domingo, 18 de setembro de 2016

Sobre o Teatro das Marionetas (1810)



«Portanto, meu excelente amigo, disse o Senhor C…, está agora na posse de tudo o que é necessário para me compreender. Vemos que, no mundo orgânico, à medida que a reflexão se torna mais obscura e mais fraca, a graciosidade se apresenta cada vez mais radiosa e soberana. – Porém, tal como a intersecção de duas linhas por um lado de um ponto, depois de percorrido o trajecto pelo infinito, se volta a verificar subitamente pelo outro lado do mesmo ponto, ou como a imagem do espelho côncavo, depois de se afastar até ao infinito, volta subitamente a surgir perante nós: assim também a graciosidade, depois de, por assim dizer, o conhecimento ter atravessado o infinito, volta a apresentar-se; e de tal maneira que surge em simultâneo e de modo mais puro naquela estrutura de um corpo humano que ou não possui consciência alguma, ou possui uma consciência infinita, i.e. ou no boneco articulado, ou num deus.
Sendo assim, disse eu, um pouco abstraído, teríamos de voltar a comer da Árvore do Conhecimento para regressarmos ao estado da inocência.

Sem dúvida, respondeu ele; esse é o último capítulo da história do mundo.»

Heinrich von Kleist

let me tell you about winds

Malboro Sarajevo



As minhas viagens começam muito antes da viagem propriamente dita. Uns meses antes, leio guias, livros de viagens e pesquiso sobre a literatura de cada país, buscando obras e escritores que ainda não conheço. Faço depois uma lista de livrarias a visitar e dos livros a comprar.

Antes de ir para a Bósnia, comecei a ler Malboro Sarajevo, de Miljenko Jergovic. Para além d’ O Pátio Maldito, de Ivo Andric, que já tinha lido e gostado muito, era o que havia da zona nas minhas estantes. Composto por várias histórias curtinhas, do tamanho de um cigarro, todas relacionadas com o cerco a Sarajevo, este livro falou-me com a mesma bondade, resiliência e humor sombrio que encontrei nos olhos daquele povo.

Assim, uma vez, enquanto cavava a sepultura de Salem Bicakcija, que o franco-atirador apanhara no pátio, chegou um jornalista americano, ouviu que eu tinha vivido muito tempo na Califórnia, que tinha visto o mundo, que conhecia a língua e as pessoas, e que agora estava outra vez a trabalhar como coveiro, pelo que lhe pareceu que lhe pudesse dizer o que aconteceu com as pessoas em Sarajevo. Estou eu assim a cavar, ele está de pé e faz perguntas, diz que lhe interessa tudo, e eu então pergunto-lhe tudo sobre os vivos, ou tudo sobre os mortos, ele diz sobre uns e sobre outros, mas eu digo-lhe que não se pode falar dos vivos e dos mortos ao mesmo tempo porque os mortos têm a vida atrás de si, enquanto os vivos não sabem o que ainda os espera e com o que ainda podem estragar ou envilecer aquilo que já viveram, é mais difícil para os vivos, digo-lhe eu, porque ninguém sabe onde estará a sua sepultura, no vale ou na encosta, ou se alguém se lembrará como, cabisbaixos ou alegres, andavam pelo dunya. Pergunta-me o americano o que é o dunya, não sei mesmo encontrar-lhe uma palavra inglesa, sorriu e digo-lhe – isto é, meu jornalista, algo como: all over the world. Para alguns all over the world é de Bascarsija a Marijindvor, para outros é à volta do globo terrestre. E feliz, tal como infeliz, pode ser quer um quer outro. Ele anui com a cabeça, vejo que nem percebe o que lhe estou a dizer, nem está lá muito interessado, mas eu estou bem na mesma, sabe-me bem ter alguém com quem falar enquanto estou a cavar (…). O americano continua a assentir, eu digo-lhe que desculpe a indiscrição de eu ter dito algo desagradável sobre a sua pátria, e ele, parvo, pergunta-me então se estou preparado para morrer nesse instante. «Pensei», digo-lhe, «numa centena de maneiras de sobreviver e cada uma me lembra igualmente o prazer e a alegria, ninguém é mais feliz do que eu quando escapo a uma granada, e depois ainda venho para junto dos meus mortos cavar estas valas, no lugar mais bonito e com a melhor vista, e sei que eles, tal como eu, veneravam a vida e que a morte lhes veio da mesma maneira que a conta te escapa nos flippers depois de teres conseguido cem vezes cem pontos, podias até ter conseguido mais, mas, lá está, não conseguiste. A vida vale só se sabes que a tens, senão a morte apanha-te desprevenido, nem sabes que viveste, a mulher e os filhos choram-te porque desperdiçaste os anos sem juízo, como uma galinha que não sabe morrer quando lhe cortas a cabeça.» Pergunta-me o americano o que mudou nos rostos das pessoas, e eu digo-lhe que não sei, mas que também o tinha notado, que de algum modo são mais bonitos e solenes, e ele então pergunta porque se matam se estão tão solenes. (…) Arrependi-me de ter dito fosse o que fosse ao americano, ou que pelo menos não lhe tivesse dito que nós somos um povo infeliz e indefeso para quem atiram as bestas dos tchetniks e que ficámos todos loucos de infelicidade. Ele escrevê-lo-ia assim, e eu não pareceria um idiota nem a mim nem a ele.


Os muçulmanos bósnios agradaram-me tanto que a próxima viagem será a Marrocos e, se tempo houver, também à Argélia. Naturalmente, todas as sugestões literárias serão bem-vindas.