Sexta-feira e sábado são dias de uma
felicidade mansa e terna, pelo simples facto de ter um novo suplemento cultural
para ler. A breve visita ao quiosque alegra a rotina matinal e de jornal colado
ao peito, sigo mais acompanhada para o trabalho ou casa.
Como todas as pequenas euforias, julgava-me
única no seu gozo. Até que um dia viajei para Madrid, juntamente com um livro
de Juan José Millás, e conheci a mãe de uma amiga que ficou encantada por
hospedar uma portuguesa que lia o referido escritor. Falou um pouco da obra e
vida dele e disse-me que ele publicava uma crónica regular num jornal espanhol (à
quarta-feira se a memória não me engana) e que nesse dia acordava sempre muito
feliz. “Porque me lembro que é dia da crónica
do Millás”, completou com um sorriso largo de criança travessa.
Percebi então que a minha alegria semanal
faz parte de um fenómeno mais amplo e partilhado por muitos seres humanos, a
saber, a esperança de que a literatura venha de algum modo colmatar a pobreza
da realidade. Mas a verdade é que, à excepção das crónicas do Pedro Mexia,
encontro nestes suplementos cada vez menos artigos deliciosos de ler. Apesar
deste facto algo incómodo, na semana seguinte a expectativa encontra-se
novamente renovada e contente. Não há nada a fazer, sou uma tipa optimista e
persistente.
E
às vezes, acontecem milagres. A última iluminação veio de uma recensão crítica ao
livro recentemente publicado de J.D. Salinger, Nove Histórias. Da autoria de Gonçalo Mira, o parágrafo final, que
citarei adiante, atafulhado em punchlines,
diagnosticava aquilo que eu busco na próxima leitura, com uma precisão tal que
mais parecia uma doença compendiada pelo DSM. “Nove Histórias é um daqueles livros dos quais não se
sai como se entrou. Pode sair-se mais feliz ou mais triste, dependendo da forma
como se vive a leitura, mas nunca indiferente. É um daqueles livros de contos
que envergonham muitos bons romances. É um daqueles livros que obrigam um
leitor que gosta de sublinhar passagens e de guardar citações a ter um lápis
sempre à mão. É um daqueles livros a que se regressa depois de termos lido
vários livros “apenas” muito bons, em busca do conforto do deslumbramento.”
Para que conste, raramente compro
livros influenciada por estas críticas. E tinha um medo que me pelava do
Salinger. Comecei a ler o À espera no
centeio mas achei melhor não ir mais adiante (já disse que acredito em serial killer texts) e também interrompi prematuramente a leitura de Franny and Zooey, porque na altura
andava com os nervos em franja e o mimetismo com Franny parecia um prenúncio
terrível. No entanto, a míngua literária dos últimos tempos obrigava-me a
arriscar.
Li as nove histórias. E encontrei
nelas o génio e o deslumbramento que a crítica antecipara. Sempre em doses
comedidas, jamais exuberante. Salinger não é um atirador furtivo, as palavras
que usa para descrever uma situação ou personagem são eleitas com parcimónia,
como quem caminha por um campo minado. Nunca falha o alvo. É capaz de dar a uma
personagem carne e osso com uma única frase. Como por exemplo: “Com poucas ou nenhumas aptidões para ficar
só numa sala, Mary Jane levantou-se e foi à janela”.
Nestas histórias, ninguém está a
salvo. Dos nove contos, só um não envolve uma criança ou adolescente. A realidade
fustiga os pés de todos, crescidos ou não, com os seus cruéis alçapões. Os
diálogos balbuciantes dos adultos contrastam com a fluência verbal sofisticada
dos génios pubescentes que Salinger retrata com um invulgar desembaraço. Uma
delas pede a um soldado americano para escrever um conto exclusivamente para
si. Diz-lhe que é uma leitora voraz e que prefere contos sobre sordidez.
Os adultos conversam menos. Não
voltaram da guerra com as faculdades intactas e a sordidez deixou de ser uma
curiosidade excêntrica para se tornar mortalha diária. “Lembras-te do nosso ano de caloiras, quando eu pus aquele vestido
castanho e amarelo que tinha comprado em Boise e a Miriam Ball me disse que já
ninguém usava aquele tipo de vestidos em Nova Iorque, e eu chorei a noite
inteira? – Eloise abanava os braços de Mary Jane. – Eu era boa rapariga – rogou
ela -, não era?”
E pronto, é isto que se pede a um
livro. Que acerte com toda a calma e força nas zonas que os outros deixaram
intactas. Punchlines não tenho. A não
ser que dá vontade de matar para se escrever assim.