domingo, 25 de agosto de 2013

"Todo o escritor que se respeita tem um papel purgativo. A vingança que ele deve servir aos convivas não tem de estar fria mas glacial."

Manuel da Silva Ramos

domingo, 18 de agosto de 2013

No fundo, temos todos o mesmo baço.


Falava ontem num jantar de amigos que, desde o Outono de 2011, que sou uma leitora frígida, incapaz de atingir o êxtase. Comparando mais uma vez os homens aos livros, há uns que nos fodem de tal maneira que nos tornamos depois insensíveis a outros toques mais desastrados.

Li recentemente Pais e Filhos de Ivan Turgéniev na esperança de me libertar do sortilégio de Rodion Romanovitch Raskólnikov. Tinha esperanças que o «pai» do nihilismo me libertasse. Mas devo confessar que, embora as boutades de Bazárov me tenham divertido bastante, este não chegou a apossar-se sequer de uma ponta de dedo minha.

Na primeira parte do romance, Bazárov é o nihilista perfeito, não deixando nenhuma ponta da argumentação por rematar.

“A educação? – retrucou Bazárov. – Cada pessoa deve educar-se a si mesma, nem que seja como eu, por exemplo... E quanto ao  tempo, porque hei-de eu depender do tempo? Antes dependa ele de mim. Não, meu caro, tudo isso é desleixo, futilidade! E que são essas relações enigmáticas entre o homem e a mulher? Nós, os fisiologistas, sabemos que relações são essas. Tu estudas a anatomia dos olhos: onde ir buscar aqui, como tu dizes, um olhar enigmático? Tudo isso é romantismo, disparate, literatura. É melhor irmos ver o escaravelho.”

Mas uma argumentação perfeita apenas garante um nihilismo teórico e rapidamente desejamos ver Bazárov a embater com as realidades que despreza para vermos como se safa. E eis que este se apaixona por uma dama (essa sim, uma verdadeira nihilista certificada não apenas pelo pensamento mas pela vida) e descobrimos que afinal Pável Petróvitch (figura aristocrata e romântica que Bazárov tanto despreza) e Evguéni Vassílitch aka Bazárov não são assim tão diferentes. Aliás, as damas fatais de ambos partilham algumas semelhanças.

Confrontado com o seu próprio sistema nervoso alterado, Bazárov regressa ao seu orgulho cínico, desta vez afectado por uma raiva redobrada, pois foi batido. Agora sim, é que nos interessa ver o desempenho da sua teoria.

“ – Já que tu não percebes inteiramente, eu digo-te o seguinte: em minha opinião, mais vale partir pedra na estrada do que permitir que uma mulher se apodere nem que seja da ponta de um dedo. Tudo isto é... – Bazárov esteve quase a dizer a sua palavra favorita, «romantismo», mas conteve-se e disse: - absurdo. Tu agora não acreditas em mim, mas eu digo-te: fomos os dois cair numa sociedade de mulheres e foi agradável para nós; mas abandonar essa sociedade é como tomar um banho frio num dia de calor. Um homem não tem tempo a perder com tais futilidades; um homem deve ser fero, diz um excelente ditado espanhol. Pois tu – acrescentou, voltando-se para o mujique sentado na boleia – tu, sabichão, tens mulher?
O mujique mostrou aos dois amigos a sua cara chata e míope.
- Mulher? Tenho. Como não havia de ter mulher.
- E bates-lhe?
- À mulher? Tudo pode acontecer. Sem motivo não se lhe bate.
- Muito bem. E ela, bate-te a ti?
O mujique puxou as rédeas.
- As coisas que tu dizes, senhor. Estás sempre a brincar... – Pelos vistos ofendeu-se.
- Estás a ouvir, Arkádi Nikoláevitch? E a nós os dois espancaram-nos... é no que dá sermos pessoas instruídas.”

E Bazárov safa-se exemplarmente. Curiosamente ou não, será pela ponta desse dedo que tanto recusa ceder à posse de uma mulher, que o tifo entrará para o levar à morte. Porque os nihilistas morrem de fisiologia apenas.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Snapshots de São Petersburgo


"Não há nada melhor do que a Avenida Névski, pelo menos em Petersburgo; ela é tudo para esta cidade."

Na Avenida Névski, dois amigos, um jovem pintor e um jovem oficial, partem cada um atrás de uma mulher. O pintor morrerrá tragicamente, incapaz de obter um acordo entre sonho e realidade. A aventura do outro terminará na pastelaria com dois pastéis de massa folhada, depois de ter sido espancado por três artífices alemães.

"É tudo engano, é tudo sonho, nada é o que parece! Acham que aquele senhor que se passeia com uma sobrecasaca de corte excelente é muito rico? Nada disso, todo ele se resume à sua sobrecasaca."

Também o assessor de colégio Kovaliov se resume ao seu nariz. Nariz esse que uma manhã resolve ausentar-se do rosto deste, disfarçar-se de funcionário do Estado e tentar passar a fronteira. Será uma carga de trabalhos para o fazer regressar ao seu lugar. Porque nesta cidade nada parece ocupar o seu lugar, com os objectos a ocuparem o lugar do humano.

"Mente a qualquer hora, esta Avenida Névski, mas sobretudo quando, com todo o seu corpo espesso, a noite desce sobre ela e realça as fachadas brancas e cor de palha, e toda a cidade se transforma em estrondo e brilho, e miríades de coches se desmoronam das pontes, e os boleeiros gritam e sobressalteiam nos cavalos, e o próprio demónio acende os lampiões apenas para mostrar tudo na sua forma ilusória."

Um demónio que se manifesta nos terríveis olhos do Retrato, e que corrompe o talento de um jovem pintor, com o dinheiro, a fama e a alta-sociedade. E depois há o homem que copiava, que nunca ninguém chega a ver para além do seu capote, um fantasma. Tantas infâmias: não admira que um tipo qualquer enlouqueça, comece a interceptar correspondência entre cadelas burguesas e decida reclamar o trono de Espanha...

"Salvaguarda a pureza da tua alma. Quem transporta o talento em si tem de ser o de alma mais pura. A outro qualquer será perdoada muita coisa, mas para ele não haverá perdão."