quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Great expectations



      As minhas expectativas relativamente à obra DEBAIXO DO VULCÃO eram altas. Não podia ser de outra forma com um livro em que a personagem principal é o álcool. No entanto, e com grande pesar, constato que não entra para a minha lista de livros do caralho. Ultimamente, o encontro com estes livros excepcionais vai rareando e não consigo evitar sentir-me responsável por essa comunhão falhada (não amar um livro, existirá alguma tristeza mais profunda?). Curiosamente, acontece o mesmo com os amantes – terei eu perdido a capacidade do encantamento, da empatia generosa, ou serão apenas as maleitas decorrentes das várias experiências acumuladas?

As circunstâncias eram favoráveis ao encontro. O prefácio escrito por Lowry para a primeira edição francesa prescrevia o livro como indicado à minha condição: apesar de toda a estabilidade conquistada nos últimos anos, não me sinto eu quase sempre em combate com os poderes das trevas e da luz, numa perpétua travessia das profundezas de Qliphoth, esse «mundo dos detritos e dos demónios»? A atmosfera árida do México e a introdução do Cônsul eram convidativas. Como não me conectar com o seu desespero espiritual, alheio a qualquer hipótese de renegociação?

Porque os homens, todos os homens – era o que Juan parecia estar a dizer-lhe – devem, até no México, lutar incessantemente, num sentido ascensional.  Que era a vida senão uma luta e uma viagem transitória num país estranho? A Revolução ruge do mesmo modo na terra caliente de cada uma das almas humanas? Não existe outra paz, além daquela que paga portagem completa para o inferno…

O primeiro terço do livro recorda-me uma selva frondosa e nocturna, apesar do meio-dia insuportável. À medida que me adentrava pelo ânimo do Cônsul e reconhecia a sua extrema lucidez (e as armadilhas dessa mesma lucidez), ia também contactando com essa pulsão de morte indomável, o delirium tremens e essas ganas de meter veloz pelo precipício abaixo.

Mas depois a paisagem muda e dou comigo a descobrir Hugh e Yvonne. Com esses, não me conecto. Aliás, aborreço-me muito. Talvez fosse essa a intenção do autor, impossível dizer… Até que regresso ao Cônsul e à análise genial da sua dualidade. Gostei particularmente das passagens em que o Cônsul se encerra numa casa de banho e do final, apoteoticamente trágico. A ambivalência está tão bem explanada que nos incomoda: por um lado, pressentimos que o Cônsul ainda poderá reerguer-se, escapar às sombras avassaladoras, conhecemos o seu esforço e acreditamos no seu merecimento; por outro, sabemos que, ainda que a salvação esteja a um palmo de distância, às vezes, não se consegue mover um dedo que seja.

– Gosto disto – rematou, dirigindo-se aos outros, pela janela e já do lado de fora. Cervantes continuava atrás do bar, de olhos assustados e sempre com o galo nos braços. – Gosto do inferno. Não posso esperar mais; quero ir para lá. E vou mesmo a correr; já lá estou quase.

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