domingo, 31 de agosto de 2014
domingo, 24 de agosto de 2014
Isaac Babel
Já me tinham recomendado os contos de Isaac Babel mais do que uma vez mas as vicissitudes da existência foram impedido a leitura até à semana passada.
A penetração no mundo de Babel foi lenta: o tom dos Contos de Odessa selecionados era caótico e a leitura não descolava. Por altura, dos contos do Exército da Cavalaria (também conhecidos por Cavalaria Vermelha), já o meu desejo bolinava mais estável, mas foi nos vários Contos Dispersos que a união se concretizou. Mais uma vez, talvez pela forte influência do narrador na primeira pessoa onde adivinho um pouco a personalidade pubescente do escritor. "História do meu primeiro pombal", "O despertar", "Os primeiros honorários" e Guy de Maupassant" agarraram-me com punho forte e decidido.
"Viver em Tiflis na primavera, ter vinte anos e não ser amado é uma coisa terrível.
(...)
Só me restava ir à procura do amor. E, naturalmente, encontrei-o. Por sorte ou por azar, a mulher que escolhi era uma prostituta (...).
Ó deuses da minha juventude! Cinco dos meus vinte anos tinham sido gastos a inventar histórias, milhares de histórias que me atafulhavam o cérebro. Jaziam no meu coração como sapos numa pedra. Movida pela força da solidão, uma dessas histórias tinha caído na terra. Pelos vistos, o destino tinha decidido que uma prostituta de Tiflis iria ser a minha primeira leitora (...).
Tudo isto aconteceu há muitos anos. Desde essa altura tenho recebido frequentemente dinheiro de editores, de homens ilustres e de judeus que negoceiam em livros. Por vitórias que foram derrotas, por derrotas que se converteram em vitórias, pela vida e pela morte, pagaram-me preços irrisórios, muito inferiores àqueles que tinha recebido na minha juventude da minha primeira «leitora». Mas não sinto raiva por isso. Não a sinto porque sei que não hei de morrer sem voltar a arrancar outra moeda de ouro, e essa será a última, das mãos do amor."
Katherine Anne Porter, aka Miranda
Desde o ano passado, altura em que a Antígona anunciou a publicação de "Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro", que aguardava com impaciência a chegada deste título às minhas mãos. A razão desta impaciência era apenas intuitivamente emocional, convocada pelo título poético, pois nada sabia desta autora.
Em Julho, fui de férias com o Cavalo Pálido e regressei a Lisboa rendida aos sortilégios da escrita de Porter. A qualidade dos três contos era igualmente excelente mas confesso que o que mais me cativou foi a personagem Miranda, eixo central de dois dos contos e afirmado alter ego da autora.
Em Agosto, tornei a partir de férias para o sobrelotado Algarve na companhia da Katherine Anne Porter, desta vez com a antologia "A Torre Inclinada e outros contos", da Relógio d'Água (já agora uma pequena anotação: "Judas em flor e outros contos" teria sido uma escolha de título mais feliz, na minha opinião). E mais uma vez, apesar da inegável qualidade dos vários contos, continuei a preferir os envoltos na respiração de Miranda. Não restam dúvidas que se trata de um alter ego de Katherine, pois doutro modo a sua autenticidade não se tatuaria na pele com uma tal violência poética.
Não me recordo quem disse (ou escreveu) que é possível amar mais personagens que certas pessoas. No caso, os livros de Katherine Anne Porter são do melhor que li este ano e Miranda tornou-se, com todos os seus desassombros, uma das pessoas que mais gosto.
«Miranda observava o irmão com um ar de admiração enquanto este se livrava da pele como se estivesse a tirar uma luva. A carne esfolada emergia, de um escarlate-escuro, lustroso, firme; entre o polegar e o indicador, Miranda sentiu os longos músculos finos com as tiras lisas e prateadas que os uniam às articulações. O irmão ergueu a barriga estranhamente inchada. "Olha", disse-lhe, numa voz baixa e maravilhada. "Ia ter bebés."
Com muito cuidado, ele rasgou a pele fina das costelas centrais até aos flancos, ao que um saco escarlate apareceu. Voltou a rasgar e abriu o saco, e aí estava uma ninhada de coelhos minúsculos, cada um envolvido num fino véu escarlate (...).
Miranda disse: "Oh, eu quero ver", num sussurro. Olhava e olhava - empolgada mas não assustada, pois estava habituada a ver animais mortos em caçadas -, cheia de pena, fascínio de uma espécie de encantamento chocado perante as criaturas maravilhosas e pequenas por si sós, que eram tão bonitas. Tocou numa delas com o maior dos cuidados: "Ah, há sangue a correr por cima deles", disse, e começou a tremer, sem saber porquê. Contudo, queria mais do que qualquer outra coisa ver e compreender. Tendo visto, sentiu de imediato que era como se sempre tivesse compreendido. A própria memória da sua ignorância anterior despareceu, ela sempre compreendera aquilo mesmo (...).
