Com o aproximar do final do ano, os suplementos culturais
dedicam-se a eleger os livros do ano. Tornou-se um hábito aguardar estas listas
com expectativa e posteriormente anotar os títulos que me tinham escapado ou
aos quais a solidão necessária tinha faltado. Porém, nos últimos três anos,
tais listas não me têm trazido a satisfação tão almejada. E pergunto-me se
estará a produção editorial mais empobrecida, ou o empobrecimento será da
crítica, ou pior ainda, de mim mesma, cada vez mais sóbria, menos propensa a
arrebatamentos.
Embora não tenha concentrado as minhas leituras em
publicações de 2016, ouso a leviana afirmação: O CASO DO CAMARADA TULAEV foi
dos melhores livros do ano. E a E-Primatur é um dos projectos editoriais mais
recentes que acompanho com muitas ganas, sobretudo pela elegância com que têm
demonstrado que não é preciso fuçar juntamente com sete cães para encontrar um
osso. Resta ainda, para nossa graça e contentamento, muita literatura,
negligenciada pelo cânone e pelos merceeiros de serviço. Sim, literatura dessa,
grande ou alta, como preferirdes apelidá-la.
Diz o vulgo que as ninfomaníacas são tomadas pela compulsão
sexual justamente porque não conseguem atingir o orgasmo. Pois assim sucede
comigo no que diz respeito às leituras: leio, leio e raras vezes me satisfaço. Torno
a ler, leio mais, sofregamente. E nada. Que pessoa esquisita me tornei! Ter-se-á
a minha mente couraçado, secado definitivamente o solo fértil das primeiras
leituras, em que tudo penetra com a força de dez marteladas, em que é possível
sentir a vastidão do universo na própria pele? Mas, ah, as surpresas ainda
sobrevêm e eis que um livro – sobre purgas estalinistas, vá-se lá acreditar –
me agarra, os pés descolam do chão e lá vou eu, inteira em mãos e retina, rumo
a essa distante e tão amada literatura! É assim, os cometas nascem à noite,
justamente como reza o primeiro capítulo do livro, e há um fogo que se acende e
não queremos mais apartarmo-nos da beleza. Jamais!
Kostia ponderava a compra de um par de sapatos havia semanas quando uma
súbita fantasia, que até a ele o surpreendeu, deitou por terra todos os
cálculos que fizera. Se passasse sem cigarros, cinema e, dia sim, dia não, sem
a refeição do meio-dia, economizaria em seis semanas os cento e quarenta rublos
necessários para a aquisição de um bom par de botins que a simpática vendedora
de uma loja de artigos em segunda mão lhe prometera reservar «por baixo do
pano». Entretanto, ia caminhando alegremente sobre solas de cartão renovadas
todas as noites. Felizmente, o tempo continuava bom. Quando já tinha setenta
rublos, Kostia deu-se o prazer de ir ver os seus futuros sapatos, escondidos na
obscuridade de uma estante (…).
– Esteja tranquilo – disse-lhe a pequena vendedora –, os seus botins
ainda cá estão, não se preocupe…
(…) Depois do momento em que aqueles olhos profundos – da cor
verde-azulada de alguns bibelôs chineses expostos na vitrina do balcão – o
fixaram, o olhar de Kostia passeou-se pelas jóias, pelos corta-papéis, pelos
relógios, pelas caixas de rapé, pelas outras antigualhas, até se deter por
acaso num pequeno retrato de mulher com uma moldura de ébano, tão pequeno que
lhe poderia caber na palma de uma mão…
– Quanto custa isto? – perguntou Kostia num tom surpreendido.
– Setenta rublos; é caro, sabe? – responderam os lábios encantados.
Largando um brocado vermelho e dourado que se encontrava sobre o
balcão, mãos igualmente encantadas foram buscar a miniatura. Kostia agarrou
nela, perturbado por segurar entre os seus dedos grossos e sujos aquela imagem,
aquela imagem viva, aquela imagem mais extraordinária que viva, aquela
minúscula janela negra que enquadrava uma cabeça loira coroada por um diadema,
um belo rosto oval cujos olhos eram plenos de uma atenção, de uma doçura, de
uma força, de um mistério sem fundo…
– Eu levo-o – disse ele surdamente e para sua própria surpresa.
Assim começa a história, e que começo! Enquanto ascendo não
consigo qualificar o que me rapta e no meu enlevo balbucio apenas: tão russo!
tão próximo da minha alma! Tanta pobreza e injustiça suportada, tanta
sobriedade acumulada, que só o desvario pode conciliar por momentos uma
consciência fustigada para além do humanamente suportável. Seis semanas a
poupar para um par de sapatos, como não sonhar com uma vida mais livre e
espontânea, mais bela? A vida não nasceu para ser poupada, ela tende, à mínima
guinada, para o dispêndio, para a combustão. Por isso as ervas daninhas insistem
sobre os passeios calcetados, o pó se deposita sobre as nossas estantes, os
vermes devoram os nossos ossos e o tempo elide as letras impressas. A natureza,
o caos, tudo o que vive e secretamente se transmuta, está constantemente à
espreita, à espera da sua oportunidade para respirar e insuflar o universo da
eterna novidade.
O resto é enredo, engenhosamente articulado. Toda a intriga
é despoletada pelo assassinato do camarada Tulaev. O leitor sabe desde o início
quem o matou, razão pela qual ainda se indigna mais com os inquéritos absurdos
em torno desse crime. No entanto, de todo esse absurdo é possível extrair
várias aproximações racionais ao entendimento da máquina estalinista e os modos
que esta achou para devir numa espécie de carnificina automática, capaz de
ceifar tudo e todos, qual Saturno devorando os próprios filhos. Ninguém está
salvo – os que ontem acusaram e executaram, encontram-se no dia seguinte
matematicamente desviados para o lado das vítimas.
– Não sei mais nada, tenho ordens precisas. É tudo, cidadão.
Rublev foi-se embora, estranhamente leve, levado por ideias semelhantes
a um voo de aves agitadas. É isto, a armadilha – a fera apanhada na armadilha,
és tu a fera apanhada, velho revolucionário, és tu… E estamos todos aqui na
armadilha… Não nos teremos enganado completamente algures? Patifes, patifes! Um
corredor vazio, mal iluminado, a grande escadaria de mármore, a porta giratória
dupla, a rua, o frio seco, o automóvel negro do mensageiro. Perto deste último,
que fumava enquanto estava à espera, um outro homem, de voz baixa e pastosa:
– Camarada Rublev, é-lhe solicitado que nos acompanhe para uma breve
conversa…
(…)
As pequenas ruas de dois tons, com o branco da neve e o azul da noite,
iam desfilando nos vidros. «Mais devagar», ordenou Rublev, e o motorista
obedeceu. Rublev abriu a janela para poder ver melhor uma nesga de rua, não
importava qual, o passeio cintilava, coberto de neve virgem. Uma velha casa
senhorial do século passado, com um frontão suportado por colunas, parecia
dormir há cem anos, atrás da sua vedação gradeada. Os troncos prateados das
bétulas luziam tenuemente no jardim. Era tudo – para sempre, num perfeito silêncio,
numa pureza de sonho. Cidade debaixo do mar, adeus. O motorista acelerou. –
Somos nós que estamos debaixo do mar. Não faz diferença, fomos fortes.
Victor Serge leva-nos numa viagem às profundezas dessa
máquina, permitindo-nos inspecionar as várias roldanas e, o mais genial na
minha opinião, mostrar-nos como todo esse terror foi perpetrado com a
colaboração de homens bem intencionados, extremamente fiéis ao partido e, como
tal, dispostos a aceitar toda a humilhação e pobreza para não desonrar o
partido. O mecanismo totalitário deriva obviamente de Estaline mas, a certo
ponto da narrativa, percebemos que este se tornou automático e nem o próprio chefe
poderiam parar esta gigante máquina de ceifar vidas. Sucede sempre isso, quando
um projecto para melhorar a humanidade se torna tão programático que perde de
vista o valor dessa mesma humanidade. O CASO DO CAMARADA TULAEV é exímio na descrição
dessa humanidade metafisicamente abismada, socorrida por uma escrita que se
inclina constantemente para o sublime, alçada por uma tristeza absolutamente
lírica e ridente.