O Doutor Glas deixou-me muito curiosa sobre a obra de Hjalmar
Söderberg, pelo que fiquei muito alegre quando soube na Feira do Livro que a
Relógio d’Água tinha acabado de publicar outro livro do autor. O Jogo Sério é, nas palavras de Henning
Mankel, “uma história de amor que não
envelhece. Mantém-se tocante, evocativa e vívida”. A história de Arvid e Lydia
insere-se numa tradição comum daquilo que se chama a novela do adultério. Mas
mais uma vez, temos de olhar para além das aparências em Söderberg. Ao
contrário de Madame Bovary ou Anna Karenina, aqui ninguém morre por amor. A
visão deste amor extraconjugal – o mais apto à codificação romântico porque
externo ao contrato racional do casamento – não conserva qualquer vestígio de
tragédia.
Arvid e Lydia nunca se
comprometem de facto um com o outro. O jogo sério que ambos jogam é o da
pantomina do amor, nenhum representando de forma exemplar. Tudo é banal e todos
enganam todos. “Enquanto se beijavam, ele
pensou: isto é apenas um gesto de cortesia exigido pela situação.” Quando a
mulher de Arvid lhe pergunta se ele ouviu dizer alguma coisa, é impossível não suspeitar
dela também. Tem razão a figura do escritor Rissler quando afirma que uma personagem
construída a partir de Lydia é artificial. Neste jogo sério todos são
artificiais, embora insistam em mimetizar o humano.
Hjalmar Söderberg é talvez um
autor que, à falta de um melhor termo, se poderia chamar pós-moderno. Não na
forma obviamente, pois a sua prosa conserva a elegância e coerência narrativa
do século XIX, mas na solução pós-romântica que as suas histórias encontram. O Jogo Sério e O Doutor Glas partilham o mesmo problema moral. A razão moderna fez
da moral uma forma opaca que paradoxalmente se opõe à concretização desse mesmo
projecto racionalista. Morto Deus, tudo se torna inevitavelmente permitido.
Disso se dava conta Dostoievski através de Raskolnikov e do seu crime, embora o
seu espírito ainda fosse refém de uma certa beatitude sagrada que impunha o
castigo e a redenção.
Em O Doutor Glas,
Söderberg repete a questão da relação entre ateísmo e crime, tendo a coragem
necessária de afastar a assombração divina da equação. O que resulta num
problema ainda mais bicudo: eliminada a autoridade da lei e a sua concomitante
produção de culpa, os modernos estão entregues a um tédio sem resolução. A
moral torna-se um termo formal, cuja maioria reconhece na sua arbitrariedade, e
a vida parece não encontrar outro destino para além da bestialidade infeliz. A primeira coisa que fizera ao mudar-se
para aquele quarto fora tirar todas as horrendas pinturas da senhoria. Não tinha
nenhumas com que as substituir; enquanto as retirava, ocorrera-lhe, com um
sorriso, quão típica era esta atitude – nada mais fácil do que deitar abaixo as
coisas, mas voltar a levantá-las era outra história.”
Crime e amor são reversos do
mesmo problema íntimo de uma subjectividade que ao perder o Outro fica
encerrada numa solidão sem recursos. O que me recorda recentes palavras de
alguém: “tu jogas bem sem bola”. É
fácil para quem fez do amor uma aposta e perdeu.
“Ela deve estar agora a percorrer Djurgarden para ir ao encontro dele.
O Sol brilha. Ela pára numa curva do caminho e diz-lhe, de olhos baixos sob as
longas pestanas: «Há uns dias encontrei um homem que amei em tempos. Não compreendo
como é que alguma vez o pude ter amado.»
…E o comboio continuou a rolar…”
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