar. A maioria optará por não pensar, mas
nem por isso deixará de o sentir na própria pele. Outra parte, optará pelo
esteticismo e pelo deleite no impasse – deus vos livre do esteta e da sua
melancolia artificiosa, antes uma trave no olho! Poucos irão pelo caminho
marginal de Stirner, cantando a vida e tomando-a, se necessário, à força. Eu já
tenho a minha resposta mas não a partilho. Trata-se de uma questão humanista,
pelo que cada qual terá de se por a caminho, sozinho e desorientado.