quinta-feira, 26 de junho de 2014

para j.d., com amor e sordidez



Sexta-feira e sábado são dias de uma felicidade mansa e terna, pelo simples facto de ter um novo suplemento cultural para ler. A breve visita ao quiosque alegra a rotina matinal e de jornal colado ao peito, sigo mais acompanhada para o trabalho ou casa.
Como todas as pequenas euforias, julgava-me única no seu gozo. Até que um dia viajei para Madrid, juntamente com um livro de Juan José Millás, e conheci a mãe de uma amiga que ficou encantada por hospedar uma portuguesa que lia o referido escritor. Falou um pouco da obra e vida dele e disse-me que ele publicava uma crónica regular num jornal espanhol (à quarta-feira se a memória não me engana) e que nesse dia acordava sempre muito feliz. “Porque me lembro que é dia da crónica do Millás”, completou com um sorriso largo de criança travessa.
Percebi então que a minha alegria semanal faz parte de um fenómeno mais amplo e partilhado por muitos seres humanos, a saber, a esperança de que a literatura venha de algum modo colmatar a pobreza da realidade. Mas a verdade é que, à excepção das crónicas do Pedro Mexia, encontro nestes suplementos cada vez menos artigos deliciosos de ler. Apesar deste facto algo incómodo, na semana seguinte a expectativa encontra-se novamente renovada e contente. Não há nada a fazer, sou uma tipa optimista e persistente.
E às vezes, acontecem milagres. A última iluminação veio de uma recensão crítica ao livro recentemente publicado de J.D. Salinger, Nove Histórias. Da autoria de Gonçalo Mira, o parágrafo final, que citarei adiante, atafulhado em punchlines, diagnosticava aquilo que eu busco na próxima leitura, com uma precisão tal que mais parecia uma doença compendiada pelo DSM. Nove Histórias é um daqueles livros dos quais não se sai como se entrou. Pode sair-se mais feliz ou mais triste, dependendo da forma como se vive a leitura, mas nunca indiferente. É um daqueles livros de contos que envergonham muitos bons romances. É um daqueles livros que obrigam um leitor que gosta de sublinhar passagens e de guardar citações a ter um lápis sempre à mão. É um daqueles livros a que se regressa depois de termos lido vários livros “apenas” muito bons, em busca do conforto do deslumbramento.
Para que conste, raramente compro livros influenciada por estas críticas. E tinha um medo que me pelava do Salinger. Comecei a ler o À espera no centeio mas achei melhor não ir mais adiante (já disse que acredito em serial killer texts) e também interrompi prematuramente a leitura de Franny and Zooey, porque na altura andava com os nervos em franja e o mimetismo com Franny parecia um prenúncio terrível. No entanto, a míngua literária dos últimos tempos obrigava-me a arriscar.
Li as nove histórias. E encontrei nelas o génio e o deslumbramento que a crítica antecipara. Sempre em doses comedidas, jamais exuberante. Salinger não é um atirador furtivo, as palavras que usa para descrever uma situação ou personagem são eleitas com parcimónia, como quem caminha por um campo minado. Nunca falha o alvo. É capaz de dar a uma personagem carne e osso com uma única frase. Como por exemplo: “Com poucas ou nenhumas aptidões para ficar só numa sala, Mary Jane levantou-se e foi à janela”.
Nestas histórias, ninguém está a salvo. Dos nove contos, só um não envolve uma criança ou adolescente. A realidade fustiga os pés de todos, crescidos ou não, com os seus cruéis alçapões. Os diálogos balbuciantes dos adultos contrastam com a fluência verbal sofisticada dos génios pubescentes que Salinger retrata com um invulgar desembaraço. Uma delas pede a um soldado americano para escrever um conto exclusivamente para si. Diz-lhe que é uma leitora voraz e que prefere contos sobre sordidez.
Os adultos conversam menos. Não voltaram da guerra com as faculdades intactas e a sordidez deixou de ser uma curiosidade excêntrica para se tornar mortalha diária. “Lembras-te do nosso ano de caloiras, quando eu pus aquele vestido castanho e amarelo que tinha comprado em Boise e a Miriam Ball me disse que já ninguém usava aquele tipo de vestidos em Nova Iorque, e eu chorei a noite inteira? – Eloise abanava os braços de Mary Jane. – Eu era boa rapariga – rogou ela -, não era?”
E pronto, é isto que se pede a um livro. Que acerte com toda a calma e força nas zonas que os outros deixaram intactas. Punchlines não tenho. A não ser que dá vontade de matar para se escrever assim.

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