Uma
vez quiseram-me louca, a arder
e
eu ardi com a discrição de
um
fogo posto
porque
a cura vai na mesma direcção
que
a nossa febre
Ateei-me
como um relâmpago inesperado
à
luz do dia
Eu
parecia uma basílica em chamas
de
altar por estrear, a arder sozinha
Sempre
me recusei a arder como os outros
Ardam-se
mais à esquerda ou mais à direita
mais
a vento de sul ou de norte,
mas
labaredem-se, sejam fogos que ardem!
Porque
pior que a desdita loucura
é
toda a gente andar em brasa
mas
ninguém chegar a incêndio
E
no fim são todos cinza
*
As
deusas tinham todas ficado em casa
por
decência
não
mergulharam neste lodo onde
circulam
os patos e desmaiam as cicatrizes
das
árvores.
Não
mergulharam na ferocidade de me
ter
aqui sentada
em
absoluta explosão de mim
em
absoluta e violenta sintonia
dos
átomos, dos pardais,
da
tua lembrança, disparada em flecha.
Falei-lhes
do abandono.
Falei-lhes
de incontrolável.
Podia
espetar o lápis no peito e falar só
com
os olhos
porque
sou a intenção
sou
o acolhimento em útero de todas as
mulheres
sentadas frias
e
flores.
Quero
o que é absolutamente sujo
porque
dói.
Sou
mais plena quando desaparecem
as
últimas gotas limpas e o sol ataca em
uníssono
mundo.
Prefiro
o que é absolutamente puro
porque
mata
devagarinho,
incontrolavelmente,
como
um final suspenso na boca à tardinha,
sem
deus nem medo.
Falei-lhes
da saudade muda e da
destruição
dominical,
que
sou uma vida inteira em melancolia
de
um só pé
em
desassossegada observação de patos.
As
deusas não vieram e neste jardim não
há
alma sentada que não me estremeça um
dente.
Falei-lhes
de entrar pelo amor adentro com
a
vertigem dos afogados e radiosa loucura.
Falei-lhes
dos meus dedos que inscrevem o
esconso
e da minha cabeça inconcreta.
Disse-lhes:
não
contrario a vontade do que está morto
mas
a minha imaginação dói-me tanto
na
boca que me refaz amantes,
incendeia-me
poemas.
A
minha imaginação vive sozinha, sovada,
entre
este laguinho lamacento e os subúrbios
do
Alto Minho.
Toda
esta minha indecência não me deixa
a
condição de ser deusa.
Esta
minha galopante indecência é a
maravilha
que me curva as costas e
a
tranquilidade de estarmos sós,
perdidos
na consagração da verdade efémera.
E
tudo é outro nome que não este.
*
Quanto
mundo há nesta sala toda disposta
em
grandes pinturas além-dedos
das
minhas tardes noites, indubitáveis
terríficas.
Quanto
tremor neste lado e no outro
e
naquela parede e na outra
e
naquela porta acolá e ainda mais um
empurrão
no móvel para abafar tudo isto
como
quem deseja, impossível,
o
incógnito lado de lá.
Do
lado de cá, despeja-se uma garrafa
transformada
depois em pensamentos
rasgados
no lado de dentro
e
numa flor nascida ali, junto à parede
cansada,
cheirada em detergente seco.
Uma
gata que pula além-chão atira-me
às
consequências de um riso inato.
Há
coisas inatas por lados demais
e
são essas as que puxam as grandes
rodas
e as desviam dos buracos.
Eu
tenho medo.
Anda
tudo a desviar-se dos buracos
quando
estamos, em tudo, dentro deles.
Que
sabemos nós desta tarde?
Que
sabemos nós, dos pés fora da cama,
a
calçarem-se sempre em par, coitados,
sempre
comandados, sem vontade?
O
que nos comanda a nós que obrigamos
os
nossos pés a existirem?
Como
esta caneca cheia.
Abro
a porta às gatas ciente dos meus
pés,
mas só um vai lá fora.
E
depois há o momento em que regressa,
com
as suas patinhas comandadas e sem
vontade,
as
suas orelhinhas comandadas,
o
seu miar comandado,
a
cabecinha comandada,
o
seu amor comandado
numa
casa comandada.
E
eu lanço-me a esta laranja e descasco-a
comandada,
inata, voraz de nona sinfonia,
de
solidão, de sexo, de paradoxos,
rebentada
em mim.
E
quando me deito sou centopeia de
mil
almas que se vão juntando,
perdidas.
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