«Então, subitamente, o
ronco cavo, prolongado, duma sirene irrompeu através da janela aberta e inundou
o quarto quase às escuras – era um grito de dor, uma dor exigente, negra, sem
limites; um grito negro de pez e glabro como o dorso de uma baleia e carregado
com as paixões de todas as marés, com a memória de todas as viagens, as
alegrias, as humilhações: o mar estava a gritar. Com toda a loucura e
cintilação da noite, a sirene ressoava, transportando ao largo, do centro morto
do mar, toda a sua sede do néctar negro que inundava aquele quartinho.
Tsukazaki voltou-se com
uma rápida torção dos ombros e olhou lá para fora, para a água.
Nesse mesmo instante
tudo quanto ficara acumulado no peito de Noboru desde o seu primeiro dia de
vida se libertou e consumou. Até ao ressoar da sirene tudo tinha sido um esboço
apenas, uma tentativa. Preparados os mais finos materiais, tudo estava pronto,
convergindo para o momento da revelação. Mas um elemento faltava: o poder que
transfigurasse os fragmentos esparsos da realidade num palácio radioso. Então,
com a sirene, as partes juntaram-se. Formando um só todo, havia a lua e um
vento de febre, a carne excitada de um homem e duma mulher, suor, perfume, as
cicatrizes duma vida de mar, a confusa lembrança de portos de todo o mundo, um
buraco na parede que não permitia respirar, o coração de ferro dum rapazinho –
mas estas cartas tiradas de um baralho cigano estavam espalhadas, não mostravam
nada. A ordem universal, que o grito da sirene finalmente estabelecera,
revelava um círculo invencível de vida – as cartas emparelhavam-se: Noboru e
mãe – mãe e homem – homem e mar – mar e Noboru…
Estava perturbado,
molhado, com êxtase. Tinha a certeza de ter visto desenrolar-se um novelo,
cujos fios traçavam uma figura sagrada. E isto tinha que ser protegido: tudo
quanto sabia é que era o seu criador de treze anos.
– Se isto alguma vez
for destruído, será o fim do mundo – murmurava, quase a sonhar. Acho que faria tudo para o impedir, por mais
terrível que seja!»
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