No meu quarto há uma réplica da Ofélia morta de Millais.
Agrada-me adormecer sob o signo daquela que morreu de amor. Criada ou não pela
literatura, tive desde idade muito precoce uma propensão para amores fatais.
Desconfiava dos amores calmos e seguros e, como seria de prever, dediquei a
primeira década adulta a coleccionar paixões impossíveis e várias crises
nervosas. Consegui, apesar de tudo, chegar aos trinta anos com várias mortes
imaginárias mas nenhum óbito efectivo.
A morte real foi sempre interrompida pela leitora que há em
mim; insónia após insónia, narrativizava cada amor até me aperceber que o
amante em questão era demasiado medíocre para um desfecho tão sublime. Não
quero com isto desvalorizar os homens que amei ou julguei amar, eles foram os
amantes necessários. Lidos no seu conjunto, eles contam a história da formação
do meu desejo. Como peças de um puzzle ou fragmentos de uma epopeia menor.
Franchizado o desamor, comecei a interessar-me por outro tipo
de heroínas literárias: as que sobrevivem ao fim do amor. Neste campo, também
não é fácil encontrar uma personagem à altura do meu desejo. Se a literatura
parece exímia a ensinar os corações a despedaçarem-se, poucas são as pistas
para quem deseja um caminho alternativo.
Leitoras ou não, as mulheres sempre foram percebidas como um
perigo que não se sabia bem como controlar. Era preciso dar-lhes um destino,
uma solução, e o dispositivo literário soube apropriar-se da ideia de amor
romântico para arrumar o género feminino. De ora em diante, a mulher tinha uma
função muito clara: consagrada a Eros, devia dedicar a sua vida à procura e
prática do amor.
A questão é que a própria solução se revelou também
problemática, pois um pharmakon nunca
é inteiramente controlável. A primeira fenda no edifício romântico é a sua
profunda antítese com o casamento; contratualizado o amor, logo este devém
tédio ou neurastenia, se preferirmos o termo clínico em voga no século XIX.
Onde Eros falha, o dispositivo literário convoca Tanatos e as mulheres que
transgridem o espaço doméstico são punidas com a morte. É o caso de Madame
Bovary e Anna Karenina.
Entre Eros e Tanatos, que alternativas nos sugere a
literatura para lidar com este problema literário? Para além das narrativas de
ascetismo redentor ou voluptuosidade da carne, as respostas são raras. Estava a
ficar sem esperanças numa emancipação literária da mulher relativamente à ideia
de amor, quando encontrei uma assombração textual: Thérèse Desqueyroux.
As afinidades com Madame Bovary denotam uma intenção óbvia de
Mauriac em reescrever a história da aparição de um desejo feminino
incontrolável. Como Emma, também Thérèse sufoca numa vida menor na província,
casada com um homem simples e a maternidade não lhe traz qualquer alegria ou
paliativo. Mas o que interessa em Thérèse não são as afinidades que a unem a
Emma Bovary, mas o desacordo que as distingue.
Thérèse é uma leitora ávida e inteligente. Casou com um homem
simples e rude na esperança que ele a simplificasse mas não conseguiu
acomodar-se na ordem da família e salvar-se da sua própria inquietude. Perante
este falhanço, Thérèse encerra-se em si, num isolamento sem lenitivos nem
amantes (“não suspeitava de que um outro
homem lhe pudesse ser de algum socorro. Ao fim e ao cabo, Bernardo não era
assim tão mau. Ela execrava nos romances a pintura de seres extraordinários,
como nunca se encontram na vida”). Como a outra, sonha com uma vida mais
intensa; ao contrário da outra, não se deixa devorar pelos ideais românticos.
Opta antes por intoxicar-se com cigarros e envenenar o marido com arsénico.
Despedimo-nos
de Thérèse em Paris. O
marido liberta-a na grande urbe, libertando-se também da ameaça que esta mulher
sempre significou. Ela tem finalmente o tempo e a solidão que tanto desejou
para se fixar no seu desespero misterioso. Inicialmente, tem medo desta
liberdade desconhecida, é que também ela se sente ameaçada pelo seu poder cego.
Se o marido a pudesse perdoar, imagina-se a voltar com ele de bom grado para o
seu papel de mãe e esposa burguesa. Mas felizmente o desejo de uma vida maior
vence e na última vez que a vemos, Thérèse ri sozinha e pinta os lábios com
minúcia, antes de se perder pelas ruas da cidade. O que acontece depois é um
enigma. Como o desejo feminino.
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