domingo, 27 de março de 2016

A glória, como vós sabeis, é uma coisa amarga.



«Então, subitamente, o ronco cavo, prolongado, duma sirene irrompeu através da janela aberta e inundou o quarto quase às escuras – era um grito de dor, uma dor exigente, negra, sem limites; um grito negro de pez e glabro como o dorso de uma baleia e carregado com as paixões de todas as marés, com a memória de todas as viagens, as alegrias, as humilhações: o mar estava a gritar. Com toda a loucura e cintilação da noite, a sirene ressoava, transportando ao largo, do centro morto do mar, toda a sua sede do néctar negro que inundava aquele quartinho.
Tsukazaki voltou-se com uma rápida torção dos ombros e olhou lá para fora, para a água.
Nesse mesmo instante tudo quanto ficara acumulado no peito de Noboru desde o seu primeiro dia de vida se libertou e consumou. Até ao ressoar da sirene tudo tinha sido um esboço apenas, uma tentativa. Preparados os mais finos materiais, tudo estava pronto, convergindo para o momento da revelação. Mas um elemento faltava: o poder que transfigurasse os fragmentos esparsos da realidade num palácio radioso. Então, com a sirene, as partes juntaram-se. Formando um só todo, havia a lua e um vento de febre, a carne excitada de um homem e duma mulher, suor, perfume, as cicatrizes duma vida de mar, a confusa lembrança de portos de todo o mundo, um buraco na parede que não permitia respirar, o coração de ferro dum rapazinho – mas estas cartas tiradas de um baralho cigano estavam espalhadas, não mostravam nada. A ordem universal, que o grito da sirene finalmente estabelecera, revelava um círculo invencível de vida – as cartas emparelhavam-se: Noboru e mãe – mãe e homem – homem e mar – mar e Noboru…
Estava perturbado, molhado, com êxtase. Tinha a certeza de ter visto desenrolar-se um novelo, cujos fios traçavam uma figura sagrada. E isto tinha que ser protegido: tudo quanto sabia é que era o seu criador de treze anos.

– Se isto alguma vez for destruído, será o fim do mundo – murmurava, quase a sonhar. Acho que faria tudo para o impedir, por mais terrível que seja!»

Sem comentários: