No início, havia o campo, os invernos
rigorosos e uma estranha guerra ocupava os dias. O corpo era muito magro e frágil
mas vingou ao abrigo da comunhão com os livros, os cães e os irmãos. Assim se
constituiu a sua ideia pessoal de felicidade: uma cama, um livro, um cão e um
amante que fosse também um camarada. Terá sido então que os livros se
entrelaçaram com o erotismo numa enigmática mas bela coincidência.
[O pai estava ausente:
sentado no sofá, fumava cigarro atrás de cigarro e lia um livro grosso. Complexo
de Electra. Livros e cigarros: uma compulsão fálica de inspiração-expiração.]
Dos livros recebeu, portanto, a sua
educação sentimental e o gosto pelas palavras certeiras. A sua segunda pele.
Anos mais tarde, ao deixá-los empacotados num sótão amigo para viajar durante
um ano sentir-se-á estranhamente livre e nua. A doença do livro colou-se aos
ossos. As noites serão perdidas para a insónia, na angústia da vida não durar
nem para metade dos livros que deseja. Sentirá sempre que não se pode ler um
livro sem ter lido todos. Por consolo, conceberá a ideia de paraíso-biblioteca.
No entanto, terá sempre as suas poupanças empenhadas, penará sempre que muda de
casa e irá cometer muitas imprudências na vida, tentando igualar a beleza da
arte.
Irá sofrer mas nos ombros sentirá
sempre asas prestes a despontar. Aprende-se mulher, cativa-se na ideia de um
amor louco. Enternece-se com os desvarios de uma tal Madame Bovary, parece que
escolheram ambas viver mal mas poeticamente. Às vezes vacila, as pernas já não
prestam para andar, mas sempre acha novo vigor em poemas (ou serão elegias?)
como o de Alexandre 0’Neill:
Gosto de Ofélia ao sabor da
corrente.
Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há
tanto homem!»
A sua história da
leitura confunde-se com os seus amores e desamores. O primeiro será amado com
todo o arsenal literário da adolescência, um amor nietzscheano incapaz de durar
porque consagrado ao fogo violento. Depois virão as noites das paixões nómadas
e cada aurora a achará, deitada num desalinho etílico, com um amante-livro
diferente. O coração será um caçador solitário e o amor uma faca que ela usará
para se esventrar, procurando acertar em si mesma. Partilhará o sono com mil
amores emprestados até que um dia acordará esvaindo-se em sangue. Vermelho
imperfeito.
[Os encontros fortuitos
na biblioteca. Traz o livro para casa, bem junto ao peito, como quem se
orgulha de um crime. As mãos seguras da sua textura. Durante dias não faz mais
do que olhá-lo, acariciá-lo e adormecer junto dele. Sonha com a fantasia de um
sexo de ler: um texto-carne a penetrá-la, a doer-lhe fundo e um orgasmo
acontecendo pelas palavras.]
As
noites seguintes serão assombradas pelo chamamento de sereias impiedosas.
Conseguirá sobreviver apenas graças às terríveis palavras do Herberto Hélder.
Ele nunca saberá mas salvará a sua vida numa altura em que mão alguma a poderia
alcançar. Uma noite de primavera adiada virá esse amor louco e bruto, tão
arduamente sonhado. Os dias serão então fartos em fomes e enfartes e o corpo,
inquieto, cirandará pela cidade, buscando as suas palavras. Será finalmente um
livro de pernas abertas que alguém conseguirá ler. Mas de novo a desilusão.
Desta vez quase fatal. Vermelho perfeito. Atravessará então a morte desértica,
acompanhada apenas pela indignação de Raskólnikov. Sobrevirá depois a grande
solidão e durante a travessia desse deserto inumano, nenhum homem ou livro será
amado.
Os
livros continuarão lá, à espera do seu regresso, amantes leais que ela saberá
reencontrar quando regressar à casa que o coração construiu para se abrigar. Com
um livro bem junto do peito, ela sentirá por fim a sua alma junta, adormecendo
contente e satisfeita, como se tivesse tido uma noite inteira de amor. Um acto
de amor diferido, mediado pela solidez do papel, consumado na liquidez da tinta.
As frases indizíveis acharão por fim aconchego nos corpos desencontrados no
Tempo. E carne e letra fundir-se-ão num só Livro.