domingo, 21 de junho de 2015
o jogo do mundo
É sabido que sou uma pessoa insatisfeita. Acho sempre que a vida podia ser muito mais do que é e desgosta-me que a maior parte do tempo seja gasto na organização e logística da «vidinha», ao invés de andarmos todos a viver e a amar delirantemente. A este propósito, recordo e recomendo sempre um pequeno ensaio maravilhoso de Claudio Magris, «As Moedas da Vida».
Em Rayuela, de Júlio Cortázar, vim a encontrar uma representação mais caótica desse mesmo problema, Inevitavelmente, passámos um bom tempo juntos. Por aquelas páginas, que vibram como autênticas cordas bambas, caminha uma boémia conhecida e a mesma inquietação que tanto me mastiga em alguns dias.
(...) um homem respirava até não poder mais, sentia-se viver até ao delírio no próprio acto de contemplar a confusão que o rodeava, perguntando a si próprio se algo em tudo aquilo tinha algum sentido. Toda a desordem se justificava se tendia a sair de si mesma, podia ser que através da loucura se pudesse chegar a uma razão que não fosse essa razão da qual a falência é a loucura. «Ir da desordem à ordem», pensou Oliveira. «Sim, mas que ordem pode ser essa que não se parece com a mais nefanda, terrível e insanável das desordens? A ordem dos deuses chama-se ciclone ou leucemia, a ordem do poeta chama-se antimatéria, espaço duro, flores de lábios trémulos, realmente que grande sbornia que eu tenho em cima do pelo, tenho mesmo que me ir deitar.» E a Maga estava a chorar, Guy tinha desaparecido. Etienne discutia com Perico, e Gregorovius, Wong e Ronald olhavam para um disco que rodava lentamente. Oscar's Blues a trinta e três rotações e meia por minuto, nem mais nem menos, e nessas revoluções Oscar's Blues, claro que com o próprio Oscar ao piano, um tal de Oscar Peterson, pianista com algo de tigre e de veludo, pianista triste e gordo, um tipo sentado ao piano e a chuva a bater na clarabóia, enfim, literatura. (p. 17-18)
(...)
Teria sido muito fácil organizar um esquema coerente, uma ordem de pensamento e de vida, uma harmonia. Bastava a hipocrisia de sempre, elevar o passado a valor de experiência, tirar partido das rugas da cara, do ar vivido que existe nos sorrisos e nos silêncios de mais de quarenta anos. Depois, um facto azul, as frontes prateadas bem penteadas e a entrada nas exposições de pintura, na Sade e em Richmond, a reconciliação com o mundo. Um cepticismo discreto, um ar de estar de regresso, uma entrada cadenciada na maturidade, no casamento, no sermão paterno à hora do assado ou das notas negativas. Se to digo, é porque já vivi o suficiente. Eu, que viajei quando era rapaz. São todas iguais, ouve o que te digo. Falo por experiência própria, meu filho, tu ainda não sabes o que é a vida.
(...) Parado em frente de uma pizzaria na calle Corrientes, Oliveira fazia grandes perguntas a si mesmo: «Então quer dizer que se tem de ficar como o cubo da roda a meio da encruzilhada? Para que é que serve saber ou pensar saber que todos os caminhos são falsos se não o percorrermos com o propósito que já não seja o caminho em si? Não somos Buda, che; aqui não há árvores para nos sentarmos à sua sombra na posição de lótus. Aparece um polícia e passa-nos logo uma multa. (p. 48-49).
Para já, fico-me pelo «primeiro livro», Sob o facínio das palavras de Cortázar, tentei seguir de imediato para o «segundo livro», mas a leitura repetida de alguns capítulos quebrava o encanto. Achei melhor fazer uma pausa e esquecer o assombro que é todo este livro, em especial o capítulo 41. Jamais tinha sentido uma tão grande vertigem literária.
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