domingo, 27 de julho de 2014

Anna Karénina


Anna Arkádievna lia e compreendia, mas era-lhe desagrável ler, isto é, seguir o reflexo da vida de outras pessoas. Queria demasiado viver ela própria. Se lia sobre a heroína do romance que cuidava de um doente, queria caminhar em passos silenciosos pelo quarto do doente; se lia que um membro do Parlamento fazia um discurso, queria ela mesma proferir esse discurso; se lia que Lady Mary cavalgava atrás da matilha e provocava a sua cunhada e surpreendia toda a gente com a sua coragem, queria ela própria fazer o mesmo. Mas não havia nada a fazer, e por isso, manuseando a faca lisa com as suas pequenas mãos, ela forçava-se a ler.
(...)
Reviu todas as suas recordações de Moscovo. Todas elas eram boas, agradáveis. Recordou o baile, recordou Vronsky e o seu rosto apaixonado e submisso, recordou todas as suas relações com ele: não havia nada de vergonhoso. Mas ao mesmo tempo, precisamente nesse ponto das suas recordações, o sentimento de vergonha intensificou-se, como se aqui, ao recordar Vronski, alguma voz interior lhe dissesse: «Quente, muito quente, a escaldar.»
(...)
E o filho, tal como o marido, produziu em Anna um sentimento parecido com a decepção. Imaginava-o melhor do que ele era na verdade. Tinha de descer à realidade para apreciá-lo tal como era.
(...) «Nada disto é novo; mas porque é que eu não reparei antes? - disse Anna para si mesma."


"Estava frente a frente perante a vida, perante a possibilidade de que a sua mulher amasse outro além dele, e era isso que lhe parecia confuso e incompreensível, porque esta era a própria vida. Aleksei Aleksándrovitch sempre vivera e trabalhara na esfera das suas obrigações oficiais, que tratavam dos reflexos da vida. E sempre que se defrontava com a própria vida, desviava-se dela. Agora experimentava um sentimento semelhante ao de um homem que, caminhando tranquilamente por uma ponte sobre um abismo, visse de repente que essa ponte se abatia e que lá em baixo havia um sorvedouro. Esse sorvedouro era a própria vida, e a ponte era a vida artificial que Aleksei Aleksándrovitch tinha vivido. Pela primeira vez ocorreram-lhe perguntas sobre a possibilidade de a sua mulher se apaixonar por alguém, e isso deixou horrorizado.
(...)
Pela primeira vez imaginou vivamente a vida pessoal dela, os seus pensamentos, os seus desejos, e a ideia de que ela podia e devia ter a sua vida particular pareceu-lhe tão assustadora que se apressou a afastá-la. Esse era o sorvedouro para onde ele tinha horror de olhar. Colocar-se em pensamento e em sentimento no lugar de outro ser era um acto mental estranho a Aleksei Aleksándrovitch. Achava esse acto mental uma fantasia nociva e perigosa."

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