sábado, 11 de janeiro de 2014

Da leitura como atropelamento


O Sermão sobre a Queda de Roma é um  romance que mistura filosofia e literatura, luz e trevas. Escrito com um dos ritmos mais rápidos que vi em matéria escrita, captura o humano nas suas contradições mas não nos deixa tempo para parar nessa comoção.

"Marcel tem vergonha da sua lucidez e do seu cinismo e, na claridade da manhã, tem vergonha outra vez, vergonha do seu coração mole, do seu coração cheio de trevas, tem vergonha diante de André por ter sido um tão desvalido guerreiro, e tem vergonha da sua sorte desprezível, e vergonha ainda de nem sequer ser capaz de se regojizar com isso, olha para André com um respeito invejoso, e tem vergonha de o receber naquela aldeia miserável, todos os convidados da boda o fazem sentir vergonha (...), tem vergonha dos seus próprios parentes, da vitalidade obscena e transbordante de Jean-Baptiste, e de si mesmo, que traz no peito um coração mole e cheio de trevas. Vê a irmã dançar nos braços de André. As crianças correm por entre as mesas cambaias. Ange-Marie Ordioni dá ao filho a chupar um dedo que mergulhou no seu copo de rosé. Marcel ouve os risos e as notas desafinadas do acordeão, a voz tonitruante de Jean-Baptiste. Senta-se ao sol ao pé da mãe, que lhe pega na mão e abana tristemente a cabeça. Só ela parece não se alegrar ao ver a vida recomeçar. Como podia a vida recomeçar se ainda não começou?"

domingo, 5 de janeiro de 2014

Amsterdam: Gelukkig nieuwjaar









Que fazer quando tudo ardeu?


No meu quarto há uma réplica da Ofélia morta de Millais. Agrada-me adormecer sob o signo daquela que morreu de amor. Criada ou não pela literatura, tive desde idade muito precoce uma propensão para amores fatais. Desconfiava dos amores calmos e seguros e, como seria de prever, dediquei a primeira década adulta a coleccionar paixões impossíveis e várias crises nervosas. Consegui, apesar de tudo, chegar aos trinta anos com várias mortes imaginárias mas nenhum óbito efectivo.

A morte real foi sempre interrompida pela leitora que há em mim; insónia após insónia, narrativizava cada amor até me aperceber que o amante em questão era demasiado medíocre para um desfecho tão sublime. Não quero com isto desvalorizar os homens que amei ou julguei amar, eles foram os amantes necessários. Lidos no seu conjunto, eles contam a história da formação do meu desejo. Como peças de um puzzle ou fragmentos de uma epopeia menor.

Franchizado o desamor, comecei a interessar-me por outro tipo de heroínas literárias: as que sobrevivem ao fim do amor. Neste campo, também não é fácil encontrar uma personagem à altura do meu desejo. Se a literatura parece exímia a ensinar os corações a despedaçarem-se, poucas são as pistas para quem deseja um caminho alternativo.

Leitoras ou não, as mulheres sempre foram percebidas como um perigo que não se sabia bem como controlar. Era preciso dar-lhes um destino, uma solução, e o dispositivo literário soube apropriar-se da ideia de amor romântico para arrumar o género feminino. De ora em diante, a mulher tinha uma função muito clara: consagrada a Eros, devia dedicar a sua vida à procura e prática do amor.

A questão é que a própria solução se revelou também problemática, pois um pharmakon nunca é inteiramente controlável. A primeira fenda no edifício romântico é a sua profunda antítese com o casamento; contratualizado o amor, logo este devém tédio ou neurastenia, se preferirmos o termo clínico em voga no século XIX. Onde Eros falha, o dispositivo literário convoca Tanatos e as mulheres que transgridem o espaço doméstico são punidas com a morte. É o caso de Madame Bovary e Anna Karenina.

Entre Eros e Tanatos, que alternativas nos sugere a literatura para lidar com este problema literário? Para além das narrativas de ascetismo redentor ou voluptuosidade da carne, as respostas são raras. Estava a ficar sem esperanças numa emancipação literária da mulher relativamente à ideia de amor, quando encontrei uma assombração textual: Thérèse Desqueyroux.

As afinidades com Madame Bovary denotam uma intenção óbvia de Mauriac em reescrever a história da aparição de um desejo feminino incontrolável. Como Emma, também Thérèse sufoca numa vida menor na província, casada com um homem simples e a maternidade não lhe traz qualquer alegria ou paliativo. Mas o que interessa em Thérèse não são as afinidades que a unem a Emma Bovary, mas o desacordo que as distingue.

Thérèse é uma leitora ávida e inteligente. Casou com um homem simples e rude na esperança que ele a simplificasse mas não conseguiu acomodar-se na ordem da família e salvar-se da sua própria inquietude. Perante este falhanço, Thérèse encerra-se em si, num isolamento sem lenitivos nem amantes (“não suspeitava de que um outro homem lhe pudesse ser de algum socorro. Ao fim e ao cabo, Bernardo não era assim tão mau. Ela execrava nos romances a pintura de seres extraordinários, como nunca se encontram na vida”). Como a outra, sonha com uma vida mais intensa; ao contrário da outra, não se deixa devorar pelos ideais românticos. Opta antes por intoxicar-se com cigarros e envenenar o marido com arsénico.

Despedimo-nos de Thérèse em Paris. O marido liberta-a na grande urbe, libertando-se também da ameaça que esta mulher sempre significou. Ela tem finalmente o tempo e a solidão que tanto desejou para se fixar no seu desespero misterioso. Inicialmente, tem medo desta liberdade desconhecida, é que também ela se sente ameaçada pelo seu poder cego. Se o marido a pudesse perdoar, imagina-se a voltar com ele de bom grado para o seu papel de mãe e esposa burguesa. Mas felizmente o desejo de uma vida maior vence e na última vez que a vemos, Thérèse ri sozinha e pinta os lábios com minúcia, antes de se perder pelas ruas da cidade. O que acontece depois é um enigma. Como o desejo feminino.