quinta-feira, 20 de junho de 2013

O Jogo Sério ou a pantomina do amor


O Doutor Glas deixou-me muito curiosa sobre a obra de Hjalmar Söderberg, pelo que fiquei muito alegre quando soube na Feira do Livro que a Relógio d’Água tinha acabado de publicar outro livro do autor. O Jogo Sério é, nas palavras de Henning Mankel, “uma história de amor que não envelhece. Mantém-se tocante, evocativa e vívida”. A história de Arvid e Lydia insere-se numa tradição comum daquilo que se chama a novela do adultério. Mas mais uma vez, temos de olhar para além das aparências em Söderberg. Ao contrário de Madame Bovary ou Anna Karenina, aqui ninguém morre por amor. A visão deste amor extraconjugal – o mais apto à codificação romântico porque externo ao contrato racional do casamento – não conserva qualquer vestígio de tragédia.

Arvid e Lydia nunca se comprometem de facto um com o outro. O jogo sério que ambos jogam é o da pantomina do amor, nenhum representando de forma exemplar. Tudo é banal e todos enganam todos. “Enquanto se beijavam, ele pensou: isto é apenas um gesto de cortesia exigido pela situação.” Quando a mulher de Arvid lhe pergunta se ele ouviu dizer alguma coisa, é impossível não suspeitar dela também. Tem razão a figura do escritor Rissler quando afirma que uma personagem construída a partir de Lydia é artificial. Neste jogo sério todos são artificiais, embora insistam em mimetizar o humano.

Hjalmar Söderberg é talvez um autor que, à falta de um melhor termo, se poderia chamar pós-moderno. Não na forma obviamente, pois a sua prosa conserva a elegância e coerência narrativa do século XIX, mas na solução pós-romântica que as suas histórias encontram. O Jogo Sério e O Doutor Glas partilham o mesmo problema moral. A razão moderna fez da moral uma forma opaca que paradoxalmente se opõe à concretização desse mesmo projecto racionalista. Morto Deus, tudo se torna inevitavelmente permitido. Disso se dava conta Dostoievski através de Raskolnikov e do seu crime, embora o seu espírito ainda fosse refém de uma certa beatitude sagrada que impunha o castigo e a redenção. 

Em O Doutor Glas, Söderberg repete a questão da relação entre ateísmo e crime, tendo a coragem necessária de afastar a assombração divina da equação. O que resulta num problema ainda mais bicudo: eliminada a autoridade da lei e a sua concomitante produção de culpa, os modernos estão entregues a um tédio sem resolução. A moral torna-se um termo formal, cuja maioria reconhece na sua arbitrariedade, e a vida parece não encontrar outro destino para além da bestialidade infeliz. A primeira coisa que fizera ao mudar-se para aquele quarto fora tirar todas as horrendas pinturas da senhoria. Não tinha nenhumas com que as substituir; enquanto as retirava, ocorrera-lhe, com um sorriso, quão típica era esta atitude – nada mais fácil do que deitar abaixo as coisas, mas voltar a levantá-las era outra história.”

Crime e amor são reversos do mesmo problema íntimo de uma subjectividade que ao perder o Outro fica encerrada numa solidão sem recursos. O que me recorda recentes palavras de alguém: “tu jogas bem sem bola”. É fácil para quem fez do amor uma aposta e perdeu.

“Ela deve estar agora a percorrer Djurgarden para ir ao encontro dele. O Sol brilha. Ela pára numa curva do caminho e diz-lhe, de olhos baixos sob as longas pestanas: «Há uns dias encontrei um homem que amei em tempos. Não compreendo como é que alguma vez o pude ter amado.»

…E o comboio continuou a rolar…”

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