domingo, 24 de abril de 2016

esqueçam lá a matilde campilho



Uma vez quiseram-me louca, a arder
e eu ardi com a discrição de
um fogo posto
porque a cura vai na mesma direcção
que a nossa febre

Ateei-me como um relâmpago inesperado
à luz do dia
Eu parecia uma basílica em chamas
de altar por estrear, a arder sozinha

Sempre me recusei a arder como os outros

Ardam-se mais à esquerda ou mais à direita
mais a vento de sul ou de norte,
mas labaredem-se, sejam fogos que ardem!

Porque pior que a desdita loucura
é toda a gente andar em brasa
mas ninguém chegar a incêndio

E no fim são todos cinza

*

As deusas tinham todas ficado em casa
por decência
não mergulharam neste lodo onde
circulam os patos e desmaiam as cicatrizes
das árvores.
Não mergulharam na ferocidade de me
ter aqui sentada
em absoluta explosão de mim
em absoluta e violenta sintonia
dos átomos, dos pardais,
da tua lembrança, disparada em flecha.

Falei-lhes do abandono.
Falei-lhes de incontrolável.
Podia espetar o lápis no peito e falar só
com os olhos
porque sou a intenção
sou o acolhimento em útero de todas as
mulheres sentadas frias
e flores.

Quero o que é absolutamente sujo
porque dói.
Sou mais plena quando desaparecem
as últimas gotas limpas e o sol ataca em
uníssono mundo.
Prefiro o que é absolutamente puro
porque mata
devagarinho, incontrolavelmente,
como um final suspenso na boca à tardinha,
sem deus nem medo.

Falei-lhes da saudade muda e da
destruição dominical,
que sou uma vida inteira em melancolia
de um só pé
em desassossegada observação de patos.

As deusas não vieram e neste jardim não
há alma sentada que não me estremeça um
dente.
Falei-lhes de entrar pelo amor adentro com
a vertigem dos afogados e radiosa loucura.
Falei-lhes dos meus dedos que inscrevem o
esconso e da minha cabeça inconcreta.

Disse-lhes:
não contrario a vontade do que está morto
mas a minha imaginação dói-me tanto
na boca que me refaz amantes,
incendeia-me poemas.
A minha imaginação vive sozinha, sovada,
entre este laguinho lamacento e os subúrbios
do Alto Minho.

Toda esta minha indecência não me deixa
a condição de ser deusa.
Esta minha galopante indecência é a
maravilha que me curva as costas e
a tranquilidade de estarmos sós,
perdidos na consagração da verdade efémera.

E tudo é outro nome que não este.

*

Quanto mundo há nesta sala toda disposta
em grandes pinturas além-dedos
das minhas tardes noites, indubitáveis
terríficas.
Quanto tremor neste lado e no outro
e naquela parede e na outra
e naquela porta acolá e ainda mais um
empurrão no móvel para abafar tudo isto
como quem deseja, impossível,
o incógnito lado de lá.

Do lado de cá, despeja-se uma garrafa
transformada depois em pensamentos
rasgados no lado de dentro
e numa flor nascida ali, junto à parede
cansada, cheirada em detergente seco.

Uma gata que pula além-chão atira-me
às consequências de um riso inato.
Há coisas inatas por lados demais
e são essas as que puxam as grandes
rodas e as desviam dos buracos.
Eu tenho medo.
Anda tudo a desviar-se dos buracos
quando estamos, em tudo, dentro deles.

Que sabemos nós desta tarde?
Que sabemos nós, dos pés fora da cama,
a calçarem-se sempre em par, coitados,
sempre comandados, sem vontade?
O que nos comanda a nós que obrigamos
os nossos pés a existirem?
Como esta caneca cheia.

Abro a porta às gatas ciente dos meus
pés, mas só um vai lá fora.
E depois há o momento em que regressa,
com as suas patinhas comandadas e sem
vontade,
as suas orelhinhas comandadas,
o seu miar comandado,
a cabecinha comandada,
o seu amor comandado
numa casa comandada.

E eu lanço-me a esta laranja e descasco-a
comandada, inata, voraz de nona sinfonia,
de solidão, de sexo, de paradoxos,
rebentada em mim.
E quando me deito sou centopeia de
mil almas que se vão juntando,
perdidas.

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