quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Amar um livro


No início, havia o campo, os invernos rigorosos e uma estranha guerra ocupava os dias. O corpo era muito magro e frágil mas vingou ao abrigo da comunhão com os livros, os cães e os irmãos. Assim se constituiu a sua ideia pessoal de felicidade: uma cama, um livro, um cão e um amante que fosse também um camarada. Terá sido então que os livros se entrelaçaram com o erotismo numa enigmática mas bela coincidência.
[O pai estava ausente: sentado no sofá, fumava cigarro atrás de cigarro e lia um livro grosso. Complexo de Electra. Livros e cigarros: uma compulsão fálica de inspiração-expiração.]
Dos livros recebeu, portanto, a sua educação sentimental e o gosto pelas palavras certeiras. A sua segunda pele. Anos mais tarde, ao deixá-los empacotados num sótão amigo para viajar durante um ano sentir-se-á estranhamente livre e nua. A doença do livro colou-se aos ossos. As noites serão perdidas para a insónia, na angústia da vida não durar nem para metade dos livros que deseja. Sentirá sempre que não se pode ler um livro sem ter lido todos. Por consolo, conceberá a ideia de paraíso-biblioteca. No entanto, terá sempre as suas poupanças empenhadas, penará sempre que muda de casa e irá cometer muitas imprudências na vida, tentando igualar a beleza da arte.
Irá sofrer mas nos ombros sentirá sempre asas prestes a despontar. Aprende-se mulher, cativa-se na ideia de um amor louco. Enternece-se com os desvarios de uma tal Madame Bovary, parece que escolheram ambas viver mal mas poeticamente. Às vezes vacila, as pernas já não prestam para andar, mas sempre acha novo vigor em poemas (ou serão elegias?) como o de Alexandre 0’Neill:
Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.
Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há tanto homem!»

A sua história da leitura confunde-se com os seus amores e desamores. O primeiro será amado com todo o arsenal literário da adolescência, um amor nietzscheano incapaz de durar porque consagrado ao fogo violento. Depois virão as noites das paixões nómadas e cada aurora a achará, deitada num desalinho etílico, com um amante-livro diferente. O coração será um caçador solitário e o amor uma faca que ela usará para se esventrar, procurando acertar em si mesma. Partilhará o sono com mil amores emprestados até que um dia acordará esvaindo-se em sangue. Vermelho imperfeito.
[Os encontros fortuitos na biblioteca. Traz o livro para casa, bem junto ao peito, como quem se orgulha de um crime. As mãos seguras da sua textura. Durante dias não faz mais do que olhá-lo, acariciá-lo e adormecer junto dele. Sonha com a fantasia de um sexo de ler: um texto-carne a penetrá-la, a doer-lhe fundo e um orgasmo acontecendo pelas palavras.]
As noites seguintes serão assombradas pelo chamamento de sereias impiedosas. Conseguirá sobreviver apenas graças às terríveis palavras do Herberto Hélder. Ele nunca saberá mas salvará a sua vida numa altura em que mão alguma a poderia alcançar. Uma noite de primavera adiada virá esse amor louco e bruto, tão arduamente sonhado. Os dias serão então fartos em fomes e enfartes e o corpo, inquieto, cirandará pela cidade, buscando as suas palavras. Será finalmente um livro de pernas abertas que alguém conseguirá ler. Mas de novo a desilusão. Desta vez quase fatal. Vermelho perfeito. Atravessará então a morte desértica, acompanhada apenas pela indignação de Raskólnikov. Sobrevirá depois a grande solidão e durante a travessia desse deserto inumano, nenhum homem ou livro será amado.
Os livros continuarão lá, à espera do seu regresso, amantes leais que ela saberá reencontrar quando regressar à casa que o coração construiu para se abrigar. Com um livro bem junto do peito, ela sentirá por fim a sua alma junta, adormecendo contente e satisfeita, como se tivesse tido uma noite inteira de amor. Um acto de amor diferido, mediado pela solidez do papel, consumado na liquidez da tinta. As frases indizíveis acharão por fim aconchego nos corpos desencontrados no Tempo. E carne e letra fundir-se-ão num só Livro.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Liberdade



Hoje acordei muito cedo e saí de casa alegre, sem saber como vai ser a minha vida (“facing the fear that the truth I discovered/No telling how, all this will work out”). 

Vi Lisboa a despertar pelo vidro acelerado, ao som desta música, e soube amar-me como tanto gosto. É que apesar de estar numa fase em que nada possuo, sinto-me deliciosamente calma e confiante no que virá. Sei com uma certeza intocável que fiz a escolha certa e que aquilo que mais quero é liberdade (“I am looking for freedom, looking for freedom/And to find it cost me everything I have/But I’ve come too far to go back now”). E se hoje enfrento as consequências dessa paixão num país fodido e escolho não desertar, é porque sinto com uma convicção íntima que já estive mais longe de coincidir com a minha liberdade.

Tudo o que perdi foram afinal merdas, orgulhos e arrogâncias acessórias, umas quantas euforias baratas. Em troca: uma simplicidade meiga e inusitada. 

Aos poucos as palavras vão regressando, com passos dançantes de mulher que conseguiu sobreviver até à vida. Os olhos conformam-se aos milagres, disponíveis para ver. E as mãos vão reunindo o que lhes chega para escrever. Sabendo que o que vier fará parte. Porque nunca ninguém se perdeu. (“In time the sun’s gonna shine on me nicely (on me yeah)/somethin’ tells me good things are coming/and I ain´t gonna not believe”).

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

As Ilhas Malucas


Estar desempregada é fodido pelas mais óbvias razões. Mas também pode ser uma experiência psicadélica capaz de bater qualquer ficção do Pynchon. Para além dos gajos que se fingem dispostos a ajudar quando mal conseguem disfarçar os seus próprios interesses sexuais, acontecem coisas verdadeiramente hilariantes.
Ontem, por exemplo, tive uma reunião surpreendente. Tinha ido correr junto ao Tejo e preparava-me para tomar um duche longo e quente quando me ligaram para falar de uma proposta de trabalho. Desci as escadas do meu prédio, suada e em roupa desportiva, e entrei num carro híbrido (foi a minha primeira experiência num híbrido).

A proposta era a seguinte: existem umas ilhas, cujo nome não se pode mencionar, que estão a ser disputadas por dois países. Alguns documentos foram reunidos em Espanha para provar a pertença histórica e natural (pertença natural?) dessas ilhas a um dos países envolvidos no conflito diplomático e entregues à ONU. Contudo, as provas não são conclusivas e existe a informação de que Portugal poderá (note-se o carácter hipotético da coisa) possuir documentos que comprovam essa pertença. Por isso, um embaixador pagou a um investigador de história para andar a vasculhar em tudo quanto era sítio e arredores para encontrar esses documentos. Três mil euros por baixo da mesa: um primeiro adiantamento. No entanto, parece que o rapaz provocou de algum modo algum descontentamento no embaixador, pelo que existe a possibilidade (ainda não efectiva) de o mesmo embaixador vir a necessitar de contratar outra pessoa para encontrar essas provas. A tarefa é-me proposta, dada a minha experiência em investigação e a (suposta) facilidade que terei, enquanto investigadora de doutoramento, em aceder a documentos mais recatados. Mas, caso aceite, não poderei nunca dizer o que investigo e só num próximo encontro me será dito os nomes das ditas ilhas.

E uma pessoa sobe as escadas do prédio, enfia-se finalmente no duche merecido e delira com máfias diplomáticas e vinte asiáticos a invadirem a Torre do Tombo para destruírem um mapa do século XV. Olha foda-se, Culatra!