Tudo
depende da dosagem, já dizia o Deleuze.
Ora,
a mim só me interessam as doses mais fortes. Acontece-me sempre assim e já
aceitei esta minha triste condição. Na literatura, no amor, na embriaguez – tudo
ou nada. Só me agradam bebidas fortes, whisky e aguardentes, homens corajosos e
poéticos (naturalmente que estou solteira há muitos anos), paixões-abismo e
livros que são como adagas fundas, labaredas cortantes ou sismos vulcânicos. Em
suma, tenho um pobre coração que se alimenta apenas de machadadas. Que os
deuses tenham piedade de mim.
Mas,
oh, quão feliz eu sou, quando encontro a dose certa! Nessas ocasiões, cada vez
mais raras (once you get locked into a
serious drug collection, the tendency is to push it as far as you can), toda
a minha insatisfação profunda desaparece e o meu corpo ascende aos céus, numa
alegria rodopiante e desumana. Então, tenho a certeza, sou mais luminosa que os
demais e raros são os que me alcançam no meu contentamento tão puro. Está
escrito por todo o grande texto da cultura – só os que pernoitam nas
profundezas subterrâneas do inferno podem conhecer o êxtase mais elevado –, e
assim parece ser.
O
meu último êxtase deu-se com um livrinho quase esquecido, Confusão de Sentimentos, de Stefan Zweig. Oito histórias curtas que
me ofertaram oito noites plenas de solidão aconchegada. Porque, apesar da
retórica hegemónica, a solidão é um capital poderoso e faz muita falta. Quanto
ao conteúdo do livro, não me pretendo alongar muito pois, como dizia o Camões, melhor
é experimentá-lo que julgá-lo. Direi apenas que todas as histórias são
sublimes, que todas falam de uma determinada confusão de sentimentos, do
mistério singular que compõe as emoções, e que o Zweig, contemporâneo de Freud,
é um dos melhores dissecadores da alma humana que tive o prazer de ler.
Todos
os contos são excelentes, nenhum se distingue como menor, mas houve um em
particular que me comoveu noite adentro. Chama-se Coração Destroçado e descreve de forma magistral, passo a passo,
como um coração se parte e se aparta da comunidade humana, para se tornar
apenas um órgão fisiológico.
Aos poucos,
recuando passo a passo, a dor foi-o abandonando: a mão infernal deixara de lhe
revolver o corpo martirizado como uma garra em brasa. Mas mantinha-se um
não-sei-quê surdo, que não podia chamar-se propriamente dor, algo indefinido,
estranho, que lhe pesava e parecia escavar uma galeria dentro de si. O velho
jazia, de olhos fechados, toda a sua atenção concentrada naquilo que assim
suavemente o moía e consumia: parecia-lhe que aquela força estranha e
desconhecida cavava qualquer coisa dentro de si, primeiro com um instrumento
aguçado e, agora, com outro menos pontiagudo; tinha a impressão que algo se
desagregava e desligava, fibra a fibra, no interior do corpo fechado. Já não o
dilacerava com a mesma selvajaria. Já não lhe causava dor. No entanto, sentia
qualquer coisa a arder, a corromper-se silenciosamente dentro de si; qualquer
coisa começava a extinguir-se. Tudo o que vivera, tudo o que amara se apagava
na lenta combustão daquela chama, esvaindo-se em fumo negro antes de cair,
exausto e carbonizado, nas cinzas mornas da indiferença. Alguma coisa se estava
a passar, sentia-o surdamente, alguma coisa se estava a passar enquanto
permanecia assim deitado e passava em revista, ansioso, a sua existência. Qualquer
coisa estava a chegar ao fim. O quê? Espreitava e voltava a espreitar para
dentro de si próprio.
E, pouco a
pouco, começou a destruição do seu coração.
E
agora, regresso à vidinha, com as mãos vazias e a alma rota. Até à próxima
dose.