Miranda nunca o revelou, nem alguma vez teve vontade de contar a quem quer que fosse. Pensou em toda a questão preocupante com uma infelicidade confusa durante alguns dias. Depois o episódio foi-se afundando na sua mente, coberto por milhares de impressões acumuladas ao longo de quase vinte anos. Certo dia, ela estava a avançar com cuidado para não pisar poças e resíduos esmagados na rua de um mercado numa cidade desconhecida de um país desconhecido quando, sem aviso, nítido e claro com todas as cores, como se visse através de uma moldura uma cena em que não tivesse mexido nem feito alterações desde o momento em que acontecera, o episódio desse dia longínquo saltou de onde fora sepultado para se colocar em lugar de destaque na sua mente (...). Um vendedor índio tinha erguido à sua frente uma bandeja de doces açucarados tingidos, em formas de inúmeras criaturas pequenas: passarinhos, pintainhos, láparos, cordeiros, bacorinhos. Eram de cores alegres e cheiravam a baunilha, talvez...»
sábado, 23 de agosto de 2014
O AMOR É UMA FACA
SCRIPT
EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA DE FILIPE FLORA REIS
LER DEVAGAR (LX FACTORY)
16 AGOSTO - 3 SETEMBRO
A série de fotografias de Filipe Flora Reis intitulada Script# convida-nos para uma sessão de BDSM. Chegamos munidos da habitual curiosidade voyeurista, como se o sexo dos outros pudesse conter um segredo desconhecido que o torna diferente e mais interessante que o nosso. E recordamos as palavras de Michel Foucault na sua magnífica História da Sexualidade: “Diz-se muitas vezes que não fomos capazes de imaginar prazeres novos. Inventámos pelo menos um prazer diferente: prazer na verdade do prazer, prazer em sabê-la, em expô-la, em descobri-la, no fascínio por vê-la, em dizê-la, em cativar e capturar os outros por ela, em confiá-la em segredo, em detectá-la pela astúcia; prazer específico no discurso verdadeiro sobre o prazer”. É precisamente neste tópico que o olhar fotográfico do autor nos surpreende.
Um olhar frio, clínico, aparentemente sem misericórdia. Filipe Flora Reis não nos dá Imagens estereotipadas de poses agressivas, corpos supliciados e látex, semelhantes às que qualquer leigo terá na sua mente quando pensa em rituais de bondage e dominação sexual. Ele coloca-nos na ombreira de um local que tanto pode ser cenário de um crime como de outra coisa. Um local que nos parece vedado, onde nem a visão alcança a clareza. Os plásticos estão cuidadosamente dispostos. Uma vela alumia a mesa onde os instrumentos se alinham com matemática rectidão, apenas para sublinhar a escuridão do redor. Raras vezes vemos os corpos envolvidos. Apenas um relance fugidio de carnes tensas de expectativa, contidas por cordas.
Aqui o nosso prazer de ver nunca se esclarece: estamos na ombreira daquilo com que é mais difícil estabelecer um acordo: o nosso próprio desejo. O essencial permanece invisível, intocável, fora de campo, numa relação emocional tensa com a frieza dos chicotes. Em Noite e Nevoeiro, Alain Resnais filmou o holocausto, anos depois do mesmo, conseguindo mostrar toda a desumanidade do acontecimento através dos carris da linha de comboio de Auschwitz, por exemplo. Filipe Reis faz o mesmo com esta cena BDSM, expondo o humano e a sua ânsia por um toque íntimo, sem mostrar os seus corpos. Saímos desta exposição com a nossa curiosidade satisfeita. O sexo dos outros é afinal igual ao nosso, todos almejando uma intimidade genuína por meios travessos e perversos, se quisermos recorrer aos adjectivos clínicos.
É que se quisermos aproximar-nos do nosso desejo, teremos de admitir que o que esperamos do outro é que ele nos penetre bem fundo, com a perícia cortante de uma faca, para além de todas as máscaras e artimanhas com que nos fomos velando. E que essa faca revele que o nosso segredo é o desejo de uma comunhão das carnes, muito próxima do canibalismo. Esta é, portanto, uma exposição para veteranos sentimentais. Saímos de lá mais sós. Mais próximos do nosso desejo.
domingo, 17 de agosto de 2014
sábado, 16 de agosto de 2014
Enamoramentos
«Sim, todos somos arremedos de
pessoas que quase nunca chegámos a conhecer, de gente que não se aproximou ou
passou ao largo na vida daqueles que amamos agora, ou que então se deteve mas
se cansou passado um tempo e desapareceu sem deixar rasto ou só a poeirada dos
pés que vão fugindo, ou que morreu para aquele que amamos causando-lhe uma
ferida mortal que quase sempre acaba por fechar. Não podemos pretender ser os
primeiros, ou os preferidos, somos apenas o que está disponível, os restos, as
sobras, os sobreviventes, o que vai ficando, os saldos, e é com esse pouco
nobre que se edificam os maiores amores e se fundam as melhores famílias, é
essa a proveniência de nós todos, produto que somos da casualidade e do
conformismo, dos descartes e das timidezes e dos fracassos alheios, e ainda
assim daríamos às vezes fosse o que fosse para continuarmos juntos de quem
resgatámos um dia de um sótão ou de um leilão, ou que nos coube em sorte num
jogo de cartas ou apanhámos nos desperdícios; inverosimilmente conseguimos
convencer-nos dos nossos infelizes namoros, e são muitos os que julgam ver a
mão do destino no que não é mais do que uma briga de aldeia quando o Verão já
agoniza… Então apagava a luz da mesinha de cabeceira e passados uns segundos as
árvores que o vento agitava tornavam-se-me um pouco visíveis e podia adormecer
observando, ou porventura adivinhando, o baloiçar das suas folhas. «Que sentido
tem isto», pensava eu. «O único sentido que isto tem é que qualquer vislumbre
nos vale nestas tolas e invencíveis circunstâncias, qualquer ponta por onde
pegar. Mais um dia a seu lado, mais uma hora a seu lado, mesmo que essa hora
demore séculos a surgir; a vaga promessa de tornar a vê-lo mesmo que passem
muitas datas pelo meio, muitas datas de vazio. Apontamos na agenda aquelas em
que nos telefonou ou em que o vimos, contamos as que se sucedem sem receber
qualquer notícia, esperamos até alta noite para as considerarmos
definitivamente desertas ou perdidas, não vá acontecer que à última hora toque
o telefone e ele nos sussurre uma tolice que nos faça sentir injustificada
euforia e que a vida é benigna e piedosa. Interpretamos cada inflexão da sua
voz e cada insignificante palavra, que porém dotamos de estúpido e prometedor
significado, e repetimo-la para nós. Apreciamos qualquer contacto, ainda que
tenha sido apenas o estritamente necessário para receber uma desculpa tosca ou
uma desfaçatez ou para ouvir uma mentira pouco ou nada elaborada. «Ao menos
pensou em mim a dado momento», dizemos para connosco agradecidos, ou «Lembra-se
de mim quando está aborrecido, ou se sofreu uma contrariedade com a pessoa que
lhe interessa, que é a Luísa, talvez eu esteja em segundo lugar e isso já é alguma
coisa» (…). Não nos dá cuidado rebaixar-nos diante de nós mesmos, no fim de
contas ninguém nos vai julgar nem há testemunhas. Quando a teia da aranha nos
apanha fantasiamos sem limites, e ao mesmo tempo consolamo-nos com qualquer
migalha, com ouvi-lo, com cheirá-lo, com vislumbrá-lo, com pressenti-lo, com o
facto de estar ainda no nosso horizonte e não ter desaparecido de todo, com o
de ainda não se ver ao longe a poeirada dos seus pés fugindo.»
(…)
A rectificação dos sentimentos é
lenta, desesperadamente gradual. Uma pessoa instala-se neles e torna-se muito difícil
sair, adquire-se o hábito de pensar em alguém com um pensamento determinado e
fixo – e adquire-se também o de o desejar – e não se sabe renunciar a isso da
noite para o dia, ou durante meses e anos, tão longa pode ser a sua aderência.
segunda-feira, 4 de agosto de 2014
Um livro precioso
Quase sem aviso, ela mergulhou nas trevas, de mão dada com
ele, num sono que não era sono, antes uma luz límpida e crepuscular num pequeno
bosque verde, um bosque perigoso e irado cheio de vozes inumanas e ocultas que
cantavam, esganiçadas, como o sibilar de flechas, e viu Adam trespassado por
uma revoada destas flechas cantantes que o atingiam no coração e passaram,
estridentes, a rasgarem o seu caminho através das folhas. Adam tombou para trás
diante dos olhos dela, mas logo se tornou a erguer, ileso e vivo; uma outra
revoada de flechas disparada pelo arco invisível tornou a atingi-lo, e ele
caiu,e, contudo, ei-lo logo diante dela, ileso, numa perpétua morte e ressurreição.
Ela lançou-se para a frente dele, cheia de fúria e de egoísmo interpôs-se entre
ele e a trajectória da flecha, gritando: Não, não – dir-se-ia uma criança
enganada numa brincadeira –, agora é a minha vez, porque é que tens de ser
sempre tu a morrer? e as flechas trespassaram-lhe o coração de lado a lado e
trespassaram também o corpo dele, e ele caiu morto, e ela sobreviveu, e o
bosque assobiava e cantava e bramia, cada ramo, cada folha, cada haste de erva
tinha a sua própria voz acusadora. Ela desatou a correr então, e Adam agarrou-a
no meio do quarto, em plena corrida, e disse-lhe: – Querida, devo ter
adormecido também. O que é que aconteceu para dares gritos tão horríveis?
Depois de ele a ajudar a instalar-se de novo na cama, ela
sentou-se com os joelhos flectidos sob o queixo, de cabeça apoiada nos braços
cruzados, e começou a procurar cuidadosamente as palavras, porque era
importante explicar as coisas com muita clareza. – Foi um sonho muito
esquisito, não sei porque é que acabou por me assustar assim. Havia qualquer
coisa relacionada com um voto de amor antiquado. Eram dois corações gravados na
casca de uma árvore, trespassados pela mesma flecha… sabes como é, Adam…
sexta-feira, 1 de agosto de 2014
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