As minhas
viagens começam muito antes da viagem propriamente dita. Uns meses antes, leio
guias, livros de viagens e pesquiso sobre a literatura de cada país, buscando
obras e escritores que ainda não conheço. Faço depois uma lista de livrarias a
visitar e dos livros a comprar.
Antes de ir
para a Bósnia, comecei a ler Malboro
Sarajevo, de Miljenko Jergovic. Para além d’ O Pátio Maldito, de Ivo Andric, que já tinha lido e gostado muito,
era o que havia da zona nas minhas estantes. Composto por várias histórias
curtinhas, do tamanho de um cigarro, todas relacionadas com o cerco a Sarajevo,
este livro falou-me com a mesma bondade, resiliência e humor sombrio que
encontrei nos olhos daquele povo.
Assim, uma vez,
enquanto cavava a sepultura de Salem Bicakcija, que o franco-atirador apanhara
no pátio, chegou um jornalista americano, ouviu que eu tinha vivido muito tempo
na Califórnia, que tinha visto o mundo, que conhecia a língua e as pessoas, e
que agora estava outra vez a trabalhar como coveiro, pelo que lhe pareceu que
lhe pudesse dizer o que aconteceu com as pessoas em Sarajevo. Estou eu assim a
cavar, ele está de pé e faz perguntas, diz que lhe interessa tudo, e eu então
pergunto-lhe tudo sobre os vivos, ou tudo sobre os mortos, ele diz sobre uns e
sobre outros, mas eu digo-lhe que não se pode falar dos vivos e dos mortos ao
mesmo tempo porque os mortos têm a vida atrás de si, enquanto os vivos não
sabem o que ainda os espera e com o que ainda podem estragar ou envilecer
aquilo que já viveram, é mais difícil para os vivos, digo-lhe eu, porque ninguém
sabe onde estará a sua sepultura, no vale ou na encosta, ou se alguém se
lembrará como, cabisbaixos ou alegres, andavam pelo dunya. Pergunta-me o americano o que é o dunya, não sei mesmo encontrar-lhe uma palavra inglesa, sorriu e digo-lhe –
isto é, meu jornalista, algo como: all over the world. Para alguns all over the world
é de Bascarsija a Marijindvor, para outros é à volta do globo terrestre. E
feliz, tal como infeliz, pode ser quer um quer outro. Ele anui com a cabeça,
vejo que nem percebe o que lhe estou a dizer, nem está lá muito interessado,
mas eu estou bem na mesma, sabe-me bem ter alguém com quem falar enquanto estou
a cavar (…). O americano continua a assentir, eu digo-lhe que desculpe a
indiscrição de eu ter dito algo desagradável sobre a sua pátria, e ele, parvo,
pergunta-me então se estou preparado para morrer nesse instante. «Pensei»,
digo-lhe, «numa centena de maneiras de sobreviver e cada uma me lembra
igualmente o prazer e a alegria, ninguém é mais feliz do que eu quando escapo a
uma granada, e depois ainda venho para junto dos meus mortos cavar estas valas,
no lugar mais bonito e com a melhor vista, e sei que eles, tal como eu,
veneravam a vida e que a morte lhes veio da mesma maneira que a conta te escapa
nos flippers depois de teres
conseguido cem vezes cem pontos, podias até ter conseguido mais, mas, lá está,
não conseguiste. A vida vale só se sabes que a tens, senão a morte apanha-te
desprevenido, nem sabes que viveste, a mulher e os filhos choram-te porque
desperdiçaste os anos sem juízo, como uma galinha que não sabe morrer quando
lhe cortas a cabeça.» Pergunta-me o americano o que mudou nos rostos das
pessoas, e eu digo-lhe que não sei, mas que também o tinha notado, que de algum
modo são mais bonitos e solenes, e ele então pergunta porque se matam se estão
tão solenes. (…) Arrependi-me de ter dito fosse o que fosse ao americano, ou
que pelo menos não lhe tivesse dito que nós somos um povo infeliz e indefeso
para quem atiram as bestas dos tchetniks
e que ficámos todos loucos de infelicidade. Ele escrevê-lo-ia assim, e eu não
pareceria um idiota nem a mim nem a ele.
Os muçulmanos bósnios agradaram-me tanto que a próxima viagem será a Marrocos e, se
tempo houver, também à Argélia. Naturalmente, todas as sugestões literárias
serão bem-vindas.