Como no amor, talvez existam livros
que se impõem como paixões maiores, diminuindo a eventualidade de
arrebatamentos fátuos.
Tenho lido muito. Quando me deito na
cama para descansar os ossos dos múltiplos alugueres quotidianos e ler, é como
se o tempo se dilatasse de forma milagrosa. Às vezes, consigo ler um livro
inteiro nessa hora. No entanto, jamais pouso numa palavra para voar e adormeço
invariavelmente como que envolta numa tristeza pós-coital, não sabendo o que
fazer desse novo silêncio que fica após cada livro. Nem sabendo como o nomear:
deserto, morte ou paz?
Sinto-me uma leitora insípida,
frígida como uma estátua. E é tão difícil viver sem um livro bonito. A vida
parece mais absurda e os dias surgem aflitivamente habituais, como se toda a
hipótese de uma cumplicidade se tornasse insustentável. Tento entender as
razões desta esterilidade. A primeira que me ocorre é culpar o Crime e Castigo de Dostoiévski. O meu
livro mais amado. Durante anos temi a sua leitura, dezenas de vezes li o
primeiro capítulo e dezenas de vezes desisti, tomada por um mal-estar que
passava das letras para a minha pele.
Foi na sequência de um desgosto
amoroso que consegui ter força para me confrontar com a revolta de Raskólnikov.
Rodion Romanovitch Raskólnikov, ainda hoje não consigo dizer o seu nome sem me
deliciar com a sua subtil aspereza. Nunca me senti tão próxima, tão fisicamente
solidária com uma personagem como nesse Outono. Com o coração em carne viva,
nada importava, porque todas as noites me reunia nos teus braços, Ródia, e
era-me impossível não te amar no teu desacordo íntimo com o mundo e orgulho
ferido.
- Agora só te tenho a ti – acrescentou
Raskólnikóv. – Vamos juntos... Eu vim a ti. Somos ambos malditos, então vamos
juntos!
- Vamos aonde – perguntou cheia de medo e,
involuntariamente, deu um passo para trás.
- Como posso saber? Só sei, tenho a certeza,
que iremos pelo mesmo caminho, e mais nada. Até ao mesmo destino!
Sónia olhava e não percebia nada. Apenas
sabia que ele estava muito infeliz, infinitamente infeliz.
- Ninguém, deles, compreenderá nada se lhes
falares – continuou Raskólnikov -, e eu compreendi. Preciso de ti, por isso
aqui estou.
Nunca mais amei um livro depois do Ródia. O nosso affaire
d’amour terminou quando ele partiu e encontrou a redenção. Durante meses,
esperei com calma o mesmo destino, julgando que sendo camaradas no nosso
desacordo, teríamos forçosamente de seguir juntos pelo mesmo caminho. Mas a
redenção não me aconteceu ainda.
E é difícil viver sem um livro bonito. A solidão
não encontra aconchego e fica-se refém da melancolia. Temos, portanto, um
primeiro diagnóstico, talvez demasiado leviano: a ligação melancólica com um
único livro. Segundo Freud, a melancolia caracteriza-se por uma identificação
narcísica do objecto perdido com o ego que passa a comandar todos os
investimentos da líbido. Ocupado por um luto quase impossível, o melancólico
torna-se incapaz para o amor e para o trabalho.
Numa primeira abordagem, o diagnóstico parece
válido. Ainda segundo Freud, o melancólico não tem qualquer tipo de vergonha ou
pudor, denotando uma propensão extraordinária para a confissão das suas
infâmias. Uma parte do ego toma outra parte por objecto, avaliando-a
criticamente. Os inúmeros stripteases que tenho feito no meu blog seriam
justificados por essa premente tendência a comunicar-me que encontra satisfação
apenas no auto-desnudamento. Além disso, o complexo melancólico é indissociável
da mania e é bem verdade que durante muito tempo habitei esse pólo, devorando compulsivamente
vários livros sem me ligar a nenhum.
Sempre dependi da beleza para viver. E sempre que a
encontrei, consumi-a com toda a voracidade que era capaz, sem qualquer tipo de
avareza. Nunca contei que me faltasse. Mas falta-me. Talvez tenha abusado das
suas doses, apunhalando o meu coração até restar apenas uma ferida aberta. E é
difícil sobreviver num país e tempo onde tudo escasseia, sobretudo a beleza.
Será este o meu crime e terei de suportar o seu castigo até encontrar a
redenção.
Até lá, vou prevaricar com vários livros.
Mesmo que tudo me pareça detrito. Porque é preciso escoar o luto que sucede aos
grandes amores. E não há nada mais temível que uma mulher de um só livro